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Alguns nacionalistas angolanos do Processo dos Cinquenta
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7. Descolonização em África
Com
a vitória incontestável dos Estados Unidos da America na Segunda Guerra
Mundial e a sua ascenção a potência predominante do Ocidente, a Pax Britannica que reinou durante o imério britânico foi profundamente abalada, obrigando a Inglaterra a conceder
independência política às suas colónias, começando com a Índia e o
Paquistão em 1948, e as africanas nos primeiros anos da década de Sessenta, após um processo difícil no Quénia. A França, ainda mais enfraquecida, optou com maior relutância
pela descolonização após duas desgastantes guerras no Vietname (Dien Bien Phu, 1956) e na Argélia (1962). A Bélgica
viu-se num beco sem saída, o que obrigou o seu governo a conceder
precipitadamente a independência ao Congo dentro de seis meses em Junho
de 1960, deixando apenas Portugal como único país europeu com
colónias de relevo em África, salvo as duas pequenas colónias da Espanha. A tudo isto temos de acrescentar o empenho com que o Presidente John Kenedy dos Estados Unidos deu à descolonização em todo o mundo
Entre 1957 e 1964, a grande maioria das colónias africanas ascenderam à independência, com a excepção das colónias portuguesas e do Sudoeste Africano (Namíbia), conforme indica o mapa abaixo:
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Mapa da descolonização em África (em 1957 e em 1964)
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Em
Angola, as décadas do após guerra foram um período de progresso para os
portugueses, mas não necessariamente para os angolanos, que se viram
vítimas de uma exploração colonial ainda mais atroz gerada pela expansão
desenfreada da produção de produtos coloniais como o café e os
diamantes, e um aumento acentuado na imigração europeia com implicações
profundas no mercado de trabalho, ao mesmo tempo que o aparelho de
exploração colonial e a grelha administrativa se refinavam em gerar mais riqueza.
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Imagem da inauguração do Monumento aos Descobrimentos Portugueses, em Lisboa, 1960
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No entanto, pode dizer-se que Porugal, até 1959, gozava a sua própria Pax Lusitanica
nas suas colónias, entre as décadas de 1920 e 1950, como atesta a imagem abaixo da
inauguração do monumento aos Descobrimentos Portugueses em Lisboa, em
celebração dos quinhentos anos da morte do Infante Dom Henrique. Em
certa medida, o governo Português tinha acordado aos novos ventos da
história, e continuou ainda mais a trilhar a sua política colonial cada
vez mais antiquada de só olhar em como se podia extrair ainda mais riqueza das colónias, e não olhar para as aspirações dos povos das
colónias, o que lhe viria a sair caro entre 1961 e 1975.
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Cerimónia da Independência do Congo, em Leopoldville, a 30 de Junho de 1960, com a presença do Rei Balduíno da Bélgica, Presidente Joseph Kasavubu, e Primeiro Ministro Patrice Lumumba
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Talvez porque fosse território vizinho de Angola, a independência do Congo foi um factor determinante no começo da luta anti-colonial em Angola, pois foi a partir do Congo que veio o maior auxílio para a luta armada em Angola em 1961 e nos anos seguintes. O governo português observava com grande atenção tudo o que se denrolava no Congo, e o público em geral em Angola seguia de muito perto e com muita apreensão todas as notícias que vinham do Congo, especialmente no que refere à retirada dos colonos belgas e à precária situação de segurança no período imediatamente após a independência.
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Ponte aérea de refugiados belgas chegando do Congo em 1960
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Os líderes políticos congoleses presidente Joseph Kasavubu, primeiro ministro Patrice Lumumba, Antoine Gizenga, Moisés Tchombé, Cyrille Adoula, e Joseph Mobutu tornaram-se nomes familiares em Angola diariamente mencionados na imprensa escrita e na rádio. Á medida que a situação foi piorando no Congo, não tardou muito para que a UPA se tivesse organizado e começado os ataques de 15 de Março de 1961 no Congo português.
8. Dissidentes Políticos
As eleições presidenciais em Portugal de 1958 disputadas pelo Almirante Américo Tomás pela União Nacional (partido de Salazar) e pelo general Humberto Delgado (independente, mas suportado pelo Movimento de Unidade Democrática) dividiram o país em dois campos opostos muito polarizados. Para o cidadão comum, ou se era do regime, ou se era da oposição. Em Angola, essa polarização era mais complicada devido a crescente resistência à situação colonial. Num plano mais pessoal, os
meus pais não eram muito a favor do regime colonial, se bem que não se
pudesse dizer que eram "do contra". Eles acompanharam sempre de muito
perto os maiores acontecimentos mundiais e regionais da altura e
mantiveram relações de amizade com pessoas e famílias que viriam mais
tarde a ter um papel activo no movimento de resistência colonial e
libertação nacional.
Lembro-me que em 1959 os meus pais acompanharam de perto a evolução da
luta armada em Cuba e consequente revolução que levou Fidel Castro ao
poder. Em 1960 eles acompanharam de muito perto e com uma certa inquietação o processo de independência do ex-Congo Belga, pois os meus tios Agostinho e Mélita viviam lá com o meu primo Hugo. Já nos fins de Janeiro de 1961 lembro-me que todos em casa acompanhámos de muito perto através da BBC
Radio em ondas curtas todos os dias à noite as notícias sobre o assalto e desvio do paquete "Santa Maria" relizado a 22 de Janeiro, por um grupo de revoltosos liderados pelo Capitão Henrique Galvão,
um ícone da oposição ao regime de Salazar, quando o navio saía de Miami
com destino à Madeira. O Santa Maria foi supostamente desviado da sua
rota e seguiria então com destino a Luanda onde era esperado por muitos
jornalistas internacionais, mas acabou por ir com destino à cidade do
Recife, Pernambuco, Brasil.
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Capitão Henrique Galvão, líder do sequestro do Paquete "Santa Maria" em 22 de Janeiro de 1961 |
Mais
tarde em Dezembro de 1960, fomos todos para Luanda porque a minha mãe
estava de bebé da minha irmã Ana Paula, que havia de nascer na
Maternidade de Luanda (então chamada Maternidade Dr. Vieira Machado) a 14 de Janeiro de 1961, portanto cerca de onze
anos mais nova que eu.
Durante
a nossa estadia em Luanda ficámos em casa de uma amiga de infância da
minha Mãe dos tempos em que ela tinha vivido em Maquela do Zombo, a D. Helena Marreiros Morais,
que morava na Travessa Conde Ficalho, perto da Padaria Lafões e da
famosa Pastelaria Détinha (que bons pasteis de nata e bolas de
Berlim!!!.), entre a antiga Rua Coronel Artur de Paiva (hoje Rua Rei
Katiavale) e a antiga Avenida dos Combatentes (hoje Avenida Comandante
Valódia). A D. Helena Marreiros (Morais) era filha do Tenente Marreiros e
da D. Àurea, de nacionalidade espanhola, que tinha fugido aos horrores
da Guerra Civil de Espanha, e refugiado em Maquela do Zombo, Angola. A
D. Áurea era muito conhecida e respeitada no norte de Angola pois
operava um sistema de carreiras de autocarro ligando Maquela do Zombo e a
Damba com o resto do distrito. A D. Áurea tinha também um filho, o Rino, que a
ajudava na gestão do negócio de camionagem, e era nosso amigo de
casa chegado.
Ainda quando estávamos em casa da família Morais (o Sr. Alfredo, a D.
Lena e Tommy (António Emídio, filho, da minha idade, e meu grande amigo
de infância e falecido há uns anos) tive conhecimento numa conversa depois de jantar da Revolta da Baixa do Cassange e do uso de bombas Napalm pela Força Aérea Portuguesa usou para suprimir com violência a revolta dos trabalhadores da Cotonang a 4 de Janeiro
de 1961, então a maior companhia (monopólio, melhor dizendo) envolvida
na cultura e exportação de algodão em Angola. Soube também numa dessas
noites muito vagamente da prisão do Cónego Manuel das Neves e
mais alguns membros da resistência angolana, que ao que parece estavam a
conspirar uma revolta contra a autoridade colonial. As nossas famílias
também acompanharam de muito perto o Processo dos 50, em que a
PIDE prendeu a maioria dos mais importantes líderes nacionalistas
angolanos em Luanda, incluindo Mendes de Carvalho, André Mingas, Carlos
Van-Dunen, Liceu Vieira Dias, Hélder Neto, Calazans Duarte, e Mário
Guerra. O assalto à Casa de Reclusão de Luanda em 4 de Fevereiro de 1961
(por alguns considerado como o "Grito do Ipiranga" angolano) foi
realizado com o propósito de libertar da prisão os líderes nacionalistas
que lá se encontravam detidos.
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Um aspecto da repressão policial contra a revolta camponesa contra a Cotonang na Baixa do Cassange, que começou a 4 de Janeiro de 1961 |
A
família Morais eram amigos de longa data muito chegados à nossa
família. O Sr. Alfredo e a D. Lena eram conhecidos pela sua oposição ao
regime de Salazar, e a vida em casa em certa medida reflectia a
independência, mesmo até militância que os caracterizava. Na mesma casa
residiam também temporariamente um casal novo com um bébé, o Adolfo
Maria e a Lena (as três esposas eram Helenas: a minha mãe: Lena Ponte, a
Lena Morais, e a Lena Adolfo (Maria), e os três maridos eram
topógrafos). Não me posso esquecer o que as nossas mães (a minha e a do
Tommy Morais) nos disseram para não responder a ninguém nunca qualquer
pergunta sobre o Adolfo ou a Lena - as palavras da minha Mãe foram: "Não sei, não vi, não ouvi!"
Isso fez-me "macacos na cabeça" pois não podia perceber porque é que
tanto segredo era preciso para cobrir o Adolfo Maria e a Lena, mas,
contudo, sem questionar, segui as prescrições à risca.
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O jovem nacionalista Adolfo Maria, fotografia sem data, mas presume-se ter sido tirada nos meados da década de 1960 |
Soube
ainda através das conversas depois do jantar que o Adolfo era um
activista político de relevo em Luanda, pois esteve envolvido no Sindicato
(dos Empregados de Comércio e Indústria), tinha sido membro da Sociedade
Cultural de Angola, e era um dos dinamizadores do Cine-Clube de Luanda.
Soube ainda que ele, juntamento com Mário António, tinham sido preso
antes pela PIDE e libertado no dia de natal de 1959, e soube ainda que o
Adolfo e a Lena tiveram que "mudar" dentro de dias para outra casa, pois a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado, polícia política portuguesa) andava no seu encalço.
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Cartão de identificação do temido director da PIDE, Fernando Eduardo da Silva Pais
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9. O 4 de Fevereiro de 1961
A
família Morais tinha um empregado doméstico (naquele tempo designado
como "criado") de nome Filipe, jovem africano ainda dos seus dezanove ou
vinte anos, que tinha como aposentos um quarto ao fundo do quintal, e
que nas noites de 4 de Fevereiro e seguintes não dormiu em casa. Aprendi dois dias mais tarde através do próprio Filipe, que com certo receio e em segredo me
disse que tinha havido uma vaga de assaltos em Luanda e que tinha havido alguns mortos.
Com efeito, a luta armada para a libertação de Angola teve início com os ataques que tiveram lugar na madrugada de 4 de Fevereiro em Luanda, a saber, uma emboscada a uma viatura da Companhia Móvel da Polícia no Bairro da Casa Branca (no Muceque Sambizanga), que resultou na morte dos seus quatro ocupantes e na captura das suas armas; com estas, os nacionalistas seguiram com o assalto à Casa de Reclusão Militar no Bungo (a caminho do Cacuaco) onde se encontravam detidos muitos dos arguidos do Processo dos Cinquenta; o ataque à cadeia de da 7ª esquadra da PSP
(Polícia de Segurança Pública) na estrada de Catete; e o ataque à cadeia da PIDE nos arredores do bairro de São Paulo, onde também se encontravam alguns nacionalistas detidos; e ainda as tentativas malogradas de assalto às instalações da Emissora Official de Angola e do edifício da estação central dos correios. No assalto
morreram seis polícias e um soldado por parte das forças portuguesas e muitos nacionalistas angolanos.
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Funeral dos Políciasmortos nos Ataques de 4 de Fevereiro de 1961
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Os nacionalistas angolanos tentaram um segundo ataque sem exito na madrugada de 10 de Fevereiro à Administração Civil de São Paulo e à Companhia Indígena que resultou na morte de 22 nacionalistas e de 112 presos, que após interrogados pela PIDE não se soube do rasto para a maioria.
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O Cónego Manuel Joaquim Mendes das Neves, líder dos ataques do 4 de Fevereiro (1896-1966) |
Os
ataques do 4 de Fevereiro foram organizados e dirigidos pelo Padre
Manuel Joaquim Mendes das Neves, Cónego da Sé de Luanda, com a
participação de um grupo grande de nacionalistas angolanos ainda não
organizados em partido ou movimento de libertação. No terreno, os ataques foram liderados pro Neves Bendinha, Paiva Domingos da Silva, Domingos Manuel Mateus, Imperial Santana, e Virgilio Sotto-Mayor, e o número total de nacionalistas foi de cerca de duzentos. Apesar do detalhado planeamento e treino, os ataques fracassaram, principalmente
devido à falta de armas eficazes, pois os grupos de nacionalistas tinham
apenas catanas e canhangulos para efectuar os ataques.
A liderança dos
ataques do 4 de Fevereiro têm sido reclamada pelo MPLA como tenham sido
organizados pelos seus líderes, mas, na verdade, tal não foi o caso, pois nela estavam envolvidos nacionalistas de todos os quadrantes políticos, que actuaram independentemente da cúpula de qualquer partido ou movimento, incluindo o MPLA e a UPA.
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Assalto à Casa de Reclusão de Luanda, 4 de Fevereiro de 1961 |
Três ou quatro dias depois fomos ao funeral dos seis polícias no
Cemitério da Estrada de Catete (antigo Cemitério Novo), onde para meu
terror assisti a uma terrível confusão, com muitos tiros, muitos gritos,
pessoas a fugirem para todo o lado, uns a caírem feridos, outros a
tentarem abrigar-se do intenso tiroteio. Entretanto, tinha-me perdido da
D. Lena, da minha Mãe, e do Tommy, ficando paralisado (mais
estarrecido, talvez) durante três horas deitado ao lado da campa do meu
avô que tinha ido visitar por uns momentos, até já à noitinha.
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Notícia na primeira página do jornal O Diário de Lisboa sobre os ataques do 4 de Fevereiro |
Quando
já tudo tinha acalmado um pouco, mas com o cemitério ainda em grande
confusão e cheio de pessoas aterrorizadas, feridas e talvez algumas
mortas, um polícia encontrou-me e levou-me para a esquadra central da
Polícia de Segurança Pública (PSP)
ao lado da antiga Livraria Lello, no Largo Pedro Alexandrino da Cunha
(hoje Largo Raínha Jinga, ou popularmente Largo dos Correios), na baixa
de Luanda. Mais tarde, por cerca das nove horas da noite a minha mãe e a
D. Lena Morais ansiosas vieram-me buscar e levaram-me para casa. Ainda
hoje, quando relembro esse acontecimento, vem-me à memória o sentimento
de terror que senti nesse fatídico funeral dos sete polícias, e o
sentido que esse acontecimento histórico teve para mim.
10. O 15 de Março de 1961
Mais
ou menos duas semanas mais tarde depois do nascimento da minha irmã
Paula regressámos à Damba, e um mês mais tarde no dia 15 de Março de
1961 tiveram lugar os assaltos da UPA (União dos Povos de Angola) à povoação do Quitexe, a
outras povoações, e a muitas fazendas de café no Distrito do Uíge, em
que um número elevado de brancos e trabalhadores (contratados) do
Bailundo (Huambo e Bié) foram mortos pelos revoltosos.
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Um aspecto da vida quotidiana europeia numa fazenda perto da Vila do Quitexe, antes do 15 de Março de 1961 |
Soubemos
acerca desse acontecimento de manhã cedo no dia seguinte (16 de Março), e com o meu
Pai ainda em Luanda, lembro-me bem que a minha Mãe resolutamente decidiu
em imediato e contra a opinião de todos os presentes, desfazer tudo o
que tinha em casa, carregar as mobílias da casa em duas camionetes, e
partir algumas horas depois (ao fim da tarde) com destino à Vila do
Bungo em direcção final a Luanda.
Durante a viagem, já depois da povoação de 31 de Janeiro,
um grupo de revoltosos ("terroristas" para uns, "heróis" para outros)
de catana na mão bloquearam a estrada e tentaram parar os camiões em que
seguíamos. O condutor do camião em que eu ia (a minha Mãe, e a minha
irmã Dilar, e a minha irmã Paula de dois meses, iam no outro camião
atrás do nosso) disse-me para me abaixar e abrigar, e decidiu não parar,
pôs o pé no acelerador ao fundo e em velocidade crescente passou pelo
grupo que acenavam suas catanas afiadas ao verem-nos passar. Foi tudo
muito rápido, e no escuro, que salvo a luz dos faróis do camião, pouco
mais se podia ver senão alguns vultos dos assaltantes e o brilho do
gesticular das suas catanas; mas lembro-me bem o terror que senti nesse
momento.
Talvez uma hora e meia mais tarde chegámos à Vila do Bungo
onde não nos deixaram prosseguir a viagem. Passámos o resto da noite na
igreja da vila com o resto das mulheres e crianças num ambiente de
terror caótico e de angústia, guardados pelos homens da vila, armados e
fazendo vigia à volta da igreja, onde se tinham refugiado todos.
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Militantes da UPA, Damba, 1961 |
De manhã, já a 17 de Março, e contra o conselho de todos, a minha Mãe insistiu em prosseguir a viagem para a Vila do Negage,
onde nos tinha sido dito que uma ponte aérea estava a evacuar mulheres e
crianças para Luanda.
Chegámos ao Negage ao meio-dia, sob uma chuva torrencial, de onde fomos
dirigidos para a Base Aérea No.9 que ainda estava em construção nessa
altura. Sob a chuva torrencial o barro vermelho não nos deixava sequer
andar, contudo, com alguma dificuldade chegámos finalmente à Base Aérea do Negage, onde fomos encontrar centenas de mulheres e crianças refugiadas como nós à espera da sua vez para serem evacuados para Luanda.
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Os movimentos e focos principais de revoltosos da UPA nos ataques ao Norte de Angola em 1961 |
Horas mais tarde, nesse mesmo dia, fomos evacuados num avião NordAtlas ("Barriga de Ginguba" da Força Aérea Portuguesa)
para Luanda, onde já chegámos à noitinha e onde o meu Pai nos esperava
no então Aeroporto Craveiro Lopes (hoje 4 de Fevereiro) em Luanda.
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Vítimas inocentes do ataque da UPA a uma fazenda no Norte de Angola
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Na
verdade, as fotografias dos ataques da UPA em Março de 1961 postos a
circular em todo o mundo pelo governo portguês mostravam corpos de bébés
e mulheres mutilados e barbaramente assassinados, o que decerto não
ajudou a causa da libertação nacional. O próprio Holden Roberto, chefe
da UPA, se horrorizou quando viu o que os seus revoltosos fizeram. Como
era de esperar, a reacção do governo português foi pronta e tenaz. As palavras
de Salazar, no seu discurso à nação em 13 de Abril de 1961 diziam
tudo:"A explicação é Angola. Andar rapidamente e em força é o objectivo
que vai pôr à prova a nossa capacidade de decisão".
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Os defensores portugueses da Damba, fotografia tirada no aeródromo em Abril de 1961
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A povoação do Lucunga foi atacada em 12 de Abril resultando no massacre da maioria dos seus residentes portugueses. Nela faleceu nesse dia o nosso amigo de família, Senhor Amaral, que era casado com uma filha da D. Estrla do Lueca. A
Damba foi atacada a 17 de Abril por duas colunas da UPA, uma vinda pela
estrada de Maquela e a outra pela estrada do Lucunga, começando por um
assalto à residência do secretário, seguido do ataque à residência de
dois andares do administrador, onde os residentes da Damba se tinham
refugiado e estabelecido um forte dispositivo de defesa. Ao fim de
algumas horas de combate os guerreiros da UPA abandonaram o ataque deixando
muitos mortos no terreno. Ao fim da tarde chegaram reforços militares da
companhia de caçadores especiais de Maquela do Zombo (, que ajudaram a evacuar
mulhers e crianças para Carmona e Luanda. A Damba foi novamente atacada a
19 de Abril, mas desta vez com combates mais intensos que visavam a
igreja local, onde os residentes se tinham refugiado como reduto de
defesa. O irmão Pedro, missionário capuchinho da Missão Católica da Damba, foi morto neste assalto
quando saíu da igreja a tentar acalmar os atacantes. After algumas horas
de intenso combate, os atacantes retiraram deixando muitos mortos no
terreno. A Damba tornou a ser atacada nos dias seguintes, mas com menos
intensidade, já que as baixas aos assaltantes se amontoavam dia-a-dia.
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O avião de transporte Nord-Atlas (Barriga de Ginguba) da Força Aérea Portuguesa que nos evacuou da Base Aérea do Negage para Luanda a 17 de Março de 1961
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O Mucaba
sofreu um assalto muito intenso a 29 de Abril, onde os residentes
refugiados no posto de administração resitiram até quase ao limite das
suas forças os ataques dos assaltantes. O chefe de Posto Hermínio de
Carvalho Sena, nosso amigo de casa, líder da resistência portuguesa, foi
consagrado como o chefe dos herois do Mucaba, e celebrado em todo o
Portugal de Minho a Timor.
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Patrulha do Exército Português no Norte de Angola aprisionando um combatente nacionalista angolano, 1961 |
A
revolta da UPA visou não somente os colonos portugueses brancos, mas
também os "contratados" africanos (trabalhadores rurais sob contrato de
trabalho) que supriam as fazendas de mão-de-obra africana para as roças
de café de colonos portugueses onde os Congueses não queriam trabalhar.
Estes trabalhadores vinham principalmente da região do Huambo, sob
condições de exploração atrozes em que todos ganhavam com o negócio,
incluindo o fazendeiro, o angariador, o administrador ou chefe de posto,
e o camionista, excepto o trabalhador rural ele próprio, que se via
atado a um contrato de trabalho árduo e desvantajoso de dois anos que
por norma iria durar muitos mais anos longe da terra e da família. Os
trabalhadores Ovimbundo eram vistos pelos Bakongo como aliados dos
colonos brancos e estima-se que tenham sido mortos milhares de
trabalhadores Ovimbundo nos primeiros assaltos do 15 de Março.
11. Luanda em 1961
Os
primeiros dias em Luanda foram de grande apreensão para mim. Ainda
muito novo para compreender a guerra iniciada pela UPA (União dos Povos
de Angola) e a revolta de 15 de Março, incluindo os ataques ao Lucunga a
17 de Abril e à Damba a 17 e outra vez a 19 de Abril, em que dois
amigos de casa foram torturados e barbaramente mortos à catanada em
frente à Igreja da vila. A nossa atenção focou-se em especial no ataque à
nossa Roça de Novo Fratel em Agosto em que os trabalhadores bailundos
ou fugiram para o mato ou foram mortos no terreiro do café, e os
edifícios, máquinas, viaturas, mobílias, stock de café, e recheio, etc.
foram completamente destruídos. Soube ainda que os assaltantes fizeram
uma fogueira muito grande com os livros da biblioteca valiosa do meu
avô, o que foi muito difícil para mim fazer qualquer senso dessa
destruição e mortandade.
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Guerrilheiros da UPA armados de "canhangulos", Distrito do Uíge, 1961
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Contudo,
no meio de tanta aflição e tragédia, senti que tivémos sorte, porque
fugimos a tempo e não tínhamos perdido nenhum membro da família.
A maioria dos "deslocados" (refugiados) do Norte, que nessa altura se
contavam já em muitos milhares, tinham sido acomodados em centros de
alojamento temporários e recebiam ajuda alimentar, de vestuário e de
medicamentos fornecidos pela Comissão Provincial de Apoio às Populações Deslocadas (CPAPD -
o IARN de outros tempos). Quanto à nossa família, nós ficámos primeiro
em casa de amigos de família (do Sr. Arlindo Cruz, falecido há muito,
irmão ou cunhado (?) dos locutores Alice Cruz ou Carlos Cruz).
Poucos dias mais tarde, os meus pais decidiram alugar um apartamento na
Rua António Enes (hoje Rua Ndunduma), junto à antiga Pastelaria Suíça, a
caminho do Bairro Operário, no segundo andar do prédio da antiga
Farmácia Confiança, já bem perto do Bairro Operário, e dois ou três
meses mais tarde, uma casa de primeiro andar na mesma Rua António Enes,
mas mais a nordeste, em frente a um prédio de lojas e apartamentos, na
esquina que dava acesso ao Bairro Miramar, que a minha mãe e minhas tias
tinham herdado do meu avô que tinha falecido seis anos antes.
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Largo do Cruzeiro, no Bairro do Cruzeiro talvez o bairro mais sossegado de Luanda desse tempo
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Uma
vez na nova casa, eu e a minha irmã Dilar passámos a frequentar a
Escola Primária Nº 8, ao fundo da Rua Mouzinho de Albuquerque (hoje Rua
Marechal Tito), que ligava o Mercado de Quinaxixe ao Cemitério do Alto das Cruzes (Cemitério Velho), a caminho da Casa de Saúde de Luanda
(antiga Rua António Enes) e à entrada do Bairro Miramar. Entretanto,
assistimos quase diariamente a inúmeras rusgas de residentes e
trabalhadores africanos que viviam no Bairro Operário e nos muceques
vizinhos, que iam simplesmente a pé para o os seus empregos ou
regressavam para casa depois de um dia de trabalho ao longo da Rua
António Enes. Nós testemunhámos essa violência quase todos os dias, a
qualquer hora do dia ou da noite, levadas a cabo pela polícia ou por
grupos armados de vigilantes brancos que à mínima suspeita, ou mesmo sem qualquer razão, davam grandes cargas de pancada aos africanos inocentes que
por ali inocentemente passavam. Estas cenas injustificadas de violência
sobre residentes inocentes eram suportadas pela Polícia, estão ainda
hoje bem gravadas na minha memória. A hostilidade dos portugueses residentes em Angola contra a política norte-americana do Presidente Kennedy era evidente na imprensa e rádio locais, o que levou um grupo mais radical a lançar o carro do consul americano em Luanda à baía num momento mais aceso numa demonstração que teve lugar na Avenida Marginal uma semana depois aos ataques da UPA ao norte de Angola.
Os
nossos amigos, refugiados das áreas afectadas pela guerra ("terrorismo"
para a administração portuguesa, "Luta de Libertação Nacional" para os
nacionalistas angolanos, e "Guerra Colonial" para a oposição ao regime do Estado Novo
português) como nós, que encontravamos frequentemente, contavam-nos
histórias horripilantes do que estava a acontecer no Norte de Angola, de
amigos que foram mortos e do modo como foram mortos ou encontrados, e
de todas as atrocidades que os guerrilheiros da UPA (União dos Povos de Angola) vinham perpetrando.
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Desfile das tropas portuguesas na Avenida Marginal em Luanda, chegadas no navio "Niassa" a 1 de Maio de 1961
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No
dia 1 de Maio fomos todos assistir na Avenida Marginal ao desfile da
chegada das primeiras tropas portuguesas que tinham chegado a Luanda no
navio Niassa para combater a insurrecção no Congo português. Lembro-me
bem do desfile das tropas ao longo da Avenida Marginal, do sentido de
patriotismo do momento, e da festa de recepção que fizemos a um nosso
primo afastado João Graça, que eu nunca tinha conhecido antes, que era
alferes do exército e que tinha vindo nesse primeiro contingente de
tropas portuguesas, e que mais tarde veio a casar com a minha prima Manuela, filha dos meus tios Aurora e Armando.
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Soldados portugueses em acção nas matas do norte de Angola, 1961
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No plano internacional, o ano de 1961 foi um ano difícil para o governo português, pois ao mesmo tempo que a descolonização prosseguia para a maioria das colónias inglesas e francesas em África, o Dr. Oliveira Salazar, presidente do conselho de ministros do governo português, teimava em remar contra os ventos da história. Com efeito, o assalto ao navio Santa Maria, a posição adversária do Presidente John Kennedy e o seu suporte à UPA, as negociações para a renovação do uso da base aérea das Lages no Açores aos Estados Unidos, o constante contencioso com o conselho de segurança da ONU sobre a descolonização das colónias portuguesas, a tentativa de golpe de estado do general Botelho Moniz contra Salazar, as limitações ao uso de equipamento militar da NATO na guerra em Angola, o ataque militar da União Indiana a Goa que resultou na perda do Estado da Índia (Goa, Damão e Diu) e na prisão de cerca de quatro mil soldados portugueses, e finalmente o ataque à Base de Beja, no qual viria a ser morto o subsecretário de estado do Exército, puseram uma pressão muito intensa sobre uma situação de guerra já por si muito difícil, que só com muita dificuldade o governo de Salazar foi capaz de superar.
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