1 - Viagem Pela História de Angola

Uma viagem através dos tempos, povos, personagens e acontecimentos que moldaram a História de Angola.

Nome:
Localização: Cranbrook, Colômbia Britânica, Canada

Helder Fernando de Pinto Correia Ponte, também conhecido por Xinguila nos seus anos de juventude em Luanda, Angola, nasceu em Maquela do Zombo, Uíge, Angola, em 1950. Viveu a sua meninice na Roça Novo Fratel (Serra da Canda) e na Vila da Damba (Uíge), e a sua juventude em Luanda e Cabinda. Frequentou os liceus Paulo Dias de Novais e Salvador Correia, e o Curso Superior de Economia da Universidade de Luanda. Cumpriu serviço militar como oficial miliciano do Serviço de Intendência (logística) do Exército Português em Luanda e Cabinda. Deixou Angola em Novembro de 1975 e emigrou para o Canadá em 1977, onde vive com a sua esposa Estela (Princesa do Huambo) e filho Marco Alexandre. Foi gestor de um grupo de empresas de propriedade dos Índios Kootenay, na Colômbia Britânica, no sopé oeste das Montanhas Rochosas Canadianas. Gosta da leitura e do estudo, e adora escrever sobre a História de Angola, de África e do Atlântico Sul, com ênfase na Escravatura, sobre os quais tem uma biblioteca pessoal extensa.

domingo, dezembro 31, 2023

1.4 Macro-História Bantu, Etno-História da Damba, e Refugiados do Congo Belga

Terra do Preste João, mapa de Jacob Ortelius, 1688


Amigo Leitor - Para ler os meus outros blogs visite o Roteiro de Viagem. Obrigado.

 

4. Factores Macro-Históricos na Civilização Bantu

 

Antes de cobrir a etno-história da região da Damba é útil cobrir de uma forma macro-histórica muito geral as quatro transformações que mais influenciaram a história de África a sul do Sahara nos últimos cinco mil anos:

    - as migrações Bantu
    - o tráfico de escravos nos contextos africano, da África central, e de Angola e Congo 
    - o grande intercâmbio colombiano
   -  a partilha de África e o colonialismo europeu 


4. 1 As Grandes Migrações Bantu

Se bem que com certo risco, podemos classificar a antiguidade dos povos que habitaram o actual território de Angola de acordo com o seu modo de produção - colectores primeiro, agricultores depois, criadores de gado mais tarde, e por último comerciantes.
 
Os povos pré-Bantu (Khoisan e M'Buti) foram os primeiros grupos humanos a habitar a região a que hoje chamamos Angola. Estima-se que os Khoisan (Bosquímano) foram os primeiros grupos humanos a habitar todo o território actual de Angola, vindos do Sul e do Leste há cerca de vinte a cinquenta mil anos atrás. Depois, em data ainda não confirmada com precisão, vieram os povos M'Buti (Pigmeus) que removeram os Khoisan e habitaram o território a norte da linha de divisão de águas ao longo do planalto angolano até à bacia do Rio Zaire na África Central, continuando os Khoisan a habitar o território a sul da linha de divisão de águas (Bacias do Cunene e Cubango) e a área costeira (deserto do Namib). Ambos os povos Khoisan e M'Buti foram eventualmente conquistados, absorvidos, ou removidos pelos povos Bantu, que passaram a ocupar a totalidade do território actual de Angola. 

O povo Bakongo tem origem remota nas segundas migrações Bantu que partiram da região-núcleo que é situada no que é hoje o país dos Camarões a norte do Golfo da Guiné. Esta migração seguiu em direcção para sul ao longo da costa de África até às regiões norte e centro de Angola actual entre os primeiros séculos da nossa era e o século XI. Em termos de tecnologia, os Bantu eram agricultores e dominavam a metalurgia do ferro, uma vantagem chave que resultou na sua dispersão e conquista de todo o território anteriormente ocupado pelos M'Buti  e Khoisan que viviam no que veio a ser o actual território de Angola.


As Grandes Migrações Bantu, de 500 AC a 600 DC 


Entre cinco mil e dois mil anos atrás os primeiros povos Bantu chegaram à região costeira do Congo e Angola. Ainda sem confirmação, estima-se que  os primeiros povos de ascendência Bantu a chegar à costa de Angola foram os Ambundos. Cerca de meio milénio mais tarde chegaram à Bacia do Zaire os Bakongo, que passaram a ocupar as regiões costeiras de Loango e Cabinda, o Baixo-Zaire, e o planalto do Congo até para além do Rio Cuango e para norte até ao Rio Zaire. 


O Mapa de África, de Fillipo Pigafetta, 1591


Os Ambundu e os Bakongo usaram a rota migratória directamente para sul ao longo da costa Atlântica, tendo os Ambundu chegado primeiro (estima-se que no Séc. VI e VII) ao actual território de Angola que os Bakongo, que chegaram no Séc. XI. Os outros povos ancestrais (Nganguela (agricultores), Lunda-Tchokwe (comerciantes), Ambó (pastores), e Xindonga (agricultores) que mais tarde emigraram para o actual território de Angola tomaram originalmente a rota leste, da região dos Camarões em direcção aos Grandes Lagos, donde depois emigraram  para oeste e sul até à bacia do Rio Zambeze e mais tarde ainda mais para oeste e sul até chegarem aos seus territórios em que é hoje Angola. Os povos Umbundu e Nhaneka-Humbe têm origem mais na miscegenação de povos vizinhos resultantes do tráfico de escravos (comerciantes), do que migrações de longo curso. Cabe ainda mencionar a excepção do Povo Herero (pastores) que emigrou do território actual da Namíbia com direcção a norte, para o canto sudoeste de Angola.


O continente africano até ao século XV,
mostrando o padrão das migrações Bantu na África Central Ocidental

 
O mapa a seguir dá uma indicação mais detalhada dos movimentos migratórios Bantu na África central, incluindo a bacia do Zaire e os planaltos do Bié, Huambo, e Huíla:


Movimentos migratórios Bantu no actual território de Angola,
com estimativas de datas


4.2 O Tráfico Trans-Atlântico de Escravos
 
A instituição da escravatura na Àfrica central já existia antes da chegada dos portugueses ao Congo. Uma pessoa tornava-se um escravo como prisioneiro de guerra, por sentença de crime grave na comunidade, por pagamento de dívida, e em raros casos por entrega própria ou de familiares por razões de pobreza irremediável. Por norma, o escravo na sociedade ancestral Bakongo era tratado com indulgência, como uma pessoa da comunidade e não como uma mercadoria. Embora o escravo não podia ser considerado como membro de uma kanda, nem tivesse direitos de propriedade, ele/ela não passava o estatuto de escravo para os seus filhos, e podia em certas situações tornar a ganhar o estatuto de não-escravo.

A região costeira e todo o hinterland até cerca de mil quilómetros da costa de África a sul do Gabão até um pouco a sul de Benguela (Caconda, Quilengues, e Nano), foi durante todo o período do tráfico trans-Atlântico a que mais escravos forneceu às Américas (Sul, Norte e Caraíbas). O número de pessoas vítimas do tráfico estima-se em cerca de 10 milhões de africanos arrancados das suas terras e vilas durante um período de mais de 350 anos (1455 - 1880).
 

Mapa holandês antigo das Ilhas de São Tomé e Príncipe, meados do séc. XVII


 
Com a chegada dos portugueses à foz do Rio Zaire em 1483 e o estabelecimento de relações com o Antigo Reino do Congo, a instituição tradicional da escravatura conguesa mudou radicalmente. Em vez de continuarem a viver na comunidade, o escravo passou a ser uma mercadoria e a ser exportado para mercados longínquos. Após a chegada dos portugueses, o destino inicial da maioria dos escravos do Congo eram os engenhos de açúcar na Ilha de São Tomé, estabelecidos pelos cristãos-novos portugueses que para ali se refugiaram depois das perseguições aos judeus em Portugal, entre 1481 e 1540. De facto, os primeiros habitantes das ilhas de São Tomé e Príncipe foram os escravos vindos do Congo e Angola, então chamados Angolares, pois estas ilhas (então ainda desabitadas) foram descobertas em 1470 pelos navegadores portugueses João de Santarém e Pero Escobar
 
Depois, com o despertar do ciclo do açúcar no Brasil, durante as duas últimas décadas do séc. XVI, a maioria dos escravos foram levados para os engenhos na costa brasileira da Amazónia, Grão Pará, Maranhão, Pernambuco, Recife e Bahia a norte, até às cidades do Rio de Janeiro, São Vicente (São Paulo), e um pouco mais a sul para a Colónia do Sacramento e até Buenos Aires, de onde eram levados para as minas de prata da Bolívia e do Perú. 


A cidade de Loango, gravura de Olfert Dapper (ca. 1680)


Entretanto, após este período inicial, grande número de escravos do Congo foram levados para as Caraíbas (para Cuba e Haiti em especial), pois os holandeses, ingleses e franceses copiaram nas Antilhas e nas Guianas o modelo de exploração agrícola tropical com base na plantação de açúcar estabelecida pelos portugueses na Ilha da Madeira, depois melhorado na Ilha de São Tomé, e mais tarde ainda mais aperfeiçoado no Brasil. 
 
Durante o ciclo do ouro e diamantes no Brasil (nos princípios do Séc. XVIII), o fluxo de escravos aumentou para alimentar as minas de ouro em Minas Gerais, para além das minas de prata do Cerro de Potosi no Perú, em que durante o período de 350 anos de trabalho na minas, morriam entre 5 a 10 escravos por dia.


O Castelo da Mina, a principal feitoria portuguesa
estabelecida em 1471 para o resgate de escravos no golfo da Guiné


Já no Séc. XIX, e como resultado do esforço da abolição da escravatura na Europa, os escravos de Angola, continuaram a ser levados para as as plantações de algodão e tabaco nos estados do sul dos Estados Unidos da América até 1871, para as plantações de açúcar e de tabaco em Cuba, e para as fazendas de café do Brasil, até à a promulgação da Lei Áurea no Brasil em 1888, que aboliu de vez a escravatura e o tráfico de escravos no Brasil.
 
 
Caravana de escravos a caminho da costa do Senegal (Séc. XIX)


É de notar aqui que dois outros grandes sistemas de exploração de escravos africanos existiram em África, mas talvez com dimensão inferior ao do tráfico trans-Atlântico de escravos. Desde os tempos muito antigos da civilização egípcia, do apogeu de Cartago, e mais tarde do Império Romano, escravos eram trazidos do Sudão (em árabe bilad al-sudan - a terra (país) dos negros) e do Sahel através do deserto do Sahara (conhecido como o tráfico trans-Sahariano de escravos) para servir esses mercados. Este sistema durou mais de dez séculos, estimando-se que cerca de dez milhões de escravos foram extraídos da África a sul do Sahara. A principal região fornecedora de escravos para este mercado foram os povos que habitavam a faixa do Sahel e sul até à costa do golfo da Guiné, e através de todo o território a sul do Sahara até ao Sudão e à costa do Mar Vermelho. O comércio trans-sahariano de escravos era controlado por potentados muçulmanos.


Rotas do tráfico de escravos trans-Sahariano


Com a expansão do domínio religioso muçulmano à antiga Pérsia, Índia, Ásia Central, e litoral africano no Índico, desde Axum até Sofala, o tráfico de escravos africanos aumentou muito, pois o mercado consumidor de escravos africanos aumentou exponencialmente com a exportação de escravos para a Turquia (Império Otomano) Índia (Império Mogul), Ásia Central, e mercadores da Insulíndia. O principal mercado de escravos eram os portos da costa Swahili de Melinde e Quíloa, as ilha de Zanzibar e de Moçambique, e a costa de Sofala (já no actual território de Moçambique). O volume do sistema ìndico de tráfico de escravos foi menor e durou menos tempo (dos Séculos X aos fins do Século XIX) do que o trans-sahariano e que o trans-Atlântico. Este comércio era também controlado por potentados muçulmanos da região.


Mapa do tráfico de escravos árabe na África Oriental 


As populações que viviam ao longo da costa e no interior da bacia do rio Zaire, e territórios para além da Lunda e da bacia do rio Zambeze a leste, e para sul até para além dos planaltos do Huambo, Bié e Huíla a sul, foram as que sofreram os horrores da escravatura por mais tempo. Apanhados nas guerras kwata-kuata (razias de escravos) no interior, com ou sem a conivência dos sobas locais, as populações eram arrancadas das suas aldeias e eram organizadas em caravanas de escravos que tinham que fazer longas caminhadas acorrentados e a pé  (alguns por mais de mil quilómetros) desde o local de aprisionamento até Luanda e Benguela na costa atlântica.
 
Aspecto de um mercado árabe de escravas europeias dos Balcãs


As rotas locais do tráfico de escravos na África Central e actual território de Angola, seguiam em geral o curso e a orientação dos maiores rios no fim dos quais se situavam os principais portos negreiros. Nos primeiros tempos após a chegada dos portugueses, os escravos eram capturados nas regiões vizinhas aos rios no território Bakongo (Loango, Malembo, Cabinda, e Pinda), mas à medida que as populações rareavam nestas regiões devido ao volume anual de escravos capturados, os mercados fornecedores passaram mais para o interior, chegando a atingir mais de mil e quinhentos quilómetros da costa (para além dos rios Cassai, Zambeze, Lungué-Bungo, Cuando, e Cubango.


Uma caravana de escravos africanos a serem levados para a costa (Séc. XVIII)

Assim, temos o mercado do Congo que abrangia o hinterland do Loango e Congo (povo Bakongo) que ia confluir nos portos negreiros de Pinda (Sonho), Loango (Ponta Negra), Malembo e Cabinda. O nome ancestral da cidade de Cabinda é "Tchioa", o que significa empório de grande comércio de pescados. A área de captação de escravos para este mercado era muita vasta abrangendo Cacongo (Lândana) e o Loango (a norte da floresta do Maiombe), Mpumbu, Nsundi (Lago Malebo, Kinshasa) e Tio (Bateke / Anzico) e as áreas de Kuilo, Nkusu, Sosso, Zombo, Yaka, Wando, e Sonho. Inicialmente, os escravos eram levados de Tchioa e Cacongo para a Ilha de São Tomé, mas depois a principal zona de destino passaram a ser as costas brasileiras de Maranhão, Pernanbuco, Pará, e Bahia. O porto de Loango foi durante muito tempo um uma das principais bases negreiras francesas na região para suprimir as necessidades de força de trabalho escrava para as plantações e engenhos de açúcar da colónia francesa do Haiti.


Principais reinos da África Central fornecedores de escravos para o tráfico trans-atlântico de escravos (Sécs. XVI - XIX)
 
 
O mercado do Ambriz captava escravos ao longo dos rios Loge e Mbridge nas áreas vizinhas dos Dembos, Encoge, Caipemba, Nabuangongo, Ambuíla, Ambuela, Ambrizete, e Tomboco, povoadas pelo povo Bakongo. O mercado do Ambriz foi dominado durante muito tempo por negreiros ingleses, que exportavam escravos principalmente para as plantações de açúcar nas Antilhas e para os Estados Unidos da América.
 

Escravo Africano acorrentado e coberto por malha de rede para não fugir. Golfo da Guiné Séc. XIX


O mercado de escravos da bacia do Cuanza, um monopólio português com base em Luanda, abrangia as áreas de captação dos antigos potentados ambundos de Angola, Kissama, Dondo, Muxima, Massangano, Pungo Andongo, Ambaca, Ndongo, Matamba, Jinga, Cassange, Holo, Songo e Lunda, portanto a maior parte das actuais províncias de Luanda, Malange, Cuanza-Norte, Cuanza-Sul, e Lunda-Norte. Os principais mercados de destino de escravos que saíam de Luanda era o Brasil (Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul, e a Colónia do Sacramento, actual Uruguai), Buenos Aires, e a as minas no Perú e na Bolívia. Luanda foi durante todo o período do tráfico trans-Atlântico de escravos (três séculoes e meio) o maior porto exportador de escravos do Atlântico.


Caravana de escravos na África Oriental a serem levados para a costa do Índico (Séc. XIX)


O mercado de escravos de Ngunza, abrangia as regiões vizinhas do Seles, Quibala, Amboím, e as áreas ribeirinhas ao rio Queve (Cuvo), povoadas pelo povo ovimbundo. Antes da fundação de Benguela, o principal porto negreiro da região era Benguela-a-Velha (Porto Amboím), mas mais tarde (1769, no tempo do Governador Sousa Coutinho), o porto negreiro principal passou a ser Novo Redondo (Ngunza). 

O mercado de escravos de Benguela, abrangia o hinterland dos planaltos populosos do interior do povos ovimbundo, ao longo dos rios Catumbela e Caporolo, bem como as terras mais para o interior, como Caconda, Quilenges, Bibala,  Nano, Lubango, Huambo, Bié, Andulo, Ganguelas, chanas do Moxico até além-Zambeze, e Cuando Cubango. A maioria dos escravos embarcados em Benguela e Novo Redondo eram levados para o Rio de Janeiro, São Paulo, e sul do Brasil. O número de escravos exportados por Benguela foi também muito alto, mas inferior a Luanda.
 
 
Carta dos Reinos de Angola e Benguela, Séc. XVII


A caminhada do ponto de captura até ao porto negreiro, que durava de três a nove meses e em certas áreas ainda mais tempo, era feita sob condições muito duras, a pé, sujeita a todas as formas de violência, fome, doença, ataques de animais selvagens, e de terror de assaltos de outros ladrões de escravos. Quando chegavam já exaustos à costa os escravos eram guardados em barracões nauseabundos durante alguns meses mais até que o próximo navio negreiro os levassem para o além-Kalunga.


Passagem do Meio - Escravos no porão do tumbeiro brasileiro "Albanez",
apreendido pela Royal Navy na foz do rio Quanza em 1845


Ao chegarem ao porto de destino e antes de irem para os leilões de escravos para serem vendidos, os escravos recebiam uma ou duas refeições melhores, e eram depois inspeccionados, lavados, e besuntados com óleo de palmeira para parecerem mais saudáveis e luzidios e assim poderem atrair um preço mais alto no leilão. Depois de comprados, os escravos eram levados para o engenho, plantação, mina, ou residência doméstica e marcados a ferro em braza com a marca do dono.

Croquis do tumbeiro britânico "Brookes", 1800
Note-se como os escravos eram "armazenados" sem espaço sequer
 para mexer os seus corpos durante  toda a viagem no convés e no porão 
para maximizar a carga de escravos no navio.

Estima-se que cerca de 20% a 30% das vítimas não sobrevivia a viagem do interior à costa e o período de espera de embarque, que podia chegar a muitos meses, o que se traduziu em mais de dois milhões de homens, mulheres, e crianças perecidas nos caminhos da morte. A este número já em si catastrófico, temos que adicionar cerca de 10% a 15% mortalidade na travessia atlântica  nos tumbeiros (a Passagem do Meio), que se traduziu em mais de um milhão de africanos mortos na medronha travessia. 


Escravos num tumbeiro Francês, ca. 1800
Note-se que as mulheres eram separadas dos homens,
para mais fácil accesso à tripulação do tumbeiro.

 
Os escravos revoltavam-se sempre que possível da tirania dos traficantes, tripulação de tumbeiros,  senhores de engenhos de açúcar, e autoridades coloniais, chegando a criar estados independentes com governo e território independente como os quilombos no Brasil. O quilombo de Palmares é um exemplo de um que resistiu durante décadas à conquista pelos luso-brasileiros.


A revolta de escravos do tumbeiro Amistad, ao largo de Cuba em 1839 

 
Assim chegamos a uma estimativa de cerca de 5 milhões de escravos arrancados aos povos do interior do que é hoje Angola e Congo (RDC e Brazza), e exportados pelos portos de Loango (Ponta Negra), Malembo e Cabinda, Boma, Pinda (Sonho), Ambrizete, Ambriz, Luanda, Benguela-a-Velha (Porto Amboím), Novo Redondo (Ngunza), Benguela, e Catumbela. Os navios que transportavam escravos chamavam-se tumbeiros (navios de morte, túmulos flutuantes) pela elevada mortalidade dos escravos que transportavam para as Américas.


A Relevância da África Central e Angola no tráfico
trans-Atlântico de escravos (1455-1888)
 
 
Até aos fins do século XIX, a escravatura era talvez a instituição social e económica que melhor definia Luanda, pois Luanda foi durante alguns séculos o maior porto negreiro africano. Asssim, Luanda era não só um grande porto exportador de escravos, com toda a estrutura necessária ao tráfico (comércio, barracões, armazéns, transporte, hortas, água, alimentos, armação de navios, reparações, inspecção médica, pedra para baptismo de escravos, e estrutura militar para garantira segurança do tráfico), como também era uma cidade que dependia totalmente no trabalho escravo.
 
Com efeito, e até aos finais do séc. XIX, mais de metade da população de Luanda era constituída por escravos domésticos, de aluguer, e agrícolas, que faziam todos os trabalhos, desde amamentar os bébés das famílias de posses, a empregados domésticos, até transportar água do poço da Maianga (ou mesmo até do rio Bengo), como prestação de serviços, como pedreiros, sapateiros, alfaiates, cozinheiros em casas de pasto, pedreiros na construção de edifícios, etc., até soldados de "guerra preta" para suportar as guerras de "Kuata, Kuata". 
 
 
Os escravos eram sugeitos a castigos muito duros mesmo para as faltas mais leves. Escravo a ser castigado no Rio de Janeiro, em 1834

Se bem que as maiores fortunas no tráfico de escravos se fizeram em Portugal, na Inglaterra e nos Estados Unidos, também grandes fortunas se fizeram em Luanda, Benguela, em Salvador da Baía, e no Rio de Janeiro, no Brasil. O controle do resgate de escravos no interior do actual território de Angola estava nas mãos de famílias mestiças angolanas (mãe angolana e pai português) muito ricas e de grande influência na sociedade luandense, que mantinham uma vasta rede de aviados, pumbeiros e funantes por todo o hinterland do rio Cuanza, terras além Cuango, e mesmo além Cassai. Com efeito o tráfico de escravos foi a principal actividade económica em Luanda nos seus primeiros trezentos e cinquenta anos de existência. Como tal, Luanda tinha o seu pelourinho (só demolido em 1884) para administrar castigos exagerados e crueis aos escravos que desafiassem o status quo da ordem social e económica da escravatura. 


Castigos crueis e exagerados
Escravo a ser chicoteado no pelourinho do Rio de Janeiro, cerca 1836
 
 
A escravatura foi justificada e suportada por um discurso religioso que apresentava o cativeiro como um meio de salvação espiritual dos escravos. A igreja católica determinou que era responsabilidade do monarca português assegurar a catequese e o baptismo dos escravos africanos antes do embarque para as Américas, pois só assim se podia facultar a salvação da alma. 
 
Padre António Vieira pregando aos Índios

 
Com efeito, o Padre António Vieira num dos seus sermões do Rosário disse: "Oh se a gente preta tiradas das brenhas de sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus, e a sua Santíssima Mãe que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre e grande milagre!", confirmou o vínculo entre a escravidão e a salvação espiritual. Esta teoria foi oficialmente adoptada pela Companhia de Jesus, em que era aceite que a escravidão dos africanos e o comércio negreiro fossem vistos como legítimos na medida em que permitia tirar os africanos da idolatria e do pecado, e submetê-los ao domínio de senhores cristãos que os instruíam no caminho da verdadeira salvação cristã (sic!).
 

Escravo com cicatrizes de chicotadas nas costas,









foto obtida num dos estados do sul dos Estados Unidos da América, 
década de 1860

 
Assim em Luanda, os escravos deviam receber catequese e ser baptizados nos barracões de espera de embarque, antes de embarcarem nos tumbeiros. De facto, houve durante séculos nas Portas do Mar em Luanda (perto do Largo dos Correios) uma cadeira de pedra na praia da baía de Luanda, na Corimba, e no Morro da Cruz houve um espaço próprio especialmente dedicado ao baptismo de escravos por padres seculares (de maioria africanos) antes do ebarcaque nos navios negreiros para a temível Passagem do Meio, para o qual os padres reebiam uma pequena quantia por cada escravo baptizado. 
 
É certo que o mero baptismo, ainda que fosse a porta de entrada para o reino dos céus, não era suficiente para a salvação da alma, pois era preciso instruir os escravos nos mistérios da fé católica e conduzi-los a receberem os outros sacramentos, e tal só se conseguia através da catequese. Porém, a questão da catequese era mais difícil de realizar, pois por norma não havia tempo suficiente para catecatizar os escravos nos barracões de espera, nem padres fluentes nas diversas línguas nativas para o fazer, para além do facto de que os traficantes de escravos não queriam assumir quaisquer custos adicionais.

 
4.3 Rotas de Comércio

A empresa dos descobrimentos portugueses abriu o mundo para toda a sua extensão. De quatro macro-regiões económicas relativamente fechadas entre si (Europa, Mundo Árabe, Índia, e Extremo Oriente), os portuguese trouxeram "novos mundos ao mundo" com a abertura da África, das Américas, e do Pacífico ao comércio internacional de então. Esta abertura realizou-se em dois planos principais: comércio (produtos) e evangelização (mentalidades). 
 
Desde a Antiguidade até ao fim da Idade Média, ou melhor, até à época dos Descobrimentos Portugueses, o intercâmbio comercial à escala mundial operou-se basicamente em dois sentidos - do Oriente (Japão, Coreia, China, Índia, Insulíndia, Ásia Central, e Médio Oriente) para o Ocidente (Europa, Médio Oriente, e Norte de África), e vice-versa (da Europa para o Oriente). Este comércio mundial de longo curso era controlado pelos muitos potentados muçulmanos da Ásia Central e pelas répúblicas Italianas (Veneza, Florença, e Génova). Devemos ainda lembrar que havia um comércio inter-europeu muito activo ligando todas as regiões da Europa, incluindo a Rússia. 

Com a excepção da Rota da Seda, até à época dos Descobrimentos Portugueses as rotas de comércio eram predominantemente regionais - Mediterrâneo, Báltico, Índico, Insulíndia, e Mar do Japão - não ligando estas a uma rede global de comércio mundial.

Com o advento dos Descobrimentos Portugueses, o comércio mundial tornou-se pela primeira vez verdadeiramente global. Para além das antigas rotas de comércio (Mediterrâneo e a Rota da Seda), novas rotas se estabeleceram sendo a principal entre o Novo Mundo (Américas) e o Velho Mundo (Europa, e Ásia) e vice-versa e a outra entre a Europa e a África. Neste quadro global de trocas coube à Àfrica a exportação de força de trabalho através do tráfico trans-Atlântico de escravos; às Américas coube a produção de produtos coloniais (açúcar, algodão, tabaco, e café), bem como a mineração de ouro e prata; e coube à Europa a produção de meios de transporte, produtos manufacturados, e a gestão do sistema financeiro mundial.
 
Com a expansão portuguesa e holandesa na Índia e Insulíndia e a espanhola nas Américas, duas novas rotas marítimas de comércio de longo curso floresceram: a Rota do Cabo (Sul da África) trazendo principalmente especiarias da Índia e Insulíndia para a Europa, controlada inicialmente pelos Portuguese e mais tarde pelos holandeses, e a Rota do Pacífico, ligando o México às Filipinas (a Carreira de Manila, ambos sob domínio espanhol), Insulíndia, e China. Mais tarde, já no princípio do Séc. XVIII, os Ingleses passaram a controlar a Rota do Cabo quando ocuparam a Índia.
 
No quadro mundial de trocas, os grandes perdedores foram as répúblicas Italianas, o Império Otomano, os Moghuls da Índia, e os potentados da Insulíndia. O papel da China não se alterou muito, pelo que continuou a fornecer ao Ocidente tecidos, louças, chá, e especiarias, e importar prata e produtos manufacturados.
 
Com a ocupação europeia das Caraíbas e da América do Norte nos sécs. XVI e XVII, um novo sistema de trocas mundiais tomou raíz (Comércio Triangular), caracterizado essencialmente por capitais e produtos manufacturados da Europa, mão-de-obra Africana para as Américas, e produtos coloniais (açúcar, algodão, tabaco, e café) das Américas para a Europa, que se manteve até a ascensão dos Estados Unidos como maior potência económica do mundo, já no Séc. XX.
 
 
4.4 O Grande Intercâmbio entre o Velho Mundo e o Novo Mundo
 
O intercâmbio que adveio do contacto entre povos de regiões muito díspares no mundo não se limitou ao comércio de produtos agrícolas, minerais, e industriais; com efeito o este intercâmbio incluiu pessoas, animais, plantas, cereais, alimentos, doenças, ideias, cruzamento de culturas, e até a uma nova maneira de ser e estar no mundo - um homem novo.

Em termos de novos alimentos vegetais vindos das Américas e chegados à Europa temos, entre outros, a batata, o tomate, a mandioca, o milho, o feijão, o amendoím, a batata doce, a abóbora,  o abacate, o pimento, o ananás, a baunilha, o cacau. Em termos de animais temos o perú, e em termos de outras plantas temos o tabaco e o quinino. Em sentido opsto, isto é, trazidos da Europa para as Américas, temos o café, a banana, a cana de açucar, a uva, a laranja e o limão, a azeitona, a cebola, o nabo, o pêssego e a pêra. Em termos de cereais temos o trigo, o arroz, o centeio, e a aveia. Temos ainda animais domésticos como o boi, a ovelha, o porco, e o cavalo. A abelha de mel foi também trazida da Europa para as Américas.  
 
O Grande Intercâmbio entre o Velho e o Novo Mundo permitiu também a transmissão de doenças mortais com efeitos devastadores nas Américas como a varíola, o tifo, a gripe, o sarampo, o paludismo, a difetria, e a tosse convulsa. A malária e afebre amarela foi levada da África para as Américas. Estima-se que nos primeiros cem anos de contacto com Europeu nas Américas, cerca de 95% da população nativa americana pereceu a novas doenças para as quais não tinham defesa.. No sentido contrário, a sífilis expandiu-se das Américas para a Europa. Na farmacopeia onde uma verdadeira revolução teve lugar, muitos remédios passaram a a ser usados em todo o lado, como por exemplo o quinino, que era usado originalmente pelos Ìndios do Perú no tratamento de paludismo.



As famosas acácias rubras de Luanda e Benguela

 
Pessoas - colonos, escravos africanos, Índios dizimados
Animais domésticos 
Plantas, cereais, e especiarias
Alimentos
Doenças
 
 
Buganvílias em Luanda

 
Culturas
Metais e riqueza
Cruzamento de povos e mestiçagem
O homem novo

4.5 - A Partilha de África
 
Conferência de Berlim
Estabelecimento de colónias
Descolonização
 
 
5 - Etno-História da Damba

Neste contexto, a Damba tem um legado histórico importante, pois desde há alguns séculos era um dos povoados mais importantes na área fronteiriça entre as antigas províncias de Mbata e Mpemba, com uma feira muito activa na confluência dos sobados do Nsosso, Wandu, Nkuso, e Zombo no tempo do Antigo Reino do Congo, antes da chegada dos portugues às terras do Congo. Nos meados do século XVII a região da Damba era tida como rica em minerais, especialmente ferro, cobre, e prata, e foi na base da recusa de autorizar os portugueses a explorar prata na região pelo Rei do Congo D. António I (Vita Nkanga Ndontoni) que se radicalizaram as posições que levaram à famosa Batalha de Ambuíla em 1665. Foi com esta vitória que os portugueses confirmaram a destruição do prestígio do Antigo Reino do Congo por mais de duzentos anos. 


Tavola del Regno de Congo, Duarte Lopez e Fillipo Pigaffeta
Relação do Reino do Congo e das Terras Circumvizinhas, 1591


A sua herança  histórica e cultural abriram-me a mente à história dos povos africanos em Angola, que decerto tinham a sua história, mas que por muito tempo se havia de mostrar como um mistério para mim. Pensava às vezes que, talvez devido à minha incapacidade de encontrar resposta a essas perguntas, aceitava a vida como me era oferecida, sem ter que aprofundar mais o assunto. Contudo, a falta de resposta a perguntas como essas continuava a "roer-me" a mente até encontrar resposta.


O baptismo do Príncipe do Sonho, em Pinda (Soyo), 1491


Pelo que a minha mãe me dissehá muitos anos, o nome "Damba" vem da baixa ou vale por onde passa oum riacho ribeirinho (Ndamba) a leste da vila onde íamos pescar bagres. Por outro lado, também ouvi dizer também que o termo "Damba" vem de uma cobra pequena muito comum na região. Contudo, cumpre dizer que não há consenso sobre a origem do nome "Damba", pois como Sebastião Kupessa explica na sua análise sobre a origem do nome Damba, outras fontes indicam que o nome da povoação provém de "Nendamba", o nome de um chefe destacado de uma das tribos do Antigo Reino do Congo. Por outro lado, Patricio Batsikama oferece outra explicação, referindo o facto que a etimologia do termo "Damba" vem de "Ndamba", o que por sua vez tem origem no verbo "Lamba", que significa "cozinhar" em Kikongo, e para "cozinheiro" a palavra é "Ndamba", e em termos etno-históricos, cozinheiro é entendido como aquele que dominava a arte de fabricar utensílios de ferro (ferreiro), e que a na área da Damba em tempos ancestrais havia uma mina onde se extraía ferro. Outra explicação baseia-se na tradição oral, que nos diz que o nome "Damba" vem do nome de "Na Ndamda Lutayi" um membro legendário da kanda Kikenge, que viveu na área e deu o nome à povoação. Contudo, esta explicação é refutada, pois o nome "Damba" à povoação já existia antes do legendário Na Ndamba Lutayi ter nascido. Soube ainda que em 2014 houve um colóquio na cidade do Uíge com o fim de investigar as origens do nome "Damba" e que, devido à pluraridade de opiniões e dúvidas, não se chegou a qualquer consenso, e que o consenso final (pela falta de consenso) do colóquio foi criar um grupo de estudo encarregado de investigar o tópico mais profundamente. Contudo, até agora o mesmo  continua ainda não resolvido.


Gravura do Rei do Congo (Séc. XVI)


O povo nativo da região da Damba pertencia à tribo Sosso (ou Nsosso, plural Ba-Sosso) da nação Bakongo (Ba (plural) - Kongo), que pertence ao grande grupo Banto que se estabeleceu na região durante os séculos X e XI, e que fala Kikongo. A base económica dos Bassosso assentava no cultivo e produção de café, ginguba, feijão, e algum arroz para venda a comerciantes europeus, e no cultivo de mandioca, batata doce, milho, e vegetais para consumo familiar. As culturas verdadeiramente tradicionais incluiam somente o milho miúdo, o sorgo e banana, e diversos tipos de carne, incluindo galinha, porco, cabrito, carneiro, pacaça, elefante, lagartos e ratos, aos quais foram adicionados o milho, a ginguba, a mandioca, a batata doce, o taro, o café, a goiaba, o ananás, a laranja e o limão, a cana de açúcar, e a goiaba, que foram todos introduzidos na região pelos portugueses depois da sua chegada à foz do Rio Zaire em Março de 1483.
 
 
A Queima dos Ídolos em São Salvador (Mbanza Kongo)
ordenada em 1491 pelo Rei do Congo Nzinga-a-Cuum,
primeiro rei católico Dom João I (1470-1509) 

 
O comércio era muito activo através de feiras locais (quitandas) nos povos em que compravam e vendiam produtos locais e produtos importados de Luanda e do Congo Belga. As quitandas  (feiras) eram organizadas semanalmente perto dos povos de maior população. Antes da chegada dos portugueses, a semana era composta por quatro dias (Ponna, N'kando, Quengue, e Conzo).  A base da alimentação era o funge (farinha de mandioca ou de milho) acompanhado de peixe seco que vinha de Luanda e Moçamedes,  e molho de muamba (molho feito com óleo de ginguba), e frequentemente condimentada com muito gindungo. A caça era também uma fonte importante de proteínas para a alimentação. A bebida predilecta dos Bassosso era o malavo que era feito de seiva de palmeira fermentada, se bem que o infundi feito com farinha de milho grosso e o banvo, o bibidi, e o samba também eram apreciados. 


Mulher de Maquela do Zombo a fumar cachimbo (1958)


Lembro-me ainda que o uso de tabaco era muito comum, e até o de liamba, bem come o de mascar cola. Não posso esquecer aqui o facto de que muitas mulheres mais velhas fumavam tabaco com a ponta acessa do cigarro para dentro da boca, o que eu muito admirava. O que me admirava ainda mais é que elas podiam falar quase normalmente enquanto tinham a ponta acesa do cigarro dentro da boca. Também era comum ver-se pessoas a mascarem um caroço de parecido com o caroço de abacate, a que chamavam kola

Os rapazes construiam maravilhosos carros e casas de bordão que em termos de funcionalidade e beleza competiam com os melhores brinquedos europeus.

Como em muitos povos de Angola, o batuque (massau) era um evento muito especial para as comunidades nativas da Damba. No massau não podiam faltar os dançarinos e dançarinas que actuavam também como coro, e ainda o quissange , o n'gombe, o mahungo, e as marimbas. O quissange era feito com uma caixa metal em cima da qual se  fixavam um número de palhetas metálicas, que eram tocadas com os dedos. O n´gombe era um tambor afunilado feito com pele de animal. O mahungo era uma espécie de flauta, e as marimba eram feitas com cabaças de vários tamanhos. Em tempos antigos, o mpungi (ou kipungi) era uma trompa de marfim que só era usada em cerimónias e eventos especiais em que o rei do Congo tomava parte.


Batuque (massau), Damba, 1956


Ao contrário dos Bazombo da região de Maquela do Zombo (onde eu nasci, a norte e perto da fronteira com o então Congo Belga) que eram comerciantes inatos comprando e vendendo tudo nas suas feiras, desde luandos (esteiras de  bordão) a refeições prontas a comer, os Bassosso da Damba dedicavam-se mais à agrícultura. Os Bassosso viviam em grupos de sanzalas (povoações tradicionais) chefiados por um soba. Cada povoação era regida por um sobeta.


Mapa do Reino do Congo na sua maior extensão, ca. 1600,
mostrando as províncias e potentados satélites  


O Antigo Reino do Congo era a unidade política soberana estabelecida pelo povo Bakongo nos princípios do Séc. XVII, portanto muito antes da chegada dos Portugueses ao Zaire. O território do Antigo Reino do Congo compreendia a norte as terras a sul do curso do Grande Rio (Zadi, Zaire) e a sul demarcado pelo curso do Rio Dande (Dange), entre a costa atlântica a oeste e o Rio Cuango a leste. 


Mapa do Antigo Reino do Congo, cerca 1595


Segundo Duarte Lopez e Filippo Pigafetta na sua Relação do Reino do Congo e das Terras Circumvizinhas (1591), o Antigo Reino do Congo era composto por seis "províncias"(sobados principais) relativamente autónomas, a saber: Sonho (Ducado de Soyo) a oeste, entre os rios Zaire e M'Bridge; Bamba (Ducado de Mbamba) a sudoeste, entre os rios M'Bridge; Sundi (Ducado de Nsundi, a norte e ao longo do Rio Zaire); Pango (Marquezado de Mpangu, ao sul de Sundi e a norte de Bata); Bata (Ducado de Mbata, a leste, onde se situava Maquela do Zombo e a Damba); e Pemba (Mpemba, ao centro, onde se situava a capital de Mbanza Kongo, e onde residia o Manicongo, ou Ntotila). 


Mapa do Reino do Congo, e reinos vizinhos de Tio (Anzicos),Loango,
Cacongo, Ngoyo, Angola, Matamba, e Yaka, 1648


O Monsenhor J. Cuvelier, na sua importante obra L'Ancien Royaume de Congo (1946), ofereceu uma descrição mais detalhada e precisa da geografia politica da região, indicando que o sobado da Damba se situava a sul do sobado do Zombo, a leste do ducado do Nkusso, a norte do ducado do Wando, e a oeste do marquesado do Nsonso. Segundo o historiador Ralph Delgado na sua notável obra "História de Angola", o Rei D. Afonso I (1509-43) numa carta que escreveu ao Papa Paulo III em 1539, intitulava-se "Por graça de Deus, rei do Congo, de Loango, de Cacongo e de Ngoyo, d'aqém e d'além Zaire, Senhor dos Ambundos de Angola e da Quissama, de Musuauru e da Matamba e de Muyllu e de Mussuco e dos Anzicos e da conquista de Panzo-Alumbu".


Os antigos reinos do Loango, Congo, Anzicos, Angola, Benguela,
e Matamba, e o jagado de Kassange (1650)


Por sua vez, o Antigo Reino do Congo fazia fronteira a norte do Rio Zaire com os reinos de N'Goyo (Cabinda), Cacongo (Landana), Loango (Ponta Negra), Vungu, e o Reinos dos Anzicos (Bateque - na margem norte do Rio Zaire, a nordeste da actual cidade de Kinshasa), a leste com as terras do Dembo Ambuíla (Quibaxe, de população Ambundo) e o reino da Matamba a sudeste(até ao Rio Cuango), e a sul do Rio Bengo (Zenza) com as terras do Dembo Cahenda e do Ngola do Reino do Ndongo (Angola). O território do reino do Congo chegava até à baía de Luanda, pois era aí que se obtiam os zimbos (conchas pequenas) que serviam de moeda do reino. A ráfia de Mbata era da melhor qualidade e beleza e era famosa e muito cara na Europa desse tempo.


Mbanza Kongo, gravura de Olfert Dapper, 1680


A sucessão dinástica dos reis do Congo (os Ntotila) não era hereditária. De facto, o rei do Congo (Manicongo, Ntotila ou Wene Wa Kongo) era eleito pelos sobas principais (os Mani) representando as principais linhagens (clãs) que governavam as "províncias" do reino. 


A embaixada portuguesa de Rui de Sousa ao Mani Sonho (1491)


Como eleitores do Ntotila, os Muene (mani) tinham um importante peso político no Congo. De facto, eram os chefes das kandas principais que se escolhiam os reis. As kandas (casas reais) mais destacadas foram a casa Lukeni (1390-1567), Coulo (1567-1622 e 1626-1631), Kincanga (1622-1626), Kimpanzo (1636), Kinzala (1636-1665).  Depois da derrota de Ambuíla em 1665, o Reino do Congo entrou numa crise política profunda com muitos reis usurpadores e depostos, baseados ao mesmo tempo em diferentes capitais do reino (São Salvador, Kibango, Inkondo, Ambamba-Lovata, e em Lemba-Ambula). Depois de 1709, houve uma tentativa de reunificação das kandas principais que estabeleceram um sistema de escolha rotativo, em que as casas reais Água Rosada, Kimpanzo, e Kinzala foram as mais predominantes. Depois do controle português sobre o reino estabelecido em 1891, a casa dos Água Rosada deteve o poder até 1914. Depois desta data, os reis do Congo eram mais titulares (título honorífico) do que reis efectivos pois a autoridade passou para a administração colonial potuguesas. Esta situação de reis titulares substiste ainda hoje, mesmo depois da independência.   


Antigas maneiras de viajar no Congo,
gravura do séc.XVI


Devo esclarecer aqui que o uso dos termos reino, ducado, e marquezado são uma adaptação portuguesa da organização política nativa tradicional de sobados mais ou menos independentes da região, para os quais o factor linhagem era o factor mais importante.


A Corte do Rei do Congo, D. Álvaro (1567-1587),
 gravura de Olfert Dapper (1680), 
 

Durante o período de ocupação portuguesa efectiva das terras do Congo nos princípios do século XX, os reis do Congo (os Ntotila) mantiveram o seu título, mas a sua autoridade política e administrativa foi muito diminuída pela autoridade colonial. Durante esse período, o Rei D. Manuel III reinou de 1914 a 1915, o Rei D.Álvaro XV de 1915 a 1923, e o Rei D. Pedro VIII reinou de 1923 a  1955, que faleceu em São Salvador. D. Pedro VII, foi sucedido pr D. António III em 1955 com o apoio das autoridades portuguesas e igreja católica, não obstante a oposição local protestante. 


O Rei do Congo Dom Pedro VIII e sua Família
na sua Residência em São Salvador do Congo, 1938


Este diferendo veio dar origem à formação da União dos Povos do Norte de Angola (UPNA), que em 1958 sob a direcção de Holden Roberto se passou a designar por União dos Povos de Angola (UPA), sob a influência de Franz Fanon, o teórico da ideologia anti-colonialista. D. António III veio a falecer em 1957 e só veio a ser sucedido em 1962 por D. Pedro IX Afonso.


As ruínas da catedral de São Salvador, Mbanza Kongo, séc. XVI


Os primeiros contactos dos portugueses com a região da Damba tiveram lugar com o estabelecimento do hospício do Incusso (Nkusu) de existência efémera, a leste de São Salvador, sul de Maquela e perto da Damba,) pelos padres Capuchinhos italianos em meados do século XVII (entre 1647 e 1651). De acordo com Dom Manuel Nunes Gabriel, antigo Arcebispo de Luanda, na sua obra "Angola - Cinco Séculos de Cristianismo" foram nesse tempo estabelecidos cinco hospícios no Congo (Sonho (em Pinda, Soyo), São Salvador, Incusso (Damba), Bamba Congo (Bembe), e Bamba Lubota (perto do Ambrizete, Nzeto), e cada hospício servia de base para o trabalho de evangelização itenerante dos padres Capuchinhos.


O Rei do Congo Dom António III, que reinou entre 1955 e 1957
e sua esposa, Dona Isabel Maria da Gama que o sucedeu como regente até 1975


Em 1758, no tempo do governador António de Vasconcelos, uma expedição militar portuguesa liderada pelo tenente de ganadeiros Francisco Manuel de Lira chegou à Pedra do Encoge, situado a sul da província de Mbamba (ao  sul da actual vila de Nova Caipemba e a oeste do Songo), onde estabeleceram o presídio de São José do Encoge. Este presídio estava já situado nas terras do Dembo Ambuíla, que era um potentado independente do reino do Congo. 


Ruínas da Igreja do Forte de São José do Encoge (1759)
O Forte do Encoge foi restaurado em 1971 


Poucos anos depois, o notável governador Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, que governou Angola entre 1764 e 1772, incumbiu o Capitão Duarte de Sequeira de chefiar uma coluna militar aos presídios de Ambaca e de São José do Encoge, com o intuito de pacificar o Ambuíla, os Mahungos, e os Sossos (a sudeste da Damba). 


Mapa dos territórios de Cabinda e Malembo, 1904


Contudo, a ocupação efectiva do Congo pelos portugueses não começaria até aos princípios do século XX. Só depois da pressão criada pela Conferência de Berlim em 1885 e da consequente acção do então Bispo do Congo D. António Barrosso é que os portugueses estão de volta à região da Damba com a fundação da capitania-mor da Damba em 1917. A ocupação efectiva da Damba pelos portugueses começou formalmente em Dezembro de 1911 com o estabelecimento do Posto Militar da Damba, que passou a capitania-mor em 1913, sendo para aí destacada a 1ª companhia do Batalhão destacado para o Norte de Angola. Em 1921, a Damba passou a ser uma circunscrição civil, e a concelho em 1934. A população total do concelho da Damba em 1959 era de 71.571, com uma densidade populacional média de 9,05 habitantes por quilómetro quadrado (com o mais elevado índice no distrito do Uíge). A área do concelho da Damba era de 8.330 quilómetros quadrados.


A Tipoia era o principal meio de transporte para europeus
nas primeiras décadas do Séc. XX  no Norte de Angola


O distrito do Congo Português foi criado em 1886 com capital na Vila de Cabinda e incluía cinco residências (a saber Cabinda, Cacongo (Lândana), St. António do Zaire, Ambrizete, e São Salvador). Em 1912 foi criada a circunscrição de Maquela do Zombo e as capitanias do Bembe (a oeste), Damba (ao centro), e Cuango (a leste). Em 1913-14 houve um forte movimento de resistência (uma revolta generalizada) contra a ocupação portuguesa da região que levou a uma ocupação militar portuguesa mais forte e efectiva da região. Em 1917 a sede do distrito passou de Cabinda para Maquela do Zombo (que tinha já uma repartição de Fazenda, de Alfândega, e uma estação de correio), e foi estabelecida a capitania-mor da Damba. Em 1922, o distrito do Congo foi dividido em dois: o Distrito de do Zaire, com sede em Santo António do Zaire, incluindo Cabinda, Noqui, e Santo António do Zaire, e o Distrito do Congo, ainda com capital em Maquela do Zombo, compreendendo as circunscrições civis do Zombo, S. Salvador, Bembe, Damba, e Pombo. Depois de mais algumas reorganizações administrativas nas três próximas décadas, a configuração administrativa do Congo Português passou finalmente em 1956 a compreender dois distritos: o distrito do Zaire, com sede em São Salvador, e o distrito do Uige, com sede na cidade de Carmona (Uige), da qual o concelho da Damba fazia parte até à independência de Angola em 1975. 


Antiga secretaria militar, na rua principal em Cabinda, 1910
este barracão ainda era usado em 1975


O distrito do Congo tinha uma área de 64.022 quilómetros quadrados. Segundo o antigo  governador do distrito do Congo, Major Hélio Felgas, em 1959, a população do distrito do Uíge era composta  de 468.416 africanos , 7.172 brancos, 2.518 mestiços, e 751 africanos assimilados, para um total de 478.857 pessoas. Em 1967, a agricultura era a principal actividade económica do distrito, dos quais se destacava o café com 412 fazendas e uma produção de 73.000 toneladas, seguida de 17.500 toneladas de ginguba (amendoím), 1.700 toneladas de algodão, e de 1.500 toneladas de arroz. Produziram-se ainda nesse ano cerca de 900.000 toneladas de mandioca para consumo de subsistência da população africana. A exploração de madeira era também importante, com 35.000 metros cúbicos de madeira cortada. Nos recenseamentos gerais da população de 1940 e 1950, a população dos Distrito do Congo (ou Uíje) .


Uma vista de Luanda, cerca 1645 Gravura de Olfert Dapper


Convém reparar que tenho vindo a focar até aqui no período anterior ao estabelecimento de Luanda e conquista do reino de Angola por Paulo Dias de Novais, pois os portugueses estabeleceram-se primeiro na Ilha de São Tomé (1471), depois  no Congo (1491), depois em Luanda (1575) e foz do Quanza (1589), e só mais tarde é que avançaram para o interior, com o estabelecimento de relações com os N'Gola do Ndongo, já na primeira década do século XVII, e em Benguela em 1617.



Luanda, vista parcial da Cidade Alta, ca. 1900


Nota- Secção ainda em desenvolvimento
 
Inserir aqui Tabelas dos Censos de Luanda e Angola
 
Vida terrena e o sobrenatural 

Mitos e lendas
Crença e religião
Religião ancestral Bakongo
Enagelização católica no Congo
Dom Afonso I, o primeiro rei do Congo católico
Padroado e Propaganda Fide
Jesuítas no Congo
Capuchinhos no Congo
Sincretismo religioso e nacionalismo - Beatriz Vita
Acção das igrejas protestantes no Congo - Metodista, Baptista, e United Church
Evangelização católica moderna no Congo - Dom António Barroso e missões católicas
Sincretismo religioso recente

 A religião é um componente essencial em qualquer sociedade ou civilização. 



Padre Capuchinho italiano pregando evangelização
no antigo Ducado do Sonho (Soyo), Séc. XVII


6. Refugiados do Congo Belga 
 
Já em 1959 e 60, assisti à debandada dos colonos europeus do então Congo Belga, onde viviam os nossos tios Agostinho e Mélita, e o meu primo Hugo e a minha prima Luísa, com quem íamos passar férias de vez em quando à vila de Moerbeck, onde viviam. Os refugiados passavam diariamente em longas filas de carros caros Mercedes abarrotados de bens pessoais pela nossa pacata Vila da Damba em direcção a Luanda, e daí para a Europa.


O Antigo Congo Belga, 1955


Ainda no mesmo ano  não fez sentido para mim a suspensão do Grande Rally Automóvel Leopoldville - Luanda - Matadi - Leopoldville, o maior acontecimento do ano naquelas pacatas paragens, e muito menos este êxodo de carros e famílias que dia-a-dia aumentava em volume e intensidade. 


Momento de Partida do
Rally Leopoldville - Luanda - Matadi - Leopoldville, 1959


Percurso do Rally Leopoldville - Luanda - Matadi - Leopoldville


Perguntei à minha mãe o que é que estava a acontecer, e ela disse-me então que eram refugiados do Congo Belga que temiam a independência da colónia do Congo Belga marcada para 30 de Junho de 1960, e que era uma questão de tempo até acontecer o mesmo aos Portugueses em Angola.

 
A SABENA (Linhas Aéreas Belgas) tinha ligação entre Leopoldville e Luanda.
Fotografia de um avião Dakota no antigo Aeroporto Emílio de Carvalho
situado entre os bairros da Vila Alice e do Café (1953).