1 - Viagem Pela História de Angola

Uma viagem através dos tempos, povos, personagens e acontecimentos que moldaram a História de Angola.

Nome:
Localização: Cranbrook, Colômbia Britânica, Canada

Helder Fernando de Pinto Correia Ponte, também conhecido por Xinguila nos seus anos de juventude em Luanda, Angola, nasceu em Maquela do Zombo, Uíge, Angola, em 1950. Viveu a sua meninice na Roça Novo Fratel (Serra da Canda) e na Vila da Damba (Uíge), e a sua juventude em Luanda e Cabinda. Frequentou os liceus Paulo Dias de Novais e Salvador Correia, e o Curso Superior de Economia da Universidade de Luanda. Cumpriu serviço militar como oficial miliciano do Serviço de Intendência (logística) do Exército Português em Luanda e Cabinda. Deixou Angola em Novembro de 1975 e emigrou para o Canadá em 1977, onde vive com a sua esposa Estela (Princesa do Huambo) e filho Marco Alexandre. Foi gestor de um grupo de empresas de propriedade dos Índios Kootenay, na Colômbia Britânica, no sopé oeste das Montanhas Rochosas Canadianas. Gosta da leitura e do estudo, e adora escrever sobre a História de Angola, de África e do Atlântico Sul, com ênfase na Escravatura, sobre os quais tem uma biblioteca pessoal extensa.

segunda-feira, agosto 21, 2023

1.5 Nacionalismo, Descolonização, 4 de Fevereiro, 15 de Março, e Luanda em 1961

Alguns nacionalistas angolanos do Processo dos Cinquenta

 

Amigo Leitor - Para ler os meus outros blogs visite o Roteiro de Viagem. Obrigado.

 

7. Descolonização em África

Com a vitória incontestável dos Estados Unidos da America na Segunda Guerra Mundial e a sua ascenção a potência predominante do Ocidente, a Pax Britannica que reinou durante o imério britânico foi profundamente abalada, obrigando a Inglaterra a conceder independência política às suas colónias, começando com a Índia e o Paquistão em 1948, e as africanas nos primeiros anos da década de Sessenta, após um processo difícil no Quénia. A França, ainda mais enfraquecida, optou com maior relutância pela descolonização após duas desgastantes guerras no Vietname (Dien Bien Phu, 1956) e na Argélia (1962). A Bélgica viu-se num beco sem saída, o que obrigou o seu governo a conceder precipitadamente a independência ao Congo dentro de seis meses em Junho de 1960, deixando apenas Portugal como único país europeu com colónias de relevo em África, salvo as duas pequenas colónias da Espanha. A tudo isto temos de acrescentar o empenho com que o Presidente John Kenedy dos Estados Unidos deu à descolonização em todo o mundo


Entre 1957 e 1964, a grande maioria das colónias africanas ascenderam à independência, com a excepção das colónias portuguesas e do Sudoeste Africano (Namíbia), conforme indica o mapa abaixo:
 

Mapa da descolonização em África (em 1957 e em 1964)


Em Angola, as décadas do após guerra foram um período de progresso para os portugueses, mas não necessariamente para os angolanos, que se viram vítimas de uma exploração colonial ainda mais atroz gerada pela expansão desenfreada da produção de produtos coloniais como o café e os diamantes, e um aumento acentuado na imigração europeia com implicações profundas no mercado de trabalho, ao mesmo tempo que o aparelho de exploração colonial e a grelha administrativa se refinavam em gerar mais riqueza.

 
Imagem da inauguração do Monumento aos Descobrimentos Portugueses, em Lisboa, 1960
 
 
No entanto, pode dizer-se que Porugal, até 1959, gozava a sua própria Pax Lusitanica nas suas colónias, entre as décadas de 1920 e 1950, como atesta a imagem abaixo da inauguração do monumento aos Descobrimentos Portugueses em Lisboa, em celebração dos quinhentos anos da morte do Infante Dom Henrique. Em certa medida, o governo Português tinha acordado aos novos ventos da história, e continuou ainda mais a trilhar a sua política colonial cada vez mais antiquada de só olhar em como se podia extrair ainda mais riqueza das colónias, e não olhar para as aspirações dos povos das colónias, o que lhe viria a sair caro entre 1961 e 1975.
 

Cerimónia da Independência do Congo, em Leopoldville, a 30 de Junho de 1960, com a presença do Rei Balduíno da Bélgica, Presidente Joseph Kasavubu, e Primeiro Ministro Patrice Lumumba


Talvez porque fosse território vizinho de Angola, a independência do Congo foi um factor determinante no começo da luta anti-colonial em Angola, pois foi a partir do Congo que veio o maior auxílio para a luta armada em Angola em 1961 e nos anos seguintes. O governo português observava com grande atenção tudo o que se denrolava no Congo, e o público em geral em Angola seguia de muito perto e com muita apreensão todas as notícias que vinham do Congo, especialmente no que refere à retirada dos colonos belgas e à precária situação de segurança no período imediatamente após a independência. 
 
 
Ponte aérea de refugiados belgas chegando do Congo em 1960

 
Os líderes políticos congoleses presidente Joseph  Kasavubu, primeiro ministro Patrice Lumumba, Antoine Gizenga, Moisés Tchombé, Cyrille Adoula, e Joseph Mobutu tornaram-se nomes familiares em Angola diariamente mencionados na imprensa escrita e na rádio. Á medida que a situação foi piorando no Congo, não tardou muito para que a UPA se tivesse organizado e começado os ataques de 15 de Março de 1961 no Congo português.
 

8. Dissidentes Políticos 

 
As eleições presidenciais em Portugal de 1958 disputadas pelo Almirante Américo Tomás pela União Nacional (partido de Salazar) e pelo general Humberto Delgado (independente, mas suportado pelo Movimento de Unidade Democrática) dividiram o país em dois campos opostos muito polarizados. Para o cidadão comum, ou se era do regime, ou se era da oposição. Em Angola, essa polarização era mais complicada devido a crescente resistência à situação colonial. Num plano mais pessoal, os meus pais não eram muito a favor do regime colonial, se bem que não se pudesse dizer que eram "do contra". Eles acompanharam sempre de muito perto os maiores acontecimentos mundiais e regionais da altura e mantiveram relações de amizade com pessoas e famílias que viriam mais tarde a  ter um papel activo no movimento de resistência colonial e libertação nacional. 
 
Lembro-me que em 1959 os meus pais acompanharam de perto a evolução da luta armada em Cuba e consequente revolução que levou Fidel Castro ao poder. Em 1960 eles acompanharam de muito perto e com uma certa  inquietação o processo de independência do ex-Congo Belga, pois os meus tios Agostinho e Mélita viviam lá com o meu primo Hugo. Já nos fins de Janeiro de 1961 lembro-me que todos em casa acompanhámos de muito perto através da BBC Radio em ondas curtas todos os dias à noite as notícias sobre o assalto e desvio do paquete "Santa Maria" relizado a 22 de Janeiro, por um grupo de revoltosos liderados pelo Capitão Henrique Galvão, um ícone da oposição ao regime de Salazar, quando o navio saía de Miami com destino à Madeira. O Santa Maria foi supostamente desviado da sua rota e seguiria então com destino a Luanda onde era esperado por muitos jornalistas internacionais, mas acabou por ir com destino à cidade do Recife, Pernambuco, Brasil.


Capitão Henrique Galvão, líder do sequestro
do Paquete "Santa Maria" em 22 de Janeiro de 1961


Mais tarde em Dezembro de 1960, fomos todos para Luanda porque a minha mãe estava de bebé da minha irmã Ana Paula, que havia de nascer na Maternidade de Luanda (então chamada Maternidade Dr. Vieira Machado) a 14 de Janeiro de 1961, portanto cerca de onze anos mais nova que eu. 
 
Durante a nossa estadia em Luanda ficámos em casa de uma amiga de infância da minha Mãe dos tempos em que ela tinha vivido em Maquela do Zombo, a D. Helena Marreiros Morais, que morava na Travessa Conde Ficalho, perto da Padaria Lafões e da famosa Pastelaria Détinha (que bons pasteis de nata e bolas de Berlim!!!.), entre a antiga Rua Coronel Artur de Paiva (hoje Rua Rei Katiavale) e a antiga Avenida dos Combatentes (hoje Avenida Comandante Valódia). A D. Helena Marreiros (Morais) era filha do Tenente Marreiros e da D. Àurea, de nacionalidade espanhola, que tinha fugido aos horrores da Guerra Civil de Espanha, e refugiado em Maquela do Zombo, Angola. A D. Áurea era muito conhecida e respeitada no norte de Angola pois operava um sistema de carreiras de autocarro ligando Maquela do Zombo e a Damba com o resto do distrito. A D. Áurea tinha também um filho, o Rino, que a ajudava na gestão do negócio de camionagem, e era nosso amigo de casa chegado.

Ainda quando estávamos em casa da família Morais (o Sr. Alfredo, a D. Lena e Tommy (António Emídio, filho, da minha idade, e meu grande amigo de infância e falecido há uns anos) tive conhecimento numa conversa depois de jantar da Revolta da Baixa do Cassange e do uso de bombas Napalm pela Força Aérea Portuguesa usou para suprimir com violência a revolta dos trabalhadores da Cotonang a 4 de Janeiro de 1961, então a maior companhia (monopólio, melhor dizendo) envolvida na cultura e exportação de algodão em Angola. Soube também numa dessas noites muito vagamente da prisão do Cónego Manuel das Neves e mais alguns membros da resistência angolana, que ao que parece estavam a conspirar uma revolta contra a autoridade colonial. As nossas famílias também acompanharam de muito perto o Processo dos 50, em que a PIDE prendeu a maioria dos mais importantes líderes nacionalistas angolanos em Luanda, incluindo Mendes de Carvalho, André Mingas, Carlos Van-Dunen, Liceu Vieira Dias, Hélder Neto, Calazans Duarte, e Mário Guerra. O assalto à Casa de Reclusão de Luanda em 4 de Fevereiro de 1961 (por alguns considerado como o "Grito do Ipiranga" angolano) foi realizado com o propósito de libertar da prisão os líderes nacionalistas que lá se encontravam detidos.


Um aspecto da repressão policial contra a revolta camponesa
contra a Cotonang na Baixa do Cassange, que começou a 4 de Janeiro de 1961


A família Morais eram amigos de longa data muito chegados à nossa família. O Sr. Alfredo e a D. Lena eram conhecidos pela sua oposição ao regime de Salazar, e a vida em casa em certa medida reflectia a independência, mesmo até militância que os caracterizava. Na mesma casa residiam também temporariamente um casal novo com um bébé, o Adolfo Maria e a Lena (as três esposas eram Helenas: a minha mãe: Lena Ponte, a Lena Morais, e a Lena Adolfo (Maria), e os três maridos eram topógrafos). Não me posso esquecer o que as nossas mães (a minha e a do Tommy Morais) nos disseram para não responder a ninguém nunca qualquer pergunta sobre o Adolfo ou a Lena - as palavras da minha Mãe foram: "Não sei, não vi, não ouvi!" Isso fez-me "macacos na cabeça" pois não podia perceber porque é que tanto segredo era preciso para cobrir o Adolfo Maria e a Lena, mas, contudo, sem questionar, segui as prescrições à risca.


O jovem nacionalista Adolfo Maria, fotografia sem data,
mas presume-se ter sido tirada nos meados da década de 1960


Soube ainda através das conversas depois do jantar que o Adolfo era um activista político de relevo em Luanda, pois esteve envolvido no Sindicato (dos Empregados de Comércio e Indústria), tinha sido membro da Sociedade Cultural de Angola, e era um dos dinamizadores do Cine-Clube de Luanda. Soube ainda que ele, juntamento com Mário António, tinham sido preso antes pela PIDE e libertado no dia de natal de 1959, e soube ainda que o Adolfo e a Lena tiveram que "mudar" dentro de dias para outra casa, pois a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado, polícia política portuguesa) andava no seu encalço.
 
 
Cartão de identificação do temido director da PIDE,
Fernando Eduardo da  Silva Pais


9. O 4 de Fevereiro de 1961 
 
A família Morais tinha um empregado doméstico (naquele tempo designado como "criado") de nome Filipe, jovem africano ainda dos seus dezanove ou vinte anos, que tinha como aposentos um quarto ao fundo do quintal, e que nas noites de 4 de Fevereiro e seguintes não dormiu em casa. Aprendi dois dias mais tarde através do próprio Filipe, que com certo receio e em segredo me disse que tinha havido uma vaga de assaltos em Luanda e que tinha havido alguns mortos.
 
Com efeito, a luta armada para a libertação de Angola teve início com os ataques que tiveram lugar na madrugada de 4 de Fevereiro em Luanda, a saber, uma emboscada a uma viatura da Companhia Móvel da Polícia no Bairro da Casa Branca (no Muceque Sambizanga), que resultou na morte dos seus quatro ocupantes e na captura das suas armas; com estas, os nacionalistas seguiram com o assalto à Casa de Reclusão Militar no Bungo (a caminho do Cacuaco) onde se encontravam detidos muitos dos arguidos do Processo dos Cinquenta; o ataque à cadeia de da 7ª esquadra da PSP (Polícia de Segurança Pública) na estrada de Catete; e o ataque à cadeia da PIDE nos arredores do bairro de São Paulo, onde também se encontravam alguns nacionalistas detidos; e ainda as tentativas malogradas de assalto às instalações da Emissora Official de Angola e do edifício da estação central dos correios. No assalto morreram seis polícias e um soldado por parte das forças portuguesas e muitos nacionalistas angolanos.
 


Funeral dos Políciasmortos nos Ataques de 4 de Fevereiro de 1961


Os nacionalistas angolanos tentaram um segundo ataque sem exito na madrugada de 10 de Fevereiro à Administração Civil de São Paulo e à Companhia Indígena que resultou na morte de 22 nacionalistas e de 112 presos, que após interrogados pela PIDE não se soube do rasto para a maioria.



O Cónego Manuel Joaquim Mendes das Neves,
líder dos ataques do 4 de Fevereiro (1896-1966)


Os ataques do 4 de Fevereiro foram organizados e dirigidos pelo Padre Manuel Joaquim Mendes das Neves, Cónego da Sé de Luanda, com a participação de um grupo grande de nacionalistas angolanos ainda não organizados em partido ou movimento de libertação. No terreno, os ataques foram liderados pro Neves BendinhaPaiva Domingos da Silva, Domingos Manuel Mateus, Imperial Santana, e Virgilio Sotto-Mayor, e o número total de nacionalistas foi de cerca de duzentos. Apesar do detalhado planeamento e treino, os ataques fracassaram, principalmente devido à falta de armas eficazes, pois os grupos de nacionalistas tinham apenas catanas e canhangulos para efectuar os ataques.
 
A liderança dos ataques do 4 de Fevereiro têm sido reclamada pelo MPLA como tenham sido organizados pelos seus líderes, mas, na verdade, tal não foi o caso, pois nela estavam envolvidos nacionalistas de todos os quadrantes políticos, que actuaram independentemente da cúpula de qualquer partido ou movimento, incluindo o MPLA e a UPA.



Assalto à Casa de Reclusão de Luanda,
4 de Fevereiro de 1961


Três ou quatro dias depois fomos ao funeral dos seis polícias no Cemitério da Estrada de Catete (antigo Cemitério Novo), onde para meu terror assisti a uma terrível confusão, com muitos tiros, muitos gritos, pessoas a fugirem para todo o lado, uns a caírem feridos, outros a tentarem abrigar-se do intenso tiroteio. Entretanto, tinha-me perdido da D. Lena, da minha Mãe, e do Tommy, ficando paralisado (mais estarrecido, talvez) durante três horas deitado ao lado da campa do meu avô que tinha ido visitar por uns momentos, até já à noitinha.


Notícia na primeira página do jornal O Diário de Lisboa
 sobre os ataques do 4 de Fevereiro


Quando já tudo tinha acalmado um pouco, mas com o cemitério ainda em grande confusão e cheio de pessoas aterrorizadas, feridas e talvez algumas mortas, um polícia encontrou-me e levou-me para a esquadra central da Polícia de Segurança Pública (PSP) ao lado da antiga Livraria Lello, no Largo Pedro Alexandrino da Cunha (hoje Largo Raínha Jinga, ou popularmente Largo dos Correios), na baixa de Luanda. Mais tarde, por cerca das nove horas da noite a minha mãe e a D. Lena Morais ansiosas vieram-me buscar e levaram-me para casa. Ainda hoje, quando relembro esse acontecimento, vem-me à memória o sentimento de terror que senti nesse fatídico funeral dos sete polícias, e o sentido que esse acontecimento histórico teve para mim. 
 
 
10. O 15 de Março de 1961 
 
Mais ou menos duas semanas mais tarde depois do nascimento da minha irmã Paula regressámos à Damba, e um mês mais tarde no dia 15 de Março de 1961 tiveram lugar os assaltos da UPA (União dos Povos de Angola) à povoação do Quitexe, a outras povoações, e a muitas fazendas de café no Distrito do Uíge, em que um número elevado de brancos e trabalhadores (contratados) do Bailundo (Huambo e Bié) foram mortos pelos revoltosos.


Um aspecto da vida quotidiana europeia numa fazenda
perto da Vila do Quitexe, antes do 15 de Março de 1961


Soubemos acerca desse acontecimento de manhã cedo no dia seguinte (16 de Março), e com o meu Pai ainda em Luanda, lembro-me bem que a minha Mãe resolutamente decidiu em imediato e contra a opinião de todos os presentes, desfazer tudo o que tinha em casa, carregar as mobílias da casa em duas camionetes, e partir algumas horas depois (ao fim da tarde) com destino à Vila do Bungo em direcção final a Luanda. Durante a viagem, já depois da povoação de 31 de Janeiro, um grupo de revoltosos ("terroristas" para uns, "heróis" para outros) de catana na mão bloquearam a estrada e tentaram parar os camiões em que seguíamos. O condutor do camião em que eu ia (a minha Mãe, e a minha irmã Dilar, e a minha irmã Paula de dois meses, iam no outro camião atrás do nosso) disse-me para me abaixar e abrigar, e decidiu não parar, pôs o pé no acelerador ao fundo e em velocidade crescente passou pelo grupo que acenavam suas catanas afiadas ao verem-nos passar. Foi tudo muito rápido, e no escuro, que salvo a luz dos faróis do camião, pouco mais se podia ver senão alguns vultos dos assaltantes e o brilho do gesticular das suas catanas; mas lembro-me bem o terror que senti nesse momento. Talvez uma hora e meia mais tarde chegámos à Vila do Bungo onde não nos deixaram prosseguir a viagem. Passámos o resto da noite na igreja da vila com o resto das mulheres e crianças num ambiente de terror caótico e de angústia, guardados pelos homens da vila, armados e fazendo vigia à volta da igreja, onde se tinham refugiado todos.


Militantes da UPA, Damba, 1961


De manhã, já a 17 de Março, e contra o conselho de todos, a minha Mãe insistiu em prosseguir a viagem para a Vila do Negage, onde nos tinha sido dito que uma ponte aérea estava a evacuar mulheres e crianças para Luanda. Chegámos ao Negage ao meio-dia, sob uma chuva torrencial, de onde fomos dirigidos para a Base Aérea No.9 que ainda estava em construção nessa altura. Sob a chuva torrencial o barro vermelho não nos deixava sequer andar, contudo, com alguma dificuldade chegámos finalmente à Base Aérea do Negage, onde fomos encontrar centenas de mulheres e crianças refugiadas como nós à espera da sua vez para serem evacuados para Luanda. 


Os movimentos e focos principais de revoltosos 
 da UPA nos ataques ao Norte de Angola em 1961


Horas mais tarde, nesse mesmo dia, fomos evacuados num avião NordAtlas ("Barriga de Ginguba" da Força Aérea Portuguesa) para Luanda, onde já chegámos à noitinha e onde o meu Pai nos esperava no então Aeroporto Craveiro Lopes (hoje 4 de Fevereiro) em Luanda.


Vítimas inocentes do ataque da UPA a uma fazenda no Norte de Angola


Na verdade, as fotografias dos ataques da UPA em Março de 1961 postos a circular em todo o mundo pelo governo portguês mostravam corpos de bébés e mulheres mutilados e barbaramente assassinados, o que decerto não ajudou a causa da libertação nacional. O próprio Holden Roberto, chefe da UPA, se horrorizou quando viu o que os seus revoltosos fizeram. Como era de esperar, a reacção do governo português foi pronta e tenaz. As palavras de Salazar, no seu discurso à nação em 13 de Abril de 1961 diziam tudo:"A explicação é Angola. Andar rapidamente e em força é o objectivo que vai pôr à prova a nossa capacidade de decisão".
 


Os defensores portugueses da Damba, fotografia tirada no aeródromo em Abril de 1961


A povoação do Lucunga foi atacada em 12 de Abril resultando no massacre da maioria dos seus residentes portugueses. Nela faleceu nesse dia o nosso amigo de família, Senhor Amaral, que era casado com uma filha da D. Estrla do Lueca. A Damba foi atacada a 17 de Abril por duas colunas da UPA, uma vinda pela estrada de Maquela e a outra pela estrada do Lucunga, começando por um assalto à residência do secretário, seguido do ataque à residência de dois andares do administrador, onde os residentes da Damba se tinham refugiado e estabelecido um forte dispositivo de defesa. Ao fim de algumas horas de combate os guerreiros da UPA  abandonaram o ataque deixando muitos mortos no terreno. Ao fim da tarde chegaram reforços militares da companhia de caçadores especiais de Maquela do Zombo (, que ajudaram a evacuar mulhers e crianças para Carmona e Luanda. A Damba foi novamente atacada a 19 de Abril, mas desta vez com combates mais intensos que visavam a igreja local, onde os residentes se tinham refugiado como reduto de defesa. O irmão Pedro, missionário capuchinho da Missão Católica da Damba, foi morto neste assalto quando saíu da igreja a tentar acalmar os atacantes. After algumas horas de intenso combate, os atacantes retiraram deixando muitos mortos no terreno. A Damba tornou a ser atacada nos dias seguintes, mas com menos intensidade, já que as baixas aos assaltantes se amontoavam dia-a-dia.
 

O avião de transporte Nord-Atlas (Barriga de Ginguba) da Força Aérea Portuguesa que nos evacuou da Base Aérea do Negage para Luanda a 17 de Março de 1961


O Mucaba sofreu um assalto muito intenso a 29 de Abril, onde os residentes refugiados no posto de administração resitiram até quase ao limite das suas forças os ataques dos assaltantes. O chefe de Posto Hermínio de Carvalho Sena, nosso amigo de casa, líder da resistência portuguesa, foi consagrado como o chefe dos herois do Mucaba, e celebrado em todo o Portugal de Minho a Timor.


Patrulha do Exército Português no Norte de Angola
aprisionando um combatente nacionalista angolano, 1961 


A revolta da UPA visou não somente os colonos portugueses brancos, mas também os "contratados" africanos (trabalhadores rurais sob contrato de trabalho) que supriam as fazendas de mão-de-obra africana para as roças de café de colonos portugueses onde os Congueses não queriam trabalhar. Estes trabalhadores vinham principalmente da região do Huambo, sob condições de exploração atrozes em que todos ganhavam com o negócio, incluindo o fazendeiro, o angariador, o administrador ou chefe de posto, e o camionista, excepto o trabalhador rural ele próprio, que se via atado a um contrato de trabalho árduo e desvantajoso de dois anos que por norma iria durar muitos mais anos longe da terra e da família. Os trabalhadores Ovimbundo eram vistos pelos Bakongo como aliados dos colonos brancos e estima-se que tenham sido mortos milhares de trabalhadores Ovimbundo nos primeiros assaltos do 15 de Março.

 
11. Luanda em 1961 
 
Os primeiros dias em Luanda foram de grande apreensão para mim. Ainda muito novo para compreender a guerra iniciada pela UPA (União dos Povos de Angola) e a revolta de 15 de Março, incluindo os ataques ao Lucunga a 17 de Abril e à Damba a 17 e outra vez a 19 de Abril, em que dois amigos de casa foram torturados e barbaramente mortos à catanada em frente à Igreja da vila. A nossa atenção focou-se em especial no ataque à nossa Roça de Novo Fratel em Agosto em que os trabalhadores bailundos ou fugiram para o mato ou foram mortos no terreiro do café, e os edifícios, máquinas, viaturas, mobílias, stock de café, e recheio, etc. foram completamente destruídos. Soube ainda que os assaltantes fizeram uma fogueira muito grande com os livros da biblioteca valiosa do meu avô, o que foi muito difícil para mim fazer qualquer senso dessa destruição e mortandade. 


Guerrilheiros da UPA armados de "canhangulos", Distrito do Uíge, 1961


Contudo, no meio de tanta aflição e tragédia, senti que tivémos sorte, porque fugimos a tempo e não tínhamos perdido nenhum membro da família. A maioria dos "deslocados" (refugiados) do Norte, que nessa altura se contavam já em muitos milhares, tinham sido acomodados em centros de alojamento temporários e recebiam ajuda alimentar, de vestuário e de medicamentos fornecidos pela Comissão Provincial de Apoio às Populações Deslocadas (CPAPD - o IARN de outros tempos). Quanto à nossa família, nós ficámos primeiro em casa de amigos de família (do Sr. Arlindo Cruz, falecido há muito, irmão ou cunhado (?) dos locutores Alice Cruz ou Carlos Cruz). Poucos dias mais tarde, os meus pais decidiram alugar um apartamento na Rua António Enes (hoje Rua Ndunduma), junto à antiga Pastelaria Suíça, a caminho do Bairro Operário, no segundo andar do prédio da antiga Farmácia Confiança, já bem perto do Bairro Operário, e dois ou três meses mais tarde, uma casa de primeiro andar na mesma Rua António Enes, mas mais a nordeste, em frente a um prédio de lojas e apartamentos, na esquina que dava acesso ao Bairro Miramar, que a minha mãe e minhas tias tinham herdado do meu avô que tinha falecido seis anos antes.


Largo do Cruzeiro, no Bairro do Cruzeiro
talvez o bairro mais sossegado de Luanda desse tempo


Uma vez na nova casa, eu e a minha irmã Dilar passámos a frequentar a Escola Primária Nº 8, ao fundo da Rua Mouzinho de Albuquerque (hoje Rua Marechal Tito), que ligava o Mercado de Quinaxixe ao Cemitério do Alto das Cruzes (Cemitério Velho), a caminho da Casa de Saúde de Luanda (antiga Rua António Enes) e à entrada do Bairro Miramar. Entretanto, assistimos quase diariamente a inúmeras rusgas de residentes e trabalhadores africanos que viviam no Bairro Operário e nos muceques vizinhos, que iam simplesmente a pé para o os seus empregos ou regressavam para casa depois de um dia de trabalho ao longo da Rua António Enes. Nós testemunhámos essa violência quase todos os dias, a qualquer hora do dia ou da noite, levadas a cabo pela polícia ou por grupos armados de vigilantes brancos que à mínima suspeita, ou mesmo sem qualquer razão, davam grandes cargas de pancada aos africanos inocentes que por ali inocentemente passavam. Estas cenas injustificadas de violência sobre residentes inocentes eram suportadas pela Polícia, estão ainda hoje bem gravadas na minha memória. A  hostilidade dos portugueses residentes em Angola contra a política norte-americana do Presidente Kennedy era evidente na imprensa e rádio  locais, o que levou um grupo mais radical a lançar o carro do consul americano em Luanda à baía num momento mais aceso numa demonstração que teve lugar na Avenida Marginal uma semana depois aos ataques da UPA ao norte de Angola.

Os nossos amigos, refugiados das áreas afectadas pela guerra ("terrorismo" para a administração portuguesa, "Luta de Libertação Nacional" para os nacionalistas angolanos, e "Guerra Colonial" para a oposição ao regime do Estado Novo português) como nós, que encontravamos frequentemente, contavam-nos histórias horripilantes do que estava a acontecer no Norte de Angola, de amigos que foram mortos e do modo como foram mortos ou encontrados, e de todas as atrocidades que os guerrilheiros da UPA (União dos Povos de Angola) vinham perpetrando. 


Desfile das tropas portuguesas na Avenida Marginal em Luanda,
chegadas no navio "Niassa" a 1 de Maio de 1961


No dia 1 de Maio fomos todos assistir na Avenida Marginal ao desfile da chegada das primeiras tropas portuguesas que tinham chegado a Luanda no navio Niassa para combater a insurrecção no Congo português. Lembro-me bem do desfile das tropas ao longo da Avenida Marginal, do sentido de patriotismo do momento, e da festa de recepção que fizemos a um nosso primo afastado João Graça, que eu nunca tinha conhecido antes, que era alferes do exército e que tinha vindo nesse primeiro contingente de tropas portuguesas e que mais tarde veio a casar com a minha prima Manuela, filha dos meus tios Aurora e Armando.



Soldados portugueses em acção nas matas do norte de Angola, 1961

 

 No plano internacional, o ano de 1961 foi um ano difícil para o governo português, pois ao mesmo tempo que a descolonização prosseguia para a maioria das colónias inglesas e francesas em África, o Dr. Oliveira Salazar, presidente do conselho de ministros do governo português, teimava em remar contra os ventos da história. Com efeito, o assalto ao navio Santa Maria, a posição adversária do Presidente John Kennedy e o seu suporte à UPA, as negociações para a renovação do uso da base aérea das Lages no Açores aos Estados Unidos, o constante contencioso com o conselho de segurança da ONU sobre a descolonização das colónias portuguesas, a tentativa de golpe de estado do general Botelho Moniz contra Salazar, as limitações ao uso de equipamento militar da NATO na guerra em Angola, o ataque militar da União Indiana a Goa que resultou na perda do Estado da Índia (Goa, Damão e Diu) e na prisão de cerca de quatro mil soldados portugueses, e finalmente o ataque à Base de Beja, no qual viria a ser morto o subsecretário de estado do Exército, puseram uma pressão muito intensa sobre uma situação de guerra já por si muito difícil, que só com muita dificuldade o governo de Salazar foi capaz de superar.