1 - Viagem Pela História de Angola

Uma viagem através dos tempos, povos, personagens e acontecimentos que moldaram a História de Angola.

Nome:
Localização: Cranbrook, Colômbia Britânica, Canada

Helder Fernando de Pinto Correia Ponte, também conhecido por Xinguila nos seus anos de juventude em Luanda, Angola, nasceu em Maquela do Zombo, Uíge, Angola, em 1950. Viveu a sua meninice na Roça Novo Fratel (Serra da Canda) e na Vila da Damba (Uíge), e a sua juventude em Luanda e Cabinda. Frequentou os liceus Paulo Dias de Novais e Salvador Correia, e o Curso Superior de Economia da Universidade de Luanda. Cumpriu serviço militar como oficial miliciano do Serviço de Intendência (logística) do Exército Português em Luanda e Cabinda. Deixou Angola em Novembro de 1975 e emigrou para o Canadá em 1977, onde vive com a sua esposa Estela (Princesa do Huambo) e filho Marco Alexandre. Foi gestor de um grupo de empresas de propriedade dos Índios Kootenay, na Colômbia Britânica, no sopé oeste das Montanhas Rochosas Canadianas. Gosta da leitura e do estudo, e adora escrever sobre a História de Angola, de África e do Atlântico Sul, com ênfase na Escravatura, sobre os quais tem uma biblioteca pessoal extensa.

domingo, agosto 20, 2023

1.3 O Meu Encontro com a História de Angola

Passado e História
 

  

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1. A Nossa História Pessoal  

Nos meus tempos de jovem havia na antiga Avenida Marginal em Luanda (hoje Avenida 4 de Fevereiro e antigamente Avenida Paulo Dias de Novais), entre o Largo do Baleizão e o Morro da Fortaleza (ao fundo da Calçada dos Enforcados e junto à antiga fábrica de sabão), havia os restos de um sobrado familiar muito antigo, talvez construído no Século XVII (ou mesmo antes), em parte já em ruínas, que cada vez que passava por ele me indagava a curiosidade - perguntava a mim próprio quando é que foi construído? Quem o construiu? Como foi construído? Quantas gerações da mesma família (ou de familias diferentes) viveram nele? Quantas pessoas lá nasceram e morreram? Como era o quotidiano da vida em Luanda ao longo de mais de três séculos?  Viveu nele alguém de relevo na História de Angola? Alguma família importante? Como teria sido a vida doméstica dessas famílias nesses tempos idos? Quantos escravos trabalhavam nessa casa? Qual a principal função que servia - era uma residência para a familia de um militar, um comerciante, um prelado, ou traficante de escravos? Quando e porque é que o sobrado passou a ser desabitado? Porque que é um sobrado (uma casa grande) histórico tão interessante como este não foi reabilitado?


As ruínas do sobrado a que me refiro no texto
 encontram-se à direita e centro, depois da verdura do morro da Fortaleza

Por vagos momentos, a minha mente voava atrás na bruma do tempo, procurando no nevoeiro da história o saciar dessa curiosidade, o que, por associação, invariavelmente me levava a pensar na minha história pessoal, na história da minha família, na história de Luanda, na história de Angola, e até na história do mundo. 

Todos nós temos a nossa história pessoal e todos nós temos um sentido nato de históriaÀs vezes encontramo-nos a pensar no que tem sido a história da nossa vida, nos acontecimentos que vivemos e testemunhámos, ou no percurso individual que passámos através da nossa vida. Nesse esforço indagamos ainda como é que a história da nossa vida se relaciona com a história da nossa família e amigos, da nossa vizinhança ou comunidade, da nossa cidade ou nação, ou mesmo até como ela se relaciona com o esquema geral da história da humanidade. 

Mercê da nossa vivência real e directa de acontecimentos históricos, quando olhamos para o passado apercebemo-nos de que fomos testemunha, participante, ou mesmo até agente de mudança na evolução geral da história da sociedade em que vivemos. Neste processo de análise da nossa história pessoal apercebemo-nos também como os acontecimentos históricos que testemunhámos moldaram não só a nossa vida como também a nossa personalidade, e mesmo até a maneira como vemos o nosso lugar no universo. 


Um prédio emblemático de Luanda dos anos Cinquenta (Cervejaria Baía)

Alguns de nós, talvez por razões completamente aleatórias, tivemos a sorte (ou o azar, dependendo da perspectiva) de ser testemunha em certos acontecimentos que são tão marcantes para a sociedade em que vivemos, que eles servem de marcos para a história recente dessa sociedade, e que nos deixaram uma marca profunda para o resto das nossas vidas. E alguns, embora em muito menor número, temos a experiência de ter participado directa e activamente nesses acontecimentos, como agentes ou mesmo até como dirigentes de uma vivência social e histórica em rápida mudança. 

Contrariamente a qualquer outro valor material, a nossa natureza humana compele-nos a partilhar com outros a nossa história pessoal, pois sabemos que quando a morte nos chamar, o livro da nossa vida se fecha e apaga para sempre, e com ele desaparece para sempre o tesouro do nosso conhecimento e a memória da nossa experiência pessoal e íntima. 

No meu caso pessoal, tenho consciência clara de que vivi momentos históricos extraordinários, que ficarão na história do mundo como marcos de mudança fundamentais para a Angola em que vivi. Como exemplo, relembro o rápido desmoronar do império colonial português e a independência de Angola. Estes acontecimentos foram únicos e de impacto profundo para a todos os Angolanos e Portugueses. Com eles se escreveu o último capítulo de uma sociedade em extinção, e com eles se abriu num novo livro, cujo primeiro capítulo seria o construir uma nova sociedade e nação. 

No caso concreto de Angola, quem viveu na Angola colonial, sabe bem apreciar as mudanças radicais que tiveram lugar desde a década de cinquenta do século passado até hoje, e como elas afectaram a vida de todos nós. Assim, em pouco mais que uma geração, fomos testemunhas de mudanças profundas na nossa vivência quotidiana, alguma das quais nós (a nossa geração) fomos os últimos a viver um modo de vida que desapareceu para sempre, deixando apenas em alguns de nós a saudade, e noutros o alívio de saber que esses tempos passados jamais voltarão, mas em ambos a memória forte desses tempos. 

Assim, sinto que tenho de partilhar com o mundo, mesmo que  numa perspectiva ego-histórica e um tanto nostálgica, o que sei e senti numa Angola que já há muito não existe, pois sei que sou um membro da última geração que o pode fazer, baseado na minha experiência pessoal e directa. Sei que quem vier depois de nós e quiser contar a nossa história, se terá que basear no nosso testemunho directo. Eis assim a razão fundamental desta minha Viagem Pela História de Angola. Sei também que a minha perspectiva não é completamente neutral; sei que ela é "colorida" pela minha herança cultural e material no xadrez da sociedade colonial angolana de então, mas prometo que vou tentar ser tanto objectivo quanto possível.

 

Tempo, Verdade, e História - Pintura de Goya (1797-1800)


No longo caminho de aprender história que começou para mim formalmente em 1964 nas aulas de História do 3º Ano dadas pela saudosa Dra. Judite Morais, no antigo Liceu Paulo Dias de Novais em Luanda, até aos dias de hoje, vieram-me muitas vezes à mente as seguintes perguntas: Afinal, o que é a história? Quem "faz" história? - é o protagonista? é o historiador? ou são ambos?  Porquê história? Como podemos estudar história? O que podemos aprender da história? Podemos viver sem história? História para quem? Usos e abusos da história? O que é que despertou em mim o interesse (quase paixão!) pela história? Perguntas postas não só por mim próprio, mas também por outros. Desde que me lembro, tive sempre uma curiosidade imensa em indagar as raízes da nossa vida quotidiana. Porque é que vivemos a vida que vivemos, e quais foram os factores determinantes em vivermos num mundo de duas culturas (a africana e a ocidental), culturas que não estavam em sintonia uma com a outra? 

 

Chegada dos Portugueses ao rio Zaire (Diogo Cão em 1483), painel de azulejo na biblioteca do Liceu Nacional Salvador Correia, Luanda
 
 
Para melhor compreender estas perguntas penso que é necessário partilhar contigo um pouco da minha vivência pessoal de acontecimentos que vivi, que penso nos vão ajudar nesta Viajem Pela História de Angola a demarcar mais claramente o contexto histórico que me esforço em descrever.  Peço assim, que me acompanhes por algumas horas nesta viagem nostágica e aliciante, viagem  pessoal que vai atrás mais de mais de 60 anos no passado, desde os meus anos de menino até 1975, ano em que deixei Angola para nunca mais voltar.    

Devo dizer-te de antemão que este troço da Viagem Pela História de Angola é mais memória do que é história. É de facto o troço mais pessoal e íntimo desta Viagem, em que faço referência a pessoas e acontecimentos que foram importantes somente para mim e não necessariamente para ninguém mais. É decerto um passeio embrumado em nostalgia, mas é também um passeio esclarecido pela perspectiva que aperfeiçoei ao longo de mais de setenta anos de vida.

Não pretendendo assim narrar aqui a minha biografia em grande detalhe, mas entretanto e em poucas palavras tenho que dizer-te que ...  

    Tive sorte... 
 
        Sorte de ter nascido onde nasci 
        de ter tido a família que tive 
        Sorte de ter crescido onde cresci 
        de ter vivido onde vivi
        
        Sorte de ter vivido na época em que vivi        
        de ter os amigos que tive 
        Sorte de ter vivido o que vivi
        de ter esquecido o que esqueci
       
        Sorte de ter acreditado no que acreditei 
        de ter pensado o que pensei 
        Sorte de ter chorado o que chorei
        de ter amado quem tanto amei
        
        Sorte que assim guardo para sempre 
        o que vale mais que todo o ouro
        Sorte, pois tudo o que acima disse, 
        guardo para sempre como o meu mais valioso tesouro. 
 
Assim, descrevo a seguir alguns acontecimentos de que fui testemunha ou que vivi, que não só me marcaram como pessoa, mas que também acredito foram marcos importantes no percurso da História de Angola de há mais de sessenta anos atrás, uma época cada vez mais longínqua, num lugar ainda não poluído por telefones, televisão, computadores, internet, celulares, social media, ou inteligência artificial, mas contaminado pela realidade colonial que se vivia.
 
 
2. Árvore Genealógica
 
Antes de começar a partilhar esta viagem é importante definir quem sou eu. Assim, ofereço aqui um breve resumo biográfico e geneológico meu e da minha familia até 1975, ano em que deixámos Angola devido à guerra civil que então deflagrou no país. 
 
Começando por mim, o meu nome é Helder Fernando de Pinto Correia Ponte, tamém conhecido por Xinguila, nos meus anos de juventude em Luanda, Angola. Eu nasci na vila de Maquela do Zombo, perto da fronteira norte com o Congo (RDC), no antigo distrito do Uíge (hoje província), em 1950. Vivi a minha meninice na vila da Damba e a minha juventude no Bairro da Maianga em Luanda. Frequentei a antiga escola primária da Damba, os antigos Liceu Paulo Dias de Novais e Liceu Nacional Salvador Correia em Luanda, e a Faculdade de Economia da Universidade de Luanda. Cumpri serviço militar no exército português como oficial miliciano dos serviços de intendência (logística) em Luanda e Cabinda. Casei em Setembro de 1975 com a minha Princesa do Huambo (Estela) de que temos o nosso filho Marco Alexandre. Emigrámos para o Canadá em 1979 onde vivemos desde essa altura. Estou agora reformado, depois de ter trabalhado por mais de quarenta anos com primeiras nações Índias no Oeste do Canadá (Colômbia Britânica), com quem aprendi muito e guardo as mais gratas recordações. Eu por natureza sou optimista; pois quando vejo um copo de água meio cheio, ele para mim está meio cheio, não meio vazio.

Eu conheci a Estela, que viria a ser minha Princesa do Huambo, quando vivia na Residência Universitária na Rua Oliveira Barbosa (actual rua Agostinho Neves, Maianga/Alvalade) em Luanda em 1972, quando frequentava a Universidade de Luanda. Passados alguns meses ficamos mais do que amigos chegados e casámos em Setembro de 1975, quando Luanda já não era a mesma. Vivemos três anos em Portugal, e emigrámos definitivamente para o Canada em Março de 1979. O nosso filho Marco nasceu em 1983. Os pais da Estela (Sr. António Monteiro e Dona Glória) eram de Portugal (ele natural de uma aldeia perto da cidade da Guarda (Cubo, Meio), e ela natural da vila de Penamacor, Castelo Branco) e vieram para Nova Lisboa (ele em 1941 e ela em 1944) onde montaram um negócio de serralharia mecânica e carpintaria de mobílias, e mais tarde um exploração de mármores na Huíla. O Sr. Monteiro e a Dona Glória tiveram três filhos todos nascidos em Nova Lisboa: a Ivone em 1941, a Estela em 1951, e o Gutó (Augusto António) em 1953. A Ivone casou com o Ilídio Carvalho, natural da Guarda, Portugal, de quem teve três fois filhos também todos nascidos em Nova Lisboa: o Jorge, nascido em 1961, a Marisa, nascida em 1963, e a Ruca (Elsa Marina), nascida em 1965. A família Carvalho viveu em Nova Lisboa e em Luanda (onde eu vim a conhecer a Estela em 1972 como vizinha na próxima casa na Rua José Oliveira Barbosa, junto à Residência Universitária nº 2). O Gutó casou com a Nazaré Pereira (também de Nova Lisboa), com quem veio a ter dois filhos: O Nuno nascido em 1973 em Nova Lisboa, e o Tiago, já nascido no Canadá em 1977.
 
Todos os membros da família Monteiro deixaram Angola em 1975 e emigraram todos  para o Canadá em 1976, onde tiveram que recomeçar a vida a partir do zero, incluindo os pais da Estela já depois dos sessenta anos num país muito diferente. Eles viveram na mesma cidade em que nós (Cranbrook, Colômbia Britânica), durante o resto das suas vidas, vindo a falecer em 2009 e 2010, respectivamente, depois de muitos desafios. 


o nosso filho Marco, Estela (Princesa do Huambo, e eu (2005)


A minha Mãe (Maria Helena) nasceu em Leopoldville (hoje Kinshasa, no antigo Congo Belga, hoje República Democrática do Congo) em 1921. A minha mãe passou a sua meninice em Lisboa, e veio para Angola ainda na sua juventude, como consequência da grande crise económica de 1929-33 onde viveu a maior parte da sua vida, até ir para o Brasil em 1975, depois da independência de Angola, onde faleceu em Abril de 2010 em Macaé, no Estado do Rio de Janeiro, Brasil. A minha Mãe foi sempre a pessoa que mais admirei em toda a minha vida. 
 
Apesar das grandes e muitas vicissitudes que ela enfrentou na sua vida, ela nunca deixou de lutar contra a adversidade e injustiça, e manter sempre o ânimo no momento presente e a esperança de tempos melhores. Foi dela que herdei o gosto muito grande que tenho em aprender, em ver a vida como a vejo, e em ser a pessoa que me esforço ser. Ela falava bem kikongo e tinha uma boa compreensão da História de Angola em geral e do Antigo Reino do Congo em particular. 


A minha Mãe Maria Helena Pinto Correia Ponte (1921-2010)

 
O seu pai (meu Avô materno) Júlio Pinto Correia veio da aldeia de Fratel, Castelo Branco, Beira-Baixa, Portugal, para África muito novo em 1907 para Boma, Matadi, e Leopoldville (hoje Kinshasa) no antigo Congo Belga (hoje República Democrática do Congo), e onde se estabeleceu e fez fortuna no comércio de importação de produtos europeus e exportação de produtos coloniais, o que deve ter incluído o negócio da borracha no então Congo Belga. Ele foi um comerciante destacado na cidade de Leopoldville desse tempo, tendo tido uma sucursal comercial em Bruges, na Bélgica, e tendo sido presidente da câmara de comércio em Leopoldville. Na década de 1920 ele viveu com a sua família em Lisboa onde comprou um prédio na Avenida Marquês de Tomar (paralela à Avenida da República). Mais tarde em 1934, depois da grande crise económica mundial de 1929-33, ele deixou o Congo Belga e veio com os seus filhos que até lá viviam em Lisboa (o meu tio Júlio, a minha tia Mélita, e a minha mãe Helena) para o norte de Angola onde do nada estabeleceu a Roça Novo Fratel na área do Uando, perto da Serra do Cusso, na região da vila da Damba, com uma plantação de café de 1.004 hectares. 


O meu avô Júlio Esteves Pinto Correia (1870 - 1955)


Em 1936 o seu filho Júlio faleceu súbitamente com um ataque agudo de biliosa (paludismo / malária, para o que não havia tratamento na altura) na Roça Novo Fratel e o meu Avô teve que usar as portas da sua casa da fazenda para ele próprio fazer um caixão digno para enterrar o seu único filho. Anos mais tarde, o meu avô erigiu uma pequena ermida muito bonita em memória do seu filho Júlio, que estava sepultado na fazenda. Para nós todos, este era o lugar mais sagrado e todos os anos íamos à Roça Novo Fratel em romagem à campa do Tio Júlio para honrar a sua memória. 

A década de 1930 foi difícil para ele e para a sua família, pois demorou alguns anos até as cotações dos produtos coloniais subirem, o que só aconteceu já depois do fim da Segunda Guerra Mundial. No decurso da sua longa vida em África, o meu avô perdeu várias vezes quase tudo o que tinha e teve de recomeçar a vida de novo devido às grandes quedas na cotação de produtos coloniais como a borracha e o café precipitadas pelas graves crises económicas mundiais de 1918-22 e de 1929-33. Por outro lado, devo dizer também que ele beneficiou muito das altas cotações de produtos coloniais depois do fim da segunda guerra mundial, após as quais ele estabeleceu duas mais fazendas e construíu um prédio de dois andares com oito apartamentos e seis lojas na Rua António Enes (actual rua Ndunduma) em Luanda.



Antigo posto militar em Maquela do Zombo, 1923
terra onde nasci
 
O meu avô teve seis filhas e um filho, de três esposas africanas nascidas no Congo Belga e em Angola, espaçadas mais ou menos vinte anos cada uma: as minha tias Júlia e Aurora da primeira esposa, que não sei o nome (c. 1900 e 1910); o meu tio Júlio, minha tia Amélia, e minha mãe (Helena), da segunda esposa Ana Carneiro - c. 1915 e 1925; e as minhas tias Dulce e Marina da terceira esposa (c. 1940 e 1945), que também não sei o nome. Com a excepção da minha mãe e da minha Tia Mélita, todas as minhas tias estudaram em Portugal. A minha tia Júlia, que era também minha madrinha de baptismo, casou e viveu muitos anos em Maquela do Zombo, onde enviuvou cedo e passou a viver em Lisboa. Ela dava lições de piano, pois ela tinha o curso do Conservatório de Música de Lisboa. A minha tia Júlia teve duas filhas: as minhas primas e a Jovita, que viveram sempre e casaram em Portugal. A minha tia Aurora casou com o meu tio Armando Rodrigues que era administrador do quadro de administração civil em Angola. Eles viveram em diversas povoações e vilas em Angola, entre as quais a vila de Quibaxe (nos Dembos) quando nós vivíamos na Damba. A minha tia Aurora teve cinco filhos: o Toneca, a Milú, a Manuela (assistente social), a Dina, e o Rui (todos viveram e casaram em Angola). A minha tia Mélita (Amélia) casou com o meu tio Agostinho Pires, que tinha uma casa comercial em Morbeck, no distrito do Baixo Congo, no antigo Congo Belga, situada a cerca de duas horas da fronteira do posto do Kipango, em Angola. Eles tiveram um filho, o meu primo Hugo, que viveu sempre em Portugal, depois de deixar o Congo Belga, e que veio a ser um gestor de renome em Portugal (Nestlé, SIC, e Diário de Notícias).  A minha tia Dulce cursou línguas românicas e foi professora de liceu em Torres Vedras, Portugal, e a minha tia Marina foi professora primária diplomada em Luanda, onde casou e morou até 1975. Ela teve dois filhos: a Cristina e o Marco (que é advogado). As minhas tias Dulce e Marina frequentaram o colégio de São José de Cluny em Luanda, antes de prosseguirem os seus estudos em Portugal. 

Apesar de viverem numa fazenda remota longe de tudo e de todos, onde a escola mais próxima era em Maquela do Zombo e o único liceu era em Luanda, o meu Avô esmerou-se para dar a melhor educação e instrução posssível às suas filhas Amélia e Helena. Assim ele mandou vir da Livraria Minerva em Luanda o "Curso Completo dos Liceus em Casa", e ele próprio na Roça Nova Fratel orientava diariamente o estudo das filhas, onde elas concluiram os estudos equivalentes ao quinto ano do liceu. Ele tinha uma biblioteca pessoal extensa em casa na fazenda, e tinha muita inclinação para tudo quanto fosse electrónica, tecnologia nesse tempo limitada à rádio, pois até completou com êxito o curso por correspondência acerca de manutenção e reparação de rádios. O meu avô morreu em Luanda em 1955 e foi sepultado no Cemitério Novo (de Santa Ana) na antiga estrada de Catete, depois de viver quase 60 anos em África (Congo Belga e Angola). Depois da morte do meu avô, o meu primo Toneca (filho da minha tia Aurora) passou a gerir a Roça Novo Fratel até 1975.
 
A minha avó materna Ana Carneiro, que nunca conheci pois faleceu antes de eu nascer, era de ascendência africana e era oriunda da região de Cabinda/Boma. Eu nunca conheci algum membro da sua família, mas sei através do meu irmão Rui que tínhamos alguns parentes afastados no distrito de Cabinda e na região de Boma (República Democrática do Congo) com quem ele conviveu durante a sua residência em Cabinda. 


A minha avó Ana Carneiro com os filhos Júlio (atrás)
Mélita (esquerda) e Helena (direita, minha mãe, com cara de aborrecida)
Fotografia tirada em Leopoldville em 1925


O meu pai (José António da Ponte) nasceu na Vila de Vinhais em 1921, distrito de Bragança (Trás-os-Montes, Portugal) e emigrou para Angola em 1941 depois de terminar o Sétimo Ano no Liceu de Bragança. Os seus pais (meus avós) foram Domingos e Sara Rodrigues da Ponte. Ele começou no Quadro Administrativo no distrito do Congo e trabalhou anos mais tarde nos Serviços de Fazenda em Vila Luso (Moxico/Luena). Em 1954 ele estabeleceu-se como comerciante e agricultor na vila da Damba com uma casa comercial e atelier de desenhador, topógrafo, escritório de demarcação de terrenos, procurador judicial, e agência de viagens, bem como uma pequena fazenda na área do Rio Lueca a cerca de 50 km da Damba. 


O meu pai José António da Ponte (1921 - 1974)


A maioria da família do meu pai nasceu e viveu em Portugal, no distrito de Bragança, Trás-os-Montes. Contudo, como ele,  dois irmãos vieram para Angola: a minha tia Maria Emília (Mariazinha), que foi professora nas escolas de magistério primário de Sá da Bandeira (Lubango) e de Silva Porto (Kuito), e o meu tio Antonio José (Toninho) que foi oficial da marinha de guerra portuguesa e esteve destacado em Angola durante cerca de quatro anos servindo como comandante de um destacamento de fuzileiros navais em Sazaire (Sonho) e no Leste (nas Terras do Fim-do-Mundo do Moxico e Cuando-Cubango). Todos os meus tios e tias tiraram cursos superiores em Portugal.
 
Tendo lidado de perto com o problema de demarcação de terras, o meu pai aprendeu de perto o conflito de terras entre as comunidades africanas e colonos europeus para o estabelecimento de mais plantações de café. O seu papel foi muitas vezes o de tentar reconciliar interesses radicalmente opostos e quase sempre não protegidos das comunidades africanas. 
 
Nota - Para o povo Bakongo, a terra era propriedade comum da Kanda. De acordo com a tradição, a terra podia ser cultivada individualmente, e o produto do cultivo era propriedade individual, contudo a terra em si não podia ser alienada de qualquer forma, pois era propriedade comum da kanda. Nota -  A Kanda era a uma linhagem na comunidade conguesa (um clã) a quem pertenciam todos os indivíduos (vivos e mortos) que se consideravam descendentes de um antepassado comum (uma mulher num sistema matrilinear ou homem num sistema patrilinear). Cada tinha designação e tradições próprias. O chefe de cada clã era designado por Mbuta Kanda. A  Kanda mais antiga era social e politicamente a mais preponderante.


Assim se obtiam reclamações ao processo de
demarcação de terras em Angola, 1951
 

Depois dos ataques da UPA (União dos Povos de Angola) às povoações e fazendas nos antigos distritos de Uíge e Congo em Março de 1961, o meu pai passou a exercer a profissão de topógrafo mas baseado em Luanda, onde passámos a residir permanentemente. Como topógrafo, ele trabalhou para a firma Artop (na antiga Rua Guilherme Capelo) e para a Junta Autónoma das Estradas de Angola (JAEA, na antiga Rua Serpa Pinto), e enquanto vivemos em Luanda, o meu pai passava períodos extensos ausente de casa e da família trabalhando no mato (Bom Jesus, Cambambe, Munhango, Saurimo, Dala, saliente do Cazombo, Luimbala, Lungué-Bungo, Jamba, e Serra da Leba). Durante estes períodos a minha mãe teve que assumir em casa o duplo papel de mãe e pai ao mesmo tempo para todos nós. 
 
O meu Pai foi sempre muito independente e até um tanto oposto  à política colonial oficial. O seu círculo de amigos foi sempre composto por angolanos com raízes nacionalistas. Ele em Luanda e em Cabinda tinha a sua tertúlia de amigos que em oposição ao clube elitista do Clude dos Rotários, eles próprios se entitulavam como a "Tertúlia dos Arrotados".
 
Em 1968 ele assentou finalmente em Cabinda como topógrafo principal da Câmara Municipal de Cabinda, onde veio a falecer precocemente em Maio de 1974.


O meu irmão Rui Manuel de Pinto Correia Ponte (1947-1990)


A nossa família viveu em Vila Luso (hoje Luena), distrito do Moxico, entre 1944 e 1950, em Luanda entre 1950 e 1953, na Vila da Damba (distrito do Uíge) entre 1954 e 1961, em Luanda entre 1961 e 1968, e em Cabinda entre 1968 e 1975. Os meus pais tiveram seis filhos: Luis Filipe (Luisinho), nascido em Vila Luso em 1946 e falecido em Vila Luso em 1949 (que não conheci pois morreu com três anos de idade, antes de eu nascer); Rui Manuel (Quinhas) nascido em Vila Luso em Outubro de 1947 e falecido precocemente em Cabinda em 1990; Maria Ema, nascida em Vila Luso em Agosto de 1948 e falecida em Lisboa em Janeiro de 2010; eu, Helder Fernando (Dézito para todos e Saranico para o meu pai) nascido na vila de Maquela do Zombo, distrito do Uíge, em Junho de 1950; Maria Dilar (Funhica) nascida em Luanda em Maio de 1952; e Ana Paula, nascida em Luanda em Janeiro de 1961, de onde ambas emigraram para o Brasil em 1975 e 1976.
 
O meu irmão Rui teve uma filha de nome Fernanda Helena que vive em Cabinda, nascida em 1978, mas que eu nunca conheci em pessoa e que nunca tivemos contacto. A minha irmã Ema e o meu ex-cunhado Nochinhas Llorente tiveram um filho - o Pedro Romero, nascido em Silva Porto (Cuíto) em 1970. Já em Lisboa a minha irmã Ema e o meu ex-cunhado António Caldeira (da Vila Nova, Huambo) tiveram um filho, o Gonçalo nascido em Lisboa em 1977, que vive hoje em Varsóvia, na Polónia. A minha irmã Dilar e o me ex-cunhado Júlio Silva tiveram quatro filhos: a Isabel, nascida em Cabinda em 1973, o Miguel, nascido em Luanda em 1974, o Bruno, já nascido em São Mateus, estado do Espirito Santo, Brasil, em 1977, e a Vivian, também nascida em São Mateus em 1979. A minha irmã Paula e o seu marido Mike Martung tiveram cinco filhos: a Melanie, a Melissa, o James, a Sandy, e a Ashley, todos nascidos na cidade de Macaé, no estado do Rio de Janeiro.


A minha irmã Maria Ema de Pinto Correia Ponte (1948-2010)


Em termos de irmãos e irmãs, a minha irmã Maria Dilar (Funhica para nós), dois anos mais nova do que eu foi desde sempre a minha companheira de brincadeiras e diabruras. A minha irmã Maria Ema (dois anos mais velha que eu) estudou em colégios de madres em Portugal a cargo dos meus tios Agostinho e Mélita e primo Hugo, que tinham deixado o Congo em 1960, e o meu irmão Rui Manuel (que era três anos mais velho do que eu, estava internado no Colégio Brotero no Bairro do Cruzeiro em Luanda. Mais tarde ele frequentou o Colégio dos Maristas (ainda ao cimo da antiga Avenida dos Combatentes, e o Liceu Nacional Salvador Correia . Quando tinha quatro anos , o meu irmão Rui foi vítima de um surto de parilisia infantil (poliomelite) que grassou toda a região ao longo da linha do Caminho de Ferro de Benguela (do Lobito a Teixeira de Sousa) que lhe afectou a perna esquerda e o deixou a ter de coxear durante toda a sua vida. Esses surtos de pólio (a que chamávamos paralisia infantil) eram relativamente comuns na Angola desse tempo, pois não havia ainda uma vacina eficaz. A minha irmã Paula, a mais nova de todos nós (a caçula), naseu mais tarde já em 1961 na antiga Maternidade Vieira Machado em Luanda. Todas as minhas irmãs foram educadas no Colégio das Irmãs de São José de Cluny, na rua Nossa Senhora da Muxima (antiga rua do Cafaco) em Luanda.

 
Alegoria aos Povos de Angola, pintura de Neves e Sousa

A nossa família não era de qualquer forma rica, pois até éramos uma família remediada, em que o meu pai e a minha mãe tinham ambos que trabalhar para sustentar a numerosa familia. De uma forma geral, a economia da região da Damba começou a deteriorar em 1955 e atingindo o nível mais baixo em 1960. Em Luanda, conforme viremos mais tarde nesta crónica, continuámos a viver sempre dentro de um  orçamento familiar apertado.

Infelizmente, eu não tenho qualquer informação sobre os meus bisavós ou antepassados mais antigos quer do lado materno quer do paterno, mas espero um dia encontrar mais elementos sobre a árvore genealógica da minha família. Eu sei apenas que nós temos uma ascendência mista europeia e africana (portuguesa e angolana), e com efeito pergunto a mim próprio com frequência quem foram os meus antepassados angolanos (bem como os portugueses) o que me traz à mente a conclusão cabal da inevitabilidade de que em três ou quatro geraçãoes atrás havemos de ter antepassados na nossa família que sofreram os horrores da escravatura no Congo ou em Angola.
 
 
3. Vila da Damba
 
A vila da Damba nos finais dos anos cinquenta do século passado era uma vila pacata, quase esquecida no interior do norte de Angola. Situada num pequeno plateau com altitude aproximada de 1.100 metros, era sede de concelho e dois postos administrativos (31 de Janeiro e Mucaba) no distrito do Uíge. Em termos de orografia (relevo) e hidrografia (rios), alguns rios na região da Damba corriam para norte, onde por fim se iam juntar ao rio Zaire, e outros para oeste, indo desaguar eventualmente ao Oceano Atlântico. Os rios principais da região eram  os rio Lueca, Coje, e Zadi-Andimba que corriam para o Rio Mbridge, e os rios Lulovo e Luquiche Zadi, que confluiam com o Rio Zadi, que corria para norte e se ia juntar eventualmente ao Rio Zaire. Da mesma forma, as bacias criadas por estes rios eram delimitadas por serras que seguiam a mesmas duas orientações (norte/sul e este/oeste), das quais se destacam a serra do Cusso, a serra da Canda (a Noroeste e Oeste, respectivamente), e a serra do Mucaba a oeste, (todas demarcando o curso de rios que correm directamente para o Atlântico) e a serra da Canganza, que separa as bacias dos rios Zadi e Cuílo, que por sua vez correm para norte em direcção ao Rio Zaire.
 

Mapa do Distrito do Uíge, Angola, 1968


Em termos de população indígena em 1959, a Damba era o concelho mais densamente povoado do distrito do Uíge com uma densidade populacional de 9,05 pessoas por quilómetro quadrado, derivado de uma população indígena de 71.571 pessoas a viver num território de cerca de 8,330 quilómetros quadrados (pouco menos do que um décimo da superfície total de Portugal continental).  


Orografia e hidrografia geral do norte e centro de Angola


Em termos de geografia urbana a vila estendia-se ao longo da estrada principal de terra batida (não asfaltada) Uige-Maquela do Zombo com casas para famílias europeias cercadas por sanzalas (povoações de nativos) a vários quilómetros da vila. Na zona norte da vila encontravam-se os edificios públicos, como a administração civil, cadeia, cemitério, igreja, escola, e residências do administrador, secretário, médico, professor, e chefe dos correios. 

O clima da região da Damba era chuvoso, quente e húmido (tropical de savana) com duas estações distintas: a estação das chuvas e do calor, e a estação seca e mais fria (cacimbo). A vila da Damba situava-se num planalto, e assim tinha um clima um pouco mais ameno e mais propício para o  povoamento humano. A estação das chuvas começava em Setembro, crescia até Novembro, e dimunuía em Dezembro, para quase uma ausência de chuva em Janeiro e Fevereiro. Então a chuva aumentava outra vez até Abril (o mês mais chuvoso) para acabar em meados de Maio. Os meses secos eram Junho, Julho e Agosto. 
 
A temperatura média anual da Damba oscilava entre os 20º e 25º graus centígrados. Contudo, as noites podiam ser frias (inferiores a 10º graus centígrados) em Junho, Julho, e Agosto. Os meses mais quentes eram em norma Março e Abril,com temperaturas também elevadas em Novembro e Dezembro, chegando a ultrapassar os 35º graus.

Em termos de nebulosidade (núvens), em geral os céus não eram muito encobertos na estação das chuvas,e mais claros na estação do cacimbo. Na estação das chuvas havia sempre muitas trovoadas muito fortes (todas as casas tinham pára-raios). Por outro lado, na estação do cacimbo tínhamos muito nevoeiro que aparecia quase todas as manhãs, mas que rapidamente se desvanecia. Em termos de humidade, a região da Damba era muito húmida, com um índice de 85% de humidade relativa. 


Edificio da administração civil do concelho da Damba, 1957


Em frente à igreja da vila e à escola primária havia um largo muito grande onde nós jogávamos futebol. No centro era a zona comercial onde se encontravam as lojas e residências dos europeus, e na zona sul encontrava-se o hospital, e já na periferia, o aeródromo, e as missões católicas. A maioria das casas dos europeus tinham uma área independente para a loja e armazém onde praticavam o comércio com africanos, um quintal muito grande, e a residência  propriamente dita para a família. A presença da autoridade administrativa colonial na vila era marcante, pois os edificios mais destacados da vila eram aqueles ligados à administração civil. Naquele tempo não havia na Damba qualquer presença militar, além do pequeno grupo de cipaios (actuando mais como polícia indígena) adstritos à administração civil e cadeia comarcã locais. O cemitério, lugar calmo e coberto de mangueiras frondosas que davam muita sombra e paz ao local de descanso perpétuo, era situado à saída norte da vila, na estrada que ia para Quibocolo e Maquela do Zombo.


A escola primária da Damba, 1957, onde fiz a instrução primária


A vila da Damba tinha água canalizada e energia eléctrica das quatro da tarde às dez horas da noite. A vila tinha também uma escola primária (da primeira à quarta classe), um centro de saúde (pequeno hospital sem Raio-X mas com uma pequena maternidade), estação de correios e posto P-19 de rádio, uma igreja e duas Missões Católicas (uma masculina e outra feminina). A vila tinha também um clube (o Clube Recreativo e Beneficiente da Damba) com uma sala de cinema e de festas, ringue de patinagem, e um estádio de futebol (situado já fora da vila). 

Lembro-me ainda que a Damba tinha uma escola de artes e ofícios que era famosa pela beleza e qualidade de mobílias de verga e de madeira que produzia. Numa baixa adjacente à vila havia uma granja jardim (a Granja Agrícola da Damba) muito bonita com hortas e um riacho com peixes, onde se situava a central eléctrica. A vila tinha ainda uma fábrica de descasque de café, uma fábrica de óleo de palma, e uma fábrica de descasque de arroz.


O antigo hospital da Damba, 1960

 A Damba tinha uma oficina mecânica para carros e dois postos de abastecimento de gasolina (Mobil no estabelecimento comercial da família Neves Ferreira, e Sacor, da família Negrão). Em termos de estradas, a Damba estava ligada a Maquela do Zombo a norte (104 km a norte), a Carmona (Uige) (196 km a sul), ao Lucala (a estação de caminho de ferro (linha de Malange, do Caminho de Ferro de Angola) mais próxima a 445 km sul), e Luanda (530 km pelo estrada do Bembe, Toto e Ambriz, e 506 km pela cidade de Carmona, capital do então distrito do Uíge). As estradas não eram asfaltadas, pelo que só na estação do cacimbo eram mais ou menos transitáveis; contudo, na estação das chuvas elas tornavam-se um grande problema, pois qualquer viagem demorava três a cinco vezes mais tempo do que no cacimbo, devido às más condições.
 
 
A carreira de autocarros Viriatos que servia a Damba


O aedrómodo da Damba tinha serviço regular semanal de aviões DC-3 (Dakota) operados pela DTA (a transportadora aérea do estado - Direcção dos Transportes Aéreos) com Luanda. A vila tinha serviço bi-semanal de camionagem e carreira para Maquela e para a cidade de Carmona (hoje Uige), capital do distrito. O jornal mais lido na vila era o Jornal do Congo, publicado semanalmente em Carmona.


O Clube Recreativo Beneficiente e Desportivo da Damba, 1957

Em termos da sua  relevância no contexto da economia regional, a vila da Damba tinha cerca de 20 casas comerciais de propriedade de portugueses europeus e talvez umas seis ou oito fazendas de café na área circumvizinha, sendo o café, a ginguba (amendoim), o óleo de palma, e o arroz os seus produtos principais. A Damba  servia as necessidades comerciais, administrativas, de saúde, e de educação mais imeditas para um número de povoações à sua volta, como as povoações de Lêmboa, Lucunga, Mucaba, Camatambo, Pete, e 31 de Janeiro. As ligações entre a Damba e a povoação do Quibocolo e a mina de cobre do Mavoio eram importantes, mas estas estavam mais sob a órbita comercial e administrativa de Maquela do Zombo. Da mesma forma, a povoação do Bungo estava mais ligada ao Negage e Carmona, do que propriamente à Damba. A noroeste da Damba, já na fronteira com o Congo Belga, era a região do Cuílo Futa e Quimbele, que eram na verdade mais despovoadas e remotas.


A torre de controle do aérodromo da Damba, 1958 
 
Das frutas saborosas da Damba não esqueço as deliciosas mangas do cemitério, que eram muito grandes e saborosas, bem como pitanga, banana, abacate (grande e pequeno), ananás e abacaxi, safú (comia-se depois de passar por água a ferver), mamão e papaia, maracujá (grande e pequeno), nêsperas, goiabas, cajú, e tâmaras. 
 
Em termos de cinegética, a região da Damba era muito rica em animais salvagens, incluindo veados, antílopes, pacaças, elefantes, onças, perdizes, galinhas do mato, e muitas variedades de cobras (umas venenosas, outras não). Que eu saiba, não havia leões na região da Damba, pois a minha Mãe contava que que ela tinha tido um cozinheiro em Vila Luso (Luena, Moxico)que tinha sido comido por um leão.
 
Nos rios maiores (Lulovo, Lueca, Luquiche-Zadi, Coje, Lucinga, M'Bridge, e Luati), podiam-se encontrar jacarés. Todos os rios da região tinham peixes, mas a pesca não era uma actividade económica muito significante, se bem que o peixe fizesse parte da alimentação quotidiana da família tradicional Sosso. 
 
Em termos de vegetação, o capim era por norma muito alto e cortante e as florestas eram mais comuns ao longo dos vales apertados criados peolo curso dos rios, oferecendo uma paisagem de savana para o planalto em que se situava a vila. Na Damba havia alguns eucaliptos,  não nativos à região, situados especialmente ao longo da estrada paralela à rua principal que passava em frente à escola e por trás da administração (no lado sul da vila).


Antigo brasão da Vila da Damba

 
Das duas coisas que me lembro ainda que muito esbatidamente dos meus anos de meninice (três a cinco anos) foi de ver neve em Vinhais (Bragança, Portugal), quando lá fomos visitar a família do meu Pai, e das visitas que fazíamos aos meus tios Armando e Aurora, que viviam na vila de Quibaxe, na região dos Dembos, em especial da minha prima Milú que gostava muito de tomar conta de mim, e a quem às vezes eu chamava Mãmã. Lembro-me também que o meu tio Armando tinha uma station wagon Ford, modelo de 1953, de cor café com leite.

Um tanto precoce, eu aprendi a ler, escrever, e contar sob a orientação da minha mãe, ainda antes de entrar para a escola primária da Damba. A minha mãe fez esforços no sentido de eu começar na escola mais cedo com seis anos, mas o pedido foi indeferido pela repartição dos Serviços de Instrução do Uíge. Com certa ansiedade, eu finalmente entrei para a escola da Damba em Setembro de 1957, sendo a nossa professora na primeira e segunda classes a jovem professora Maria José Aleixo, de quem guardo as mais gratas memórias. Na terceira e quarta classes a professora da escola foi a D. Ondina Teixeira, que tinha chegado há pouco de Portugal. Eu fui um bom aluno nos quatro anos de ensino primário, mas nunca um aluno excepcional.
 
Como a maioria das crianças desse tempo, a minha Mãe esmerou-se por criar em mim o gosto pela leitura. Assim, ela encorajou-me a ler todos os livros clássicos da literatura infantil, nomeadamente O Gato das Botas, O Barba Azul, O Capuchinho Vermelho, Branca de Neve e os Sete Anões, A Bela Adormecida, Pinnochio, Rapunzel, Alice no País das Maravilhas, As Viagens de Gulliver, e As  Mil e Uma Noites (Snibad, o Marinheiro, Sherezade), e outros. De todos os livros infantis que li, o que me deu a melhor lição para a minha vida foi Pinocchio, pois ensinou-me que há sempre uma diferença entre o bem e o mal e que temos sempre um preço a pagar por tudo o que fazemos na vida.


Pinóquio pagando o preço dos seus desatinos


Quando fiz sete anos, a minha mãe organizou um picnic na fazenda nova que o meu pai começou na região do Gando, situada perto da Mabaia, a cerca de uma hora de viagem da Damba. Esta fazenda que o meu pai começou não era de café, mas sim de fruta (laranja, limão, e maracujá), e ginguba. Para a festa foram convidados os meus amigos da Damba bem como os meus tios Mélita e Agostinho e o meu primo Hugo, que vieram propositadamente de Moerbeck, no Congo Belga (a cerca de duas horas de viagem da fronteira), onde eles viviam, à Damba para celebrar o meu aniversário. Não sei porquê, mas nunca esqueci os presentes que a minha tia Mélita me deu: uma máquina fotográfica AGFA, tipo caixa, e um par de calças jeans de marca "Lamy" de côr azul, bem como caixas de bombons e amêndoas de chocolate da Bélgica, que eram uma verdadeira delícia.

O presente memorável quando fiz sete anos
- uma máquina fotográfica Agfa de caixa


Eu não tenho accesso a fotografias da nossa casa na Damba, mas a nossa casa situava-se na rua principal mais ou menos a meio da vila, com um quintal muito grande atrás, onde tínhamos também uma horta grande. A casa estava dividida em duas partes principais: a loja, o armazém, e um terreiro pequeno; e a residência da família de forma mais ou menos quadrada, que tinha uma sala de visitas e de jantar e três quartos, com a casa de banho, despensa e cozinha, fora do quadrado principal da residência, e o quintal atrás muito grande. Os nossos vizinhos eram a família Nicolau Francisco, situados do outro lado da rua secundária. Do lado oposto e mesmo junto à nossa casa era a casa do Sr. Machado (falecido em 1959) e sua esposa D. Maria José (que mais tarde emigrou para Fall River, no estado de Massachusetts, nos Estados Unidos da América). Em frente à nossa casa, no outro lado da rua não havia nenhuma casa, havia um terreno baldio, seguido de uma barroca profunda, que dava início à estrada traseira que levava ao lado de trás da descascadora de café da firma Pires & Irmão, seguida da traseira do hotel da família Antunes. Continuando-se nessa estrada, ia-se ter à central eléctrica e à Granja.
 
 
Os meus amigos mais chegados eram os meus vizinho João e Milú Nicolau e os seus primos Carlitos e Mimi Antunes. Os outros amigos eram os irmãos Orlando e Mário Loures, e os irmãos Martins (José Henriques e Pedro) que tinham chegado há pouco tempo de Portugal. A Manuela Zamith e a Manuela Neves Ferreira eram também amigas com quem brincávamos, mas com menor frequência. Na fazenda, como vizinhos tínhamos as irmãs Margarete e a Ana, da família Sousa, que viviam com os seus avós na fazenda (Roça Dora) mais próxima da Roça Novo Fratel. Tragicamente, o Carlitos Antunes morreu de uma forma de leucemia que o assolou sem aviso e em menos de seis meses lhe roubou a vida. A morte do meu amigo Carlitos foi difícil para mim, pois além da morte do meu Avô três anos antes, o Carlitos foi o meu primeiro amigo a morrer. Lembro-me que indaguei por algum tempo sem resposta cabal o que era a morte e para onde iam as pessoas depois de morrer. O Carlitos, como bom amigo que era, decerto tinha ido para o céu. Mas, eu tenho de confessar, eu indagava também se as malandrices que fazíamos poderiamde qualquer forma ter influenciado uma passagem temporária e um tanto mais longa pelo purgatório.


Terreiro de seca de café em fazenda no Norte de Angola, 1968

 
Como as demais famílias, nós tínhamos animais de estimação. De facto tínhamos a Fiesta, uma cadela muito amiga, um leitão, e um cabrito, os quais cada um de nós (eu, o meu irmão Rui, e a minha irmã Dilar) tomávamos conta. Eu era responsavel por tomar conta e dar de comida ao cabrito. Em 1958 houveram vários casos de raiva em animais na área da Damba (a raiva nos cães e animais selvagens era endémica na região), pelo que a minha mãe decidiu, como medida de protecção aos nossos animais de estimação, mandá-los todos para a Roça Novo Fratel. Umas semanas mais tarde, o meu primo Toneca veio à Damba para nos dizer que o meu cabrito tinha sido comido por uma jibóia (uma cobra muito grande). Isso aconteceu na mesma altura em que eu tinha acabado de ler o livro do Capuchinho Vermelho, em que o Lobo Mau tinha comido a menina do Capuchinho Vermelho, que ainda se encontrava viva dentro da barriga do Lobo Mau. Entretanto, o meu Primo Toneca levou-me à fazenda para me mostrar a jibóia atravessada na estrada com um bojo muito grande na barriga onde se encontrava o malogrado cabrito. Na minha inocência, eu pedi que abrissem a barriga da Jibóia na esperança de encontrar o cabrito ainda vivo na barriga da mesma, tal como a menina do Capuchinho Vermelho na barriga do Lobo Mau. O meu primo Toneca, que já era adulto nessa altura, com muito custo lá me convenceu que o mais certo é que o cabrito já estava morto e que nada se podia fazer. Lembro-me ainda que a jibóia não teve muita sorte, pois foi morta, passando o Jeep várias vezes sobre ela. Hoje penso nisso, na minha inocência e na nossa crueldade em matarem a pobre jibóia, pasando o Jeep várias vezes sobre o seu corpo...

Enquanto crianças, nós não tínhamos uma boa noção de perigo, e que era à medida que íamos vamos crescendo é que nos íamos apercebendo melhor o que era perigoso ou o que era seguro. Pois bem, em penso que nos meus tempos de menino eu não tinha a menor noção de risco. Um dia eu e o meu irmão Rui fomos brincar para o topo de uma montanha de casca seca de bagos de café, que era formada como resíduo (sobreproduto) de uma descascadora de café da casa comercial Pires & Irmão na Damba, que por sua vez era queimada gradualmente. Não ciente do perigo, eu fui logo brincar para topo da montanha mais alta onde poucos depois caí para o lado em que a casca seca dos bagos de café estava a ser queimada ao vivo, mesmo no meio da boca do vulcão. O meu irmão Rui rapidamente veio e com uma determinação heróica salvou-me imediatamente do inferno em que me encontrava, contudo as queimaduras à volta de todo o corpo e as dores terríveis eram evidência da gravidade da situação. Levaram-me de seguida para o hospital da Damba onde me trataram (não muito bem) pois encobriram-me horas mais tarde com um cobertor de algodão que se colou à pele nas áreas das queimaduras, e que tive dores horríveis para o descolar mais tarde. Nesta operação de salvamento, o meu irmão Rui também se queimou nas pernas e nos braços.


Rito de passagem (puberdade) Bassosso, região da Damba, 1953


Tenho ainda para contar outro episódio dramático em que quase morri na Damba. A minha mãe tinha uma amiga na vila, a D. Natalina Zabaleta Cabral, mãe do nosso amigo Beto Cabral,da mesma idade do meu irmão Rui, que tinha passado a tarde connosco num dia em que tinha chovido todo o dia. Ao fim da visita, já depois do jantar, por volta da sete da noite (portanto já escuro), a minha mãe pediu-me para eu acompanhar a D. Natalina a sua casa que era a dois quarteirões de distância. Nós saímos e começámos a andar com cuidado em direcção à casa da D. Natalina pois estava escuro e o chão estava molhado e quando estávamos quase a chegar ao destino fomos subitamente atacados por intensas chicotadas de choques eléctricos que não sabiam de onde vinham e de que não nos podíamos ver livres. Depois de dealbar no ar e no chão por mais de alguns minutos, por acção dos choques elétricos eu fui atirado contra o pneu de trás de um camião que estava parado no outro lado da rua. Por acção do isolamento da corrente eléctrica do cabo eléctrico da rua pela borracha dos pneus, os choques pararam e pude ver o que estava a acontecer à D. Natalina, que continuava a ser electrocutada. Por sorte miraculosa, ele foi atirada minutos depois contra os mesmos pneus onde eu estava, e assim livrar-se dos choques eléctricos. Gritámos os dois bem alto e pedimos socorro aos vizinhos do outro lado da rua, que vieram prontamente. Alertámos eles sobre o facto de que havia um cabo eléctrico vivo (com corrente) no chão molhado e que tinham de ter muito cuidado até poderem vir até nós. Eles avisaram o operador da central eléctrica da vila sobre o que estava a acontecer, pelo que ele desligou a corrente eléctrica para toda a vila até poderem vir salvar-nos. Levaram-nos ao hospital onde reparámos que tínhamos cortes e queimaduras em todo o corpo, o que nos causava dores difíceis de suportar. No fim de tudo, tivémos sorte em estar um camíão parado à frente do local do acidente, caso contrário, teríamos decerto morrido neste acidente inesperado, e eu decerto não estaria aqui a contar esta história... Soube anos mais tarde que depois dos acontecimentos de Março de 1961, a família Zabaleta Cabral não regressou jamais à Damba, e que tinha emigrado para a África do Sul.

Na casa a seguir à família Machado vivia a família Pereira, da qual apenas me lembro que a mãe tinha ataques de loucura frequentes que muito me chocaram. Depois de algum tempo e de muito sofrimento ela foi transferida para Luanda e internada no pavilhão de psiquiatria do hospital para doenças mentais. Este foi o meu primeiro contacto com pessoas com doenças mentais, e recordo que não criei um estigma, mas que tinha uma pena profunda da senhora e da doença que ela tinha.
 
Lembro-me que o nosso livro de leitura da 3ª classe tinha uma gravura de uma família de agricultores felizes em Portugal, caminhando jovialmente para casa de pois de um dia de trabalho árduo no calor do verão, já à noitinha com a lua cheia a brilhar no horizonte. Eu tinha uma certa dificuldade em compreender a gravura pois agosto era um dos meses mais frios do ano na Damba, e a nossa família não trabalhava directamente a terra, o que me levou a identificar algumas diferenças entre a vida em Angola e em Portugal. 
 
Da mesma forma, devido ao nosso clima e vegetação na Damba, nós (eu, o meu irmão Rui, e a minha irmã Dilar) no natal fazíamos um presépio muito bonito com musgo (de cor verde muito rica) que era abundante na Damba, ao passo que no resto da Europa o natal só era natal se houvesse uma árvore de natal em casa.


Luar de Agosto em Portugal
 
O médico da vila nessa altura era o Dr. Morais Zamith, que tinha dois filhos da nossa idade, o Jorge e a Manuela (que fazia anos no dia de Natal), e hoje ambos médicos. Ele foi quem assistiu a minha mãe no meu nascimento. O Dr. Zamith era uma autoridade de renome em África no combate à doença-do-sono (tripanossomíase), e a região da Damba situava-se na zona endémica da doença-do-sono  em Angola. Embora a doença-do-sono afectasse mais animais, uma das suas formas afectava também pessoas. Anos mais tarde, o Dr. Morais Zamith chefiou em Luanda a Missão de Combate à Tripanossomíase em Angola. 

Devemos lembrar aqui que ainda não havia cura para um número grande de doenças endémicas em Angola, e que os serviços de saúde na Angola desse tempo eram ainda muito incipientes, pois a cobertura hospitalar era ainda muito escassa, o que levava a um médico ter que cobrir uma área muito grande por vezes de população muito elevada, criando assim a necessidade de muito trabalho ter que ser feito pelo enfermeiro. O "hospital" da Damba era assim mais um posto hospitalar que oferecia serviços básicos de medicina geral  (profilaxia e rastreio, maternidade, e não cirurgia) com suporte de enfermagem, do que um hospital propriamente dito, em que o enfermeiro, por exigência da sua experiência e ausência do médico da vila, em certas situações ele substituía o médico.


Uma planta de café, gravura de Olfert Dapper, cerca 1680


Na Damba nós conhecemos uma pessoa muito especial, a Dra. Julieta Fatal (1922-2012), casada com o agrónomo que foi destacado para a área da Damba, que era uma poetisa de destaque. Para mim, a poesia era como um jogo de xadrez jogado acima das nuvens em que a palavra e o sentimento se envolvem numa forma de arte sublime, e eu vi-a um tanto em forma matemática como uma geometria não plana da palavra e do sentimento. A Dra. Julieta Fatal tinha uma consciência muito límpida da condição colonial e de classes que se vivia na Angola desse tempo. Lembro-me que às vezes quando se irritava com alguma coisa que os criados (empregados domésticos) fizessem errado, em vêz de de os chamar matumbos (burros, o que era o termo comum), ela chamava-os "acéfalos". 
 

O antigo brazão da Colónia Portuguesa de Angola (1950) 

Um outro membro destacado da administração colonial foi o administrador da Damba entre 1948 e 1953 mais tarde intendente dos Serviços de Administração Civil de Angola, Secretário-Geral de Angola, e ainda mais tarde Inspector Superior de Administração Ultramarina Dr. Manuel Alfredo Morais Martins, que escreveu um livro fundamental sobre a etnografia Bakongo - O Contacto de Culturas no Congo Português - Achegas Para o seu Estudo, publicado em 1958 pela Junta de Investigações do Ultramar. O Dr. Morais Martins doutorou-se depois de 1975 em Ciências Sociais, major em antropologia cultural, e leccionou durante alguns anos no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa. Ele deixou as suas extraordinárias memórias num livro muito interessante "Bornal de Recordações", que vale mesmo a pena ler.


Aspecto de uma sanzala Bakongo, no norte de Angola, ca. 1958


O carnaval era uma época festiva muito especial para nós, pois a minha Mãe fazia para nós as mais belas vestimentas. Havia sempre um desfile de carnaval infantil no clube da Damba, em que nós ganhámos várias vezes o primeiro prémio. Eu lembro-me que fui mascarado de Robin dos Bosques, de Sinbad (o Marinheiro), e de Sultão de Bagdad. A minha irmã Dilar mascarou-se de bailarina, princesa, e havaiana. O clube da Damba era o espaço social mais activo da vila. Mostravam filmes, davam festas, era o local onde artistas e mágicos vinham dar shows. Foi no Clube da Damba que ouvi o grande declamador João Villaret a declamar o  poema épico "O Mostrengo", do grande poeta português Fernando Pessoa.  

Quando os meus pais tinham de saír da vila por alguns dias, nós ficávamos na missão das madres (situada a poucos quilómetros da vila), que nos presenteavam com deliciosos rebuçados italianos e santinhos (cromos de tema sagrados) muito bonitos, se tivessemos bom comportamento. Uma vez ficámos com a Dona Palmira Pinto (esposa do Sr. Pinto que tinha o mais antigo hotel na vila, situado mesmo ao lado do Clube Recreativo da Damba). Durante essa estadia, lembro-me que num dia de manhã quando acordei ver na cozinha uma ponte (ainda longa de 10 ou 15 cm) que as formigas (kissondo) fizeram para alcançar o açúcar que estava num jarro de vidro, o que me levou a pensar quanto inteligentes e engenhosas eram os pequenos insectos.


Café, a maior riqueza do Distrito do Congo,
entre 1940 e 1975


No meu dia-a-dia eu lembro-me que na Vila da Damba em 1958 ou 59, não conseguia compreender porque é que o nosso criado (empregado doméstico) africano de quem já me não lembro o seu nome, talvez da minha idade e ainda menino como eu, meu amigo e companheiro de diabruras sem fim, era "diferente" do meu amigo e vizinho João Nicolau (branco), também da minha idade e companheiro inseparável de aventuras?

Lembro-me ainda da familia africana Paquete Neto, que morava  perto da Escola, vivia em regime de residência fixa imposta pelo governo colonial devido a actividades políticas nacionalistas. O Senhor Paquete Neto era já de certa idade e muito erudito. A família era grande e grangeava o respeito de todos na vila.


Soba da região de Noqui, reconhecido pelas autoridades
coloniais portuguesas, com símbolo de nobreza, 1956


Não posso esquecer ainda hoje de uma viagem que fizemos a São Salvador do Congo (hoje Mbanza Kongo), onde me foi indicado a casa onde vivia o Rei do Congo, D. António III, o que me deixou um pouco perplexo, pois apesar de a minha mãe já me ter falado dele e da glória da sua corte no tempo da chegada dos portugueses ao Antigo Reino do Congo (duque do Sonho em Pinda e Rei do Congo em Mbanza Kongo/São Salvador) admirei-me que o Rei do Congo vivia numa casa "normal", uma casa construída pelo Estado, em que o estilo era o mesmo do posto de saúde da Damba, e não num palácio ou mesmo uma cubata maior de soba, e reparei também que nunca tinha visto qualquer referência de destaque a ele ou ao Antigo Reino do Congo nos livros de escola.

 
A antiga casa do Rei do Congo
em São Salvador do Congo, 1957


Ainda nessa viagem a São Salvador do Congo (Mbanza Kongo), nós visitámos o lugar onde se encontravam os túmulos dos Reis do Congo, que vi como uma manifestação vincada do poder tradicional do povo Bakongo, do qual eu era relembrado com muita frequência através das conversas que ouvia dos meus pais com amigos africanos.
 

Bilhete postal mostrando os túmulos dos Reis do Congo em São Salvador do Congo                  (Mbanza Kongo), 1911


26 Comments:

Blogger Letinha said...

Xinguila...

Puxa minino!
Adorei ler a tua história...
Sim, que esta... é a TUA História...
A história da tua vida...pessoal, como tão bem defines no inísco...

Vou continuar a utilizar o passe que me deixaste... estou a adorar!

Letinha

12:53 da tarde  
Blogger Letinha said...

Ops...
Há um erro de datilografia...
Queria dizer...início!

Letinha

12:55 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caríssimo Xinguila,
São 01.55 a.m. de 9.9.07. Enviei há pouco para si (agora para o hfponte@shaw.ca) uma cópia da msg que lhe enviei em 18.08.07 (para helder.ponte@gmail.com. Não sei se recebeu alguma delas. Esta é uma nova tentativa para contactar consigo. Se me der o seu nr. de telefone eu telefono-lhe para aí para o Canadá.
Francisco Oliveira
Parede-Concelho de Cascais-Portugal

5:58 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caro Xinguila,
Desculpe não ter indicado o meu mail. Tinha-lhe enviado uma msg minutos antes através do Gmail mas penso ter "dado barracada" e o mesmo apagou-se.Aqui vai:
francisco.foliveira7@gmail.com
Só hoje soube deste seu outro endereço (hfponte@shaw.ca) pelo meu irmão que andou no Salvador Correia (eu andei na Escola Comercial). Obrigado e cumprimentos.
Francisco Oliveira

6:05 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Xinguila,
Quanto mais leio as suas memórias e os seus escritos sobre Angola vontade tenho de ter um contacto seu para lhe agradecer o que me tem feito regressar aos meus tempos de Luanda - Cidade Alta. Nasci no Hospital Central e vivi na Rua do Sol, Rua do Casuno, Rua da Misericórdia e finalmente Bairro do Saneamento! Os meus irmãos frequentaram o Salvador Correia e as minhas irmãs o Guiomar de Lencastre. Para já não acrescento mais. Na minha msg de Agosto vai a resenha da minha vida
E digo para mim mesmo: Temos de nos ter encontrado algum dia pois por onde você andou eu andei. Para a semana vou tentar enviar-lhe de novo a minha msg de Agosto, a partir de outro endereço. Só queria saber se a recebeu.
Saúde e Felicidade para si e Família e Bem-Haja pelo que fez e está a fazer.
Obrigado.
Francisco Oliveira
Parede-Cascais-Portugal
PS-Vou enviar este "comment" (chamemos-lhe assim) via "anónimo" pois tentei fazê-lo a partir do meu endereço no Google e aparentemente não seguiu.

2:10 da tarde  
Blogger Neto said...

Cheguei ao contacto com a tua história pessoal através de um colega e amigo que ma enviou hoje po e-mail. Ainda não a li toda mas, uma conclusão já posso tirar: passamos pelos mesmos locais em Luanda e vivemos algumas histórias parecidas, senão as mesmas. Passar testemunhos é não faltar à História.

2:39 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Afinal aqui é que devia dizer que sou a Gracinha Coelho.
Por engano comentei a seguir.

Ficarão marcas minhas por aqui fora.

beijo grande

8:12 da manhã  
Blogger MariaNJardim said...

Passei por aqui e gostei.
Sou natural de Moçâmedes e hoje vivo em Portugal pelas mesmas circunstancias...
Os meus cumprimentos
www.princesa-do-namibe.blogspot.com

1:11 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

caro xinguila, Foi com saudade que li os pedaços da tua vida.

Bem hajas

12:50 da tarde  
Blogger jose neves ferreira said...

Há neste belo desfiar de recordações,q/dizem muito a quem pertence àquelas esplendorosas terras de Angola, 2 coisas q/ gostava de aludir:1) o amigo e vizinho João Nicolau é,concerteza,o irmão mais novo da m/mulher, filho do Snr. Nicolau; 2)o ataque de 4 de Fevº.1961 por membros do MPLA é uma versão fantasiosa que o MPLA criou, q/também inventou q/o MPLA nasceu em Luanda a 10.12.1956, p/dar um cunho de maior autenticidade nacional e primordial ao MPLA, no confronto c/aUPA(FNLA),q/foi fundada em 1958 no Congo Belga,portanto no estrangeiro. Isto está bem demonstrado p/historiador angolano Carlos Pacheco no s/livro "MPLA-Um Nascimento Polémico";Joaquim Pinto de Andrade, no prefácio deste livro da sua leitura sintetiza:o MPLA foi concebido em Tunes, em Janº.1960 e nasceu em Conakry, em Junho do mesmo ano. Por outro lado, há hoje poucas dúvidas q/o"4de Fevereiro" foi feito pelo ELA-Exercito de Libertação de Angola, sob o comando de Neves Bendinha e sob o patrocínio politico directo do Cónego das Neves.

11:22 da manhã  
Blogger Unknown said...

Carissimo Helder,
Acabei de reler a tua "viagem", e foi com uma enorme saudade desses tempos felizes vividos em Angola, que resolvi deixar aqui o meu obrigada. Como já aqui foi dito, ler estas tuas memórias, sobretudo a parte final, fez-me voltar a percorrer lugares que me são imensamente familiares, e a recordar nomes de pessoas que também conheci.
Um abraço por estes momentos tão gratos que me proporcionaste,
Teresa Mercês de Mello

3:32 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caro Tio Helder,

Olá, tudo bem? Aqui é a sua sobrinha, a Belinha. Gostaria de lhe agradecer imensamente por contar mais sobre Angola, sobre a sua história, sobre a história de nossa família, de nossas vidas. Algumas dessas histórias aqui relatadas a Vovó já havia me contado várias vezes, ouvia tudo com muito carinho e atenção, desde muito pequena, ela me contava exatamente com a mesma riqueza de detalhes, ela sempre se emocionava, ficavámos até tarde da noite, conversando e tomando chá preto com biscoitos, sinto muitas saudades disso. E hoje ao ler tudo isso, fiquei muito...muito emocionada e orgulhosa de você! Muito obrigada por tudo! Estamos com muitas saudades!!! Beijos para você, Tia Estela e para o Marco. Que Deus os abençoem. Beijinhos. Belinha

4:21 da tarde  
Blogger Mário Russo said...

Caro Helder,

Que bom ler a tua/nossa história. Sou um dos manos Russo, de Sá da Bandeira, o Mário da engª civil. O Toninho, de economia, vive no Brasil e já esteve nos EUA. É director de RH da DOW para a América Latina. Estivemos na grande RU4.

Eu vivo em Portugal. Doutorei-me em Civil e sou prof.

Curiosamente estou a escrever-te de Luanda, onde sou prof. convidado da nossa vetusta Universidade, do mestrado em engenharia do ambiente (o 1º da sua história).

É uma cooperação da FEUP com a UAN (Univ Agostinho Neto).

Fiquei emocionado pelo teu relato elegante, claro e sintético.

Parabéns.

Um grande abraço,

Mário Russo
mariorusso@netcabo.pt

10:42 da manhã  
Anonymous Luis Parreira said...

Há diferentes opiniões e atitudes na interpretação que fazemos da realidade histórica da soberania portuguesa em Angola, talvez por eu ser Angolano e ter nascido Português, vivi intensamente os últimos 35 anos, tanto da terra onde nasci como do meu pais que é Portugal, tanto em Portugal como em Angola, vivem pessoas que se um reencontram com a história,e a história de Angola não começou na rainha Ginga, é um paradigma, porque são, negros , mulatos e brancos, e como sabe muitos não fugiram para Portugal em 1975 como era suposto.
Na actualidade muitos portugueses e angolanos, continuam a ter a coragem de discutir, porque razão Portugal abriu mão do direito histórico a Angola, deixando-se levar por uma falácia de alguns poucos que apregoavam que os milhares de brancos ali nascidos não podiam ser angolanos por causa da sua cor da pele sendo isso, uma vergonhosa falsificação da história. Porque os antepassados de muitos negros que hoje se dizem «genuínos» e «donos da terra» ocuparam os territórios que actualmente compõem Angola, pouco antes, e, às vezes, pouco depois de os portugueses terem chegado e, muitas vezes, ao mesmo tempo que os colonizadores. Os únicos angolanos genuínos são, curiosamente, os mais marginalizados dos nativos: os Khoisans bosquímanes e hotentotes ) que se fixaram em Angola há mais de 11 mil anos e os Vátuas que habitaram a sua região situada nos desertos do Namibe há mais de 3 mil anos. Todos os outros povos fixaram-se em Angola a partir dos grandes movimentos migratórios da população banto, que se foram miscigenado e cruzando entre si. Afinal, o melhor mesmo é não confiarmos naqueles que querem reescrever a história e amarmos Angola.

11:16 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

senti minha alma chorar ao ler a sua mensagem de saudade, dor...eu sou a filha dum mlitar que fazia serviço na cadeia de S.Paulo aliais a casa de reclusao e fui testemunha do assalto à cadeia, da gritaria e do tiroteio, dos assaltantes houve duas vitimas e nossas o cabo QUIM, europeio...quantos aos policias estes foram assassinados quando faziam serviço no alto da Maianga...eu era nessa altura uma jovem de 17 anos e filha dum oficial...triste o que aconteceu ,Angola era uma linda terra africana e Luanda uma cidade maravilhosa Leonida Borges

6:28 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

se alguem se recordar de mim me envie uma mensagem...estudei no Liceu Femenino D.Guiomar de Lencastre...vivi no Bairro Militare depois na casa da Reclusao de Luanda...gostava de ir aos progamas Cazumbi etc etcmeu E-mail leonida@gmx.ch...vivo quase hà quarenta anos na Suiça....

6:34 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Caro Xinguila,
parabéns pelo conteúdo e qualidade do blog.
estou pesquisando a historia do município de Viana. Gostaria de apoio/material/fotos antigas.
obrigado !
Alexandre

1:03 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

I сoulԁ not гesist commenting.

Pеrfectly written!

Also viѕit my web site ... v2 Cigs Reviews

3:09 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Artigo interessante que narra a historia pessoal de um participante e agente da historia de Angola. Este artigo ilustra os diferentes papeis que um indiduo pode exercer e as diferentes perspectivas que um mesmo agente pode viver.
No caso do Helder Ponte, teve a amarga experiencia da fazenda para a qual ja nao pode voltar, numa altura em que nao entendia o que estava a acontecer. Nos ultimos anos, teve a oportunidade de participar em debates e accoes politicas alinhadas com o objectivo de restaurar a igualdade de direitos para todos os angolanos.
O seu artigo despertou em mim o desejo de documentar a minha historia e eventualmente po-la a disposicao de outros...

De um natural de Cabinda, residente em Luanda!

5:28 da tarde  
Blogger Unknown said...

Caro Xingula!1
Que descrição fantástica sobre a nossa angola. Voltei para trás no tempo e revivi tudo aquilo pq passámos em tempos de guerra. Muito parecida com o que a minha família passou nessa época. Felizmente todos se salvaram. A fazenda foi toda destruída. Mais tarde o meu pai reconstruiu algumas coisas, e entre os 15/17 anos ainda lá fui passar as férias grandes.
Sabes? tenho menos 3 anos que tu e tb vivi na Vila Damba,dos 5 dias de vida até aos 7,(quando fui estudar para Luanda).O meu avô paterno tinha por lá uma fazenda de café "Roça Maria Dora". Fui para a escola nº8, tal como tu. Os meus avós tinham um apartamento na Mouzinho de Albuquerque.E nessa mesma altura tb ia muito á Maianga a casa dos avós maternos.
O mundo é pequeno realmente. Da Damba tb conheci a família Nicolau, os Narcisos, os Neves Ferreira, O Pires e uns tantos mais de que tb te deves lembrar.Eu sou da família dos Sousa. O meu pai chamava-se Henrique e o avô José António. Eu sou Margareth. Uma Margareth emocionada, com tudo o que acabei de ler. Parabéns e Obrigada.

11:47 da manhã  
Blogger Unknown said...

Gostei do artigo que relata os eventos ocorridos em Angola, e sobretudo do seu posicionamento livre e aberto para uma sociedade Angolana.promissora mas que infelizmente descambou e subverteu as esperanças da sua população de todas as origens e etnias. Levarão uns boas gerações para o país se assumir firmemente, e dou como exemplos o Rwuanda e o Senegal. Já não estaremos cá, mas a seu tempo o caminho africano de desenvolvimento em Angola vingará.

1:34 da tarde  
Anonymous José Barata said...

Ao meu patrício Pontes,
Parece que escrevi demais e só aceita 4096 caracteres e não consigo enviar. Vou fazê-lo em duas ou três partes.
Acabei de ver casualmente este blog e li a sua história que infelizmente é a história de todos nós que nascemos naquele belo País e que tivemos de sair de lá às pressas em 75.
O curioso é que tenho uma vaga ideia de si acho que até fomos pelo menos até ao 3º.ano do Liceu colegas da mesma turma, mas posso estar enganado. Também estudei no Liceu Paulo Dias e Novais, o saudoso liceu só para alunos masculino seu entrei um ano depois de si, mas como disse que reprovou no primeiro ano acho que o encontrei no seu segundo ano o meu primeiro na mesma turma.lembro com saudades de todo esse tempo e dos professores que citou, dos quais também destaco o professor Link do desenho e pintura (acho que todos os que lá passaram destacam esse professor pela forma como passava mensagem e responsabilizava o aluno) e também o Padre (depois Bispo mais tarde) André Muaca, absolutamente fabuloso na forma como dava as aulas de moral tentando recriar com gestos e caretas os momentos em que contava a s passagens bíblicas). Adorei também a prof. Paulina de Francês, embora tivesse dois anos outro professor de Francês que não fala nele mas muito conhecido e que os alunos também gostavam embora tivesse um ar autoritário que era o prof. Almeida; Lembro ainda com saudades a prof. Margarida de Português já veterana na altura mas que povoava os nossos sonhos eróticos de jovens pois andava sempre com umas mini-saias curtíssimas e nós muitas vezes depois das aulas saímos e ficamos perto do carro dela que era um Fiat na altura daqueles que as portas abriam ao contrário só para à ver entrar e apreciarmos a roupa interior (leia-se cuecas) pois apostávamos de que cor seriam. recordo ainda a prof. do canto coral que tinha um Studebaker um carro americano com a roda suplente em cima da mala traseira, e que implicava sempre comigo pois dizia que eu tinha uma voz de segunda fosse lá o que isso fosse e que me chateava à brava. lembro também com saudade o prof.Bento que era da educação física e que ainda tive o privilégio de encontrar já em 1980 por aí aqui em Portugal em Queluz onde ela morava, e que cumprimentei disse-lhe que tinha sido seu aluno no Paulo Dias e ele deu-me um grande abraço e ficamos alguns minutos à conversa.Enfim recordo como um dos meus melhores tempos esses anos no Paulo Dias, quando fiz o 5º ano saí e infelizmente por dificuldades financeiras tive de voltar para Porto Amboim, Kuanza-Sul, onde nasci e viviam os meus Pais, o meu pai era da Sertã e a minha Mãe era de Serpa, já ambos falecidos um com 95 anos e a minha Mãe com 94 anos.

12:03 da tarde  
Anonymous José Barata said...

Parte II

comecei a trabalhar na maior companhia do mundo de algodão que era a Algodoeira Agrícola de Angola (os famosos 3 "aaa" que mais tarde serviu de símbolo para a marca do óleo de girassol que eu vi nascer exactamente nessa Empresa (as primeiras garrafas que saíram das primeiras experiências feitas por volta dos anos 67, era de um líquido quase negro e ninguém na altura ainda tinha a certeza que o óleo de girassol pudesse ser comercializado, mas a verdade é que ele hoje está em todo o mundo. Nasceu ali e nos testes que foram feitos em Portugal na fábrica da Ponte da Pedra no Norte do País, onde era a sede da Algodoeira. Enfim um Liceu e uma turma que tinha gente muito boa, e da influência do prof. Zink ficou-me o amor pelas artes que hoje pinto embora como curioso apenas (ainda estou a trabalhar com 72 anos penso que tenho menos um que si e quando me reformar talvez aos 73 a pintura vai ser o meu passatempo para além de continuar a escrever as minhas memórias sobre aquele grande País que hoje seria uma nação imparável).Daquela turma saiu também, graças ao prof. Zink (pintou as paredes laterais do écran do cinema Império ali para os lados do Pingo Doce o 1º.centro comercial de Angola e fui lá algumas vezes para ajudar nalgumas coisas e vê-lo fazer o trabalho, que sei ainda lá está embora vandalizado e com as cores esbatidas no tempo), um dos únicos artistas plásticos actuais de Angola que tem carreira mundialmente conhecido como pintor e escultor que era o António Monteiro nosso colega daqueles tempos e que agora usa o nome artístico de António Ohm, já com exposições nas maiores galerias mundiais. Dali também saíu o Filipe, não me lembra o resto do nome mas que faz filmes e está ligado as artes cinematográficas e outras tantos que andam por esse mundo fora nas suas várias profissões, como eu que vivo em Portugal desde 1975 (saí de Angola cinco dias antes da independência e nunca mais voltei) e também sou economista e auditor e contabilista, duma empresa ligada ao turismo em Lisboa. Dali também saíu gente ligado ao desporto e lembro-me bem dos vários “tremunos” de futebol (fala do Dedé e realmente era um excelente jogador mas eu acho que eu fui melhor....rrrssss, não ligue é só vaidade) onde fui um excelente executante e lembro-me bem do meu último ano no Liceu fomos a final dos campeonatos da Mocidade Portuguesa com o nosso rival o Liceu Salvador Correia, em pleno estádio dos Coqueiros em Luanda ainda pelado e o Inácio, um nosso colega negro, que gostava de me ver jogar nos tais tremunos aí no Liceu, fez grande força para eu jogar pois era apenas um miúdo ainda com 15 anos (os outros já tinham quase todos 18 ou 19) e ganhámos por 2-1, com um golo do Inácio defesa central que mais tarde foi o primeiro capitão da Selecção de Angola pós independência e de outro avançado negro o Bulica que também fez carreira no futebol lá da terra.

12:05 da tarde  
Anonymous José Barata said...

Parte III

Mas havia bons jogadores no Liceu como o Octávio que depois jogou no Benfica de Luanda, era médio esquerdino, os irmãos Moutinho que depois jogaram no ferrovia de Luanda, o Juca que jogou no FCLuanda, o Dedé, e mais uns quantos que a memória já não recorda. Também joguei Andebol, Basquetebol que também jogamos uma final mas perdemos onde sobressaía o Dinis que também andava no Liceu mas noutra turma (assim gordinho e cabelo alourado e que depois jogou basquete no Benfica de Luanda), joguei andebol mas nunca fui grande coisa e fiz atletismo e futebol de salão, que ainda joguei aqui em Portugal até aos 61 anos quando finalmente acabei com as lides desportivas. Aproveito para fazer uma rectificação ao que diz Angola ser campeão do mundo de hóquei em patins, pois embora bons nessa modalidade (Moçambique era melhor aliás nisso e no basquetebol)), nunca fomos campeões do mundo pelo menos que me lembre. Na vela sim tivemos o Sena que ganhou vários títulos e penso que até uma medalha olímpica. No basquetebol tivemos nos juniores uma excelente equipa que foi campeã nacional em Portugal que era o Vila Clotilde com o Mário Rocha, o Nelson, o Octávio e vários outros e que dava gozo ver jogar, eram excelentes. e penso que o Octávio e o Mário Rocha também foram alunos do nosso Liceu. Foi uma grande escola e dali saíram para o mundo, médicos, economistas, pintores, jornalistas, locutores de rádio (o famoso Luanda 68, 69, 70 e por aí fora) e muito mais gente útil para a sociedade.
Enfim muito gostaria de dizer mas também guardo muita coisa para escrever nas minhas memórias que pode ser um livro, um blog ou outra coisa qualquer e agradeço-lhe o facto de contar a sua história, que me fez recordar emoções passadas e me fez voltar ao passado, o nosso passado muito rico de cultura, alegrias, ensinamentos, vivências e também algumas tristezas poucas, mas muito fortes e para a vida como foi a de ter de deixar a nossa Terra.
Desejo-lhe muita saúde, continue a escrever e a recordar e esteja onde estiver nós os angolanos do antigamente estaremos sempre ligados brancos, negros e mulatos, por laços que nenhuma politica podem destruir porque são laços de irmandade e de igualdade. Obrigado pelo momento. Ah, sou o Barata, José Barata mas todos me tratavam por Barata. Só o Inácio curiosamente me tratava por Zé. Parabéns pelo blog e obrigado.

12:07 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Procurei saber algo sobre famílias de apelido Lencastre que fossem de Luanda ou tivessem lá vivido, devido ao edifício antigo do século XVI ou XVII que dizem sem assombrado e com muita história triste.
Mas o que me apareceu foi este artigo (que é muito bom) mas que nada tem a ver com o que procurei. Porque será ??

5:30 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Meu querido amigo Xinguila, é tão bom saber de ti. Continuo a seguir as tuas falas, essas memórias que nos viram crescer e esses bicos-de-lacre pousados num pôr-do-sol da nossa vida e de Luanda. Aquele abraço sempre nosso e único.

6:29 da manhã  

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