1 - Viagem Pela História de Angola

Uma viagem através dos tempos, povos, personagens e acontecimentos que moldaram a História de Angola.

Nome:
Localização: Cranbrook, Colômbia Britânica, Canada

Helder Fernando de Pinto Correia Ponte, também conhecido por Xinguila nos seus anos de juventude em Luanda, Angola, nasceu em Maquela do Zombo, Uíge, Angola, em 1950. Viveu a sua meninice na Roça Novo Fratel (Serra da Canda) e na Vila da Damba (Uíge), e a sua juventude em Luanda e Cabinda. Frequentou os liceus Paulo Dias de Novais e Salvador Correia, e o Curso Superior de Economia da Universidade de Luanda. Cumpriu serviço militar como oficial miliciano do Serviço de Intendência (logística) do Exército Português em Luanda e Cabinda. Deixou Angola em Novembro de 1975 e emigrou para o Canadá em 1977, onde vive com a sua esposa Estela (Princesa do Huambo) e filho Marco Alexandre. Foi gestor de um grupo de empresas de propriedade dos Índios Kootenay, na Colômbia Britânica, no sopé oeste das Montanhas Rochosas Canadianas. Gosta da leitura e do estudo, e adora escrever sobre a História de Angola, de África e do Atlântico Sul, com ênfase na Escravatura, sobre os quais tem uma biblioteca pessoal extensa.

domingo, agosto 20, 2023

1.3 O Meu Encontro com a História de Angola

Passado - História e Memória
 

  

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Esta é uma tarefa sem fim em vista, pois continuo a melhorar este blogue continuamente. Assim, volta em breve, pois vais encontrar algo de novo!

 

1. A Nossa História Pessoal  

Nos meus tempos de jovem havia na antiga Avenida Marginal em Luanda (hoje Avenida 4 de Fevereiro e antigamente Avenida Paulo Dias de Novais, entre o Largo do Baleizão e o Morro da Fortaleza, ao fundo da Calçada dos Enforcados e junto à antiga fábrica de sabão) os restos de um sobrado familiar (uma casa grande) muito antigo, talvez construído no Século XVIII (ou mesmo antes), em parte já em ruínas, que cada vez que passava por ele me indagava a curiosidade - perguntava a mim próprio quando é que foi construído? Quem o construiu? Como foi construído? O quintal tinha barracões para escravos? Quantas gerações da mesma família ou de familias diferentes viveram nele? Quantas pessoas lá nasceram e morreram? Como era o quotidiano da vida em Luanda ao longo deste período de mais de três séculos? Viveu nele alguém de relevo na História de Angola? Alguma família notável? Como teria sido a vida doméstica dessas famílias nesses tempos idos? Quantos escravos trabalhavam nessa casa? Quais as tarefas que faziam? Qual a principal função que servia - era uma residência para a familia de um militar, de um governante, de um comerciante, de um prelado, ou de um traficante de escravos? Quando e porque é que o sobrado passou a ser desabitado? Porque que é este sobrado histórico tão interessante nunca foi reabilitado? E ainda porque é que havia tantos antigos sobrados no Bairro dos Coqueiros e menos noutros bairros de Luanda? 

Nota - Felizmente, este sobrado, ao contrário de tantos outros marcos históricos de Luanda de outros tempos, sobreviveu a força do consumerismo, pois foi recentemente respeitado e preservado (quase) na sua integridade pelo novo Shopping Fortaleza. Bem haja a quem tomou essa sensata decisão. 

 

O sobrado a que me refiro no princípio deste blogue encontra-se em baixo e à direita na foto, foto de Luanda antiga, cerca 1900.

Por vagos momentos, a minha mente voava para trás da bruma do tempo, procurando no nevoeiro da história o saciar dessa curiosidade, o que, por associação, invariavelmente me levava a pensar na minha história pessoal, na história da minha família, na história de Luanda, na história de Angola, na história da humanidade, na história do mundo, e até na história do universo. 


As ruínas do mesmo sobrado (à direita e centro), fotografia 1960s


Todos nós temos a nossa história pessoal e todos nós temos um sentido inato de história. É certo que enquanto éramos jovens, tudo o que aconteceu antes do ano do nosso nascimento parecia que tinha acontecido há muito tempo. Nós pensamos na nossa árvore genealógica, e no que era a vida no tempo dos nossos pais e avós, e até em tempos mais remotos. Mais junto a nós, ás vezes encontramo-nos a pensar no que tem sido a história da nossa vida, nos acontecimentos que vivemos e testemunhámos, ou no percurso individual que passámos através da nossa vida. 

Nesse esforço indagamos ainda como é que a história da nossa vida se relaciona com a história da nossa família e amigos, da nossa vizinhança ou comunidade, da nossa cidade ou nação, ou mesmo até como ela se relaciona com o esquema geral da história do mundo. Mercê da nossa vivência real e directa de acontecimentos históricos, quando olhamos para o passado apercebemo-nos de que fomos testemunha, participante, ou mesmo até agente de mudança na evolução geral da história da sociedade em que vivemos. 

Se bem que muitos de nós acreditamos que tudo no universo é aleatório, nós podemos também identificar algumas relações concretas e válidas entre factos históricos diferentes.

Neste processo de análise da nossa história pessoal apercebemo-nos também como os acontecimentos históricos que testemunhámos moldaram não só a nossa vida como também a nossa personalidade, e mesmo até a maneira como vemos o nosso lugar no universo.

 

Um prédio emblemático na Avenida Marginal de Luanda dos anos Cinquenta (Cervejaria Baía)

 

Alguns de nós, talvez por razões completamente aleatórias, tivemos a sorte (ou o azar, dependendo da perspectiva) de ser testemunha em certos acontecimentos que são tão marcantes para a sociedade em que vivemos, que eles servem de marcos para a história recente dessa sociedade, e que nos deixaram uma marca profunda para o resto das nossas vidas. E alguns, embora em muito menor número, temos a experiência de ter participado directa e activamente nesses acontecimentos, como agentes ou mesmo até como dirigentes de uma vivência social e histórica em rápida mudança. 

Contrariamente a qualquer outro valor material, a nossa natureza humana compele-nos a partilhar com os outros a nossa história pessoal, pois sabemos que quando a morte nos chamar, o livro da nossa vida se fecha e apaga para sempre, e com ele desaparece para sempre o tesouro do nosso conhecimento e a memória da nossa experiência pessoal e íntima. 

No meu caso pessoal, tenho consciência clara de que vivi momentos históricos extraordinários, que ficarão na história do mundo como marcos de mudança fundamentais para a Angola em que vivi. Como exemplo, relembro o rápido desmoronar do império colonial português e a independência de Angola. Estes acontecimentos foram únicos e de impacto profundo para a todos os angolanos e portugueses, pois com eles se escreveu o último capítulo de uma sociedade em extinção, e com eles se abriu num livro novo, cujo primeiro capítulo foi o construir de uma nova sociedade e nação. 

No caso concreto de Angola, quem viveu na Angola colonial, sabe bem apreciar as mudanças radicais que tiveram lugar desde a década de cinquenta do século passado até hoje, e como elas afectaram a vida de todos nós, não só em Angola, mas também na diáspora para onde fomos remetidos. 

Assim, em pouco mais que duas gerações, fomos testemunhas de mudanças profundas na nossa vivência quotidiana, alguma das quais nós (a nossa geração) fomos os últimos a viver um modo de vida que desapareceu para sempre, deixando apenas em alguns de nós a saudade de bons tempos, e noutros o alívio de saber que esses maus tempos passados jamais voltarão, mas que em ambos a memória forte desses tempos permanece.

Eu confesso aqui que tenhos muitas saudades de Angola, e que essa profunda saudade me tem acompanhado durante toda a minha vida; contudo, eu devo também dizer que não quero voltar "aos bons tempos de Angola" pois que se bem que bons para mim, eu tenho plena consciência de que eles foram "maus tempos" para muitos outros. 

É com tristeza que ainda vejo tanta pobreza num país tão rico como Angola, passados que são mais de cinquenta anos, mas eu acredito o povo angolano está empenhado em melhorar essa injustiça, e que o futuro será melhor do que o presente e muito melhor do que o passado.

Assim, sinto que tenho de partilhar com o mundo, mesmo que numa perspectiva um pouco ego-histórica e um tanto nostálgica, o que sei e senti numa Angola que já há muito não existe, pois sei que sou um membro da última geração que o pode fazer ao vivo, baseado na minha experiência pessoal e directa. 

Sei que quem vier depois de nós e quiser contar a nossa história, terá que basear a sua narrativa no nosso testemunho directo. Este é o meu baú de memórias que tenho de Angola enquanto lá vivi de 1950 a 1975. Este é o meu testemunho, e de mais ninguém.

Esta é assim a razão fundamental desta minha Viagem Pela História de Angola. 

Sei também que a minha perspectiva não é neutral; sei que ela é colorida pela minha herança cultural e material no xadrez da sociedade colonial angolana de então, mas prometo que vou tentar ser tanto objectivo quanto possível, embora sabendo que não posso ser completamente isento.

O texto destas minhas memórias é pessoal, longo e detalhado. Para tal, peço que sejas paciente na sua leitura. Eu deixo o registo das minhas memórias para que muitos depois de mim possam aprender em detalhe e primeira mão o que era o dia-a-dia da vida em Angola entre 1950 e 1975 para uma família de raízes mistas como a minha. 


Tempo, Verdade, e História - Pintura de Goya (1797-1800)

 

No longo caminho de aprender história que começou para mim formalmente em 1964 nas aulas de História do 3º Ano dadas pela saudosa Dra. Judite Morais, no antigo Liceu Paulo Dias de Novais em Luanda, até aos dias de hoje, vieram-me muitas vezes à mente as seguintes perguntas: Afinal, o que é a história? Quem "faz" história? - são os factos? É o protagonista? É o historiador? ou são ambos? Porquê história? Como podemos estudar história? O que podemos aprender da história? Podemos viver sem história? Pode haver presente sem história? Pode haver futuro sem história?  Quais os usos e abusos da história? História de quem? História do vencedor, do vencido, de heróis, dos chefes e dos reis, de pessoas comuns, de ambos, ou de nenhuns? Os ignorados não têm história? História para quem? O que é que despertou em mim o interesse (quase paixão!) pela história? Perguntas postas não só por mim próprio, mas também por outros. 

Desde que me lembro, tive sempre uma curiosidade imensa em indagar as raízes da nossa vida quotidiana. Porque é que vivemos a vida que vivemos, e quais foram os factores determinantes em vivermos num mundo de duas culturas (a africana e a ocidental), que não estavam em sintonia uma com a outra? 

 

Diogo Cão erege o Padrão de São Jorge na foz do rio Zaire em 1482; painel de azulejo da autoria de Mário Eduardo Passos Reis, na biblioteca do Liceu Nacional Salvador Correia, em Luanda.
 
 
Para melhor compreender estas perguntas e dar respostas mais completas, penso que é necessário partilhar contigo um pouco da minha vivência pessoal de acontecimentos que vivi, que penso nos vão ajudar nesta Viagem Pela História de Angola a demarcar mais claramente o contexto social e histórico que me esforço em descrever. 
 
Com frequência, ao narrar-se história, é fácil complicá-la, mas é ainda muito mais difícil simplificá-la. Por isso vou fazer um esforço por mantê-la simples e em foco, para assim ser mais fácil de compreender.

Peço assim, que me acompanhes por alguns dias nesta viagem nostágica mas aliciante, viagem  pessoal que vai atrás mais de mais de 60 anos no passado, desde os meus anos de menino até 1975, ano em que deixei Angola para nunca mais voltar. 

Devo dizer-te de antemão que este troço da Viagem Pela História de Angola é mais memória do que é história. É de facto o troço mais pessoal e íntimo desta Viagem, em que faço referência a pessoas e acontecimentos que foram importantes somente para mim e não necessariamente para alguém mais. É decerto um passeio embrumado em nostalgia, mas é também um passeio esclarecido pela perspectiva de vida que aperfeiçoei ao longo de mais de setenta anos.

Este passeio muito íntimo e sereno serve também para expressar o meu profundo reconhecimento e agradecimento a todos os que lutaram em Angola, especialmente aqueles que deram a sua vida, nos dois lados do conflito - angolanos e portugueses, pois eu sinto que a sua acção não só libertou o povo angolano do jugo colonial, mas também libertou Portugal do fardo colonial com raízes tão profundas na sua história. 

Num plano mais pessoal, devo dizer que a guerra colonial também me libertou a mim próprio e também uma geração de portugueses. Ela deu-me a liberdade de viver uma vida mais justa, livre, e feliz, no seio de uma sociedade mais democrática, embora na triste diáspora, sem ter nunca mais de voltar a enfrentar o espectro escuro e violento da exploração colonial.

Falo aqui de acontecimentos que tiveram lugar há muitos anos (50, 60, e mesmo 70 anos atrás), e de muitas pessoas que já cá não andam neste mundo. Para bem ou para o mal, foram elas quem me ajudaram a ser o que sou e a ser o que sempre quis ser ao longo da vida, e por tudo o que fizeram e me deram, aqui registo o meu mais sincero agradecimento, na impossibilidade de o poder fazer pessoalmente.

Não pretendendo assim narrar aqui a minha biografia em grande detalhe, mas entretanto e em poucas palavras tenho que te dizer que ...  

    Tive sorte... 
 
        Tive sorte de ter nascido onde nasci 
        de ter tido a família que tive 
        Sorte de ter crescido onde cresci 
        de ter vivido onde vivi
        
        Tive sorte de ter vivido na época em que vivi        
        de ter os amigos que tive 
        Sorte de ter vivido o que vivi
        de ter esquecido o que esqueci
       
        Tive sorte de ter acreditado no que acreditei 
        de ter pensado o que pensei 
        Sorte de ter chorado o que chorei
        de ter amado quem tanto amei
        
        Tive tanta sorte que assim guardo para sempre 
        o que no mundo vale mais que todo o ouro
        Tanta sorte, pois tudo o que acima disse, 
        guardo para o meu sempre como o meu mais valioso tesouro. 
 
 
Assim, descrevo a seguir alguns acontecimentos de que vivi ou que fui testemunha, que não só me marcaram como pessoa, mas que também acredito foram marcos importantes no percurso da História de Angola de há mais de sessenta anos atrás. Ofereço também as minhas impressões e opiniões pessoais do que vi e aprendi na Angola desse tempo.
 
 
A antiga fazenda da firma Gomes & Irmão em Belas, a sul de Loanda escrita com "ó"

 
A Angola de uma época cada vez mais longínqua por cada dia que passa, num lugar e tempo ainda não poluídos pela prodigiosa cornucópia da parafernália tecnológica de telefones, televisão, computadores, internet, tablets, celulares, social media, ou inteligência artificial; mas apesar de tudo, uma realidade pessoal profundamente marcada pela vivência colonial que nos rodeava.
 
 
2. Árvore Genealógica
 
Antes de começar a partilhar esta viagem é importante dizer quem eu sou. Assim, ofereço aqui um breve resumo biográfico e genealógico meu e da minha familia até 1975, ano em que deixámos Angola devido à guerra civil que então deflagrou no país. 
 
Começando por mim, o meu nome é Helder Fernando de Pinto Correia Ponte, tamém conhecido por Chinguila (ou Xinguila), nos meus anos de juventude em Luanda, Angola. Eu nasci na vila de Maquela do Zombo, perto da fronteira norte com o antigo Congo Belga, hoje República Democrática do Congo (RDC), no antigo distrito do Uíge (hoje província), Angola, em 1950. 
 
Vivi a minha meninice na vila da Damba e a minha juventude no Bairro da Maianga em Luanda. Frequentei a antiga escola primária da Damba, os antigos Liceu Paulo Dias de Novais e Liceu Nacional Salvador Correia em Luanda, e a Faculdade de Economia da Universidade de Luanda. 
 
Cumpri serviço militar obrigatório no exército português como oficial miliciano dos serviços de intendência (logística) em Luanda e Cabinda. Casei em Setembro de 1975 com a minha Princesa do Huambo (Estela) de que temos o nosso filho Marco Alexandre. Emigrámos para o Canadá em 1979 onde vivemos desde essa altura. Estou agora reformado, depois de ter trabalhado por mais de quarenta anos com primeiras nações Índias no Oeste do Canadá (Colômbia Britânica), com quem aprendi muito e guardo as mais gratas recordações. 
 
Cabe dizer que eu por natureza sou optimista; pois quando vejo um copo de água meio cheio, ele para mim está meio cheio, não meio vazio.

Eu conheci a Estela, que viria a ser minha Princesa do Huambo, quando vivia na Residência Universitária #2 na Rua Oliveira Barbosa (actual rua Agostinho Neves, Maianga/Alvalade) em Luanda em 1972, quando frequentava a Universidade de Luanda. Passados alguns meses ficamos mais do que amigos chegados e casámos em Setembro de 1975, quando Luanda já não era a mesma. Vivemos três anos em Portugal, e emigrámos definitivamente para o Canadá em Março de 1979. O nosso filho Marco nasceu em 1983. 
 
Os pais da Estela (Sr. António Monteiro e D. Glória) eram de Portugal (ele natural de uma aldeia perto da cidade da Guarda (Cubo, Meio), e ela natural da vila de Penamacor, Castelo Branco) e vieram para Nova Lisboa, Huambo, ele em 1941 e ela em 1944, onde montaram um negócio de serralharia mecânica e carpintaria de mobílias, e mais tarde um exploração de mármores na Huíla e Moçâmedes. 
 
O Sr. Monteiro e a D. Glória tiveram três filhos: a Ivone nascida em 1941 na Guarda (Portugal) e, a Estela em 1951, e o Gutó (Augusto António) em 1953, ambos nascidos em Nova Lisboa (Huambo). A Ivone casou com o Ilídio Carvalho, natural da Guarda, Portugal, de quem teve três fois filhos também todos nascidos em Nova Lisboa: o Jorge, nascido em 1961, a Marisa, nascida em 1963, e a Ruca (Elsa Marina), nascida em 1965. A família Carvalho viveu em Nova Lisboa e em Luanda (onde eu vim a conhecer a Estela em 1972 como vizinha na próxima casa na Rua José Oliveira Barbosa, junto à Residência Universitária nº 2). O Gutó casou com a Nazaré Pereira (também de Nova Lisboa), com quem veio a ter dois filhos: O Nuno Miguel nascido em 1973 em Nova Lisboa, e o Tiago, já nascido no Canadá em 1977.
 
Todos os membros das famílias Monteiro e Carvalho deixaram Angola em 1975 e emigraram para o Canadá em 1976, onde tiveram que recomeçar a vida a partir do zero, incluindo os pais da Estela, já depois dos sessenta anos de idade num país muito diferente. Eles viveram na mesma cidade em que nós (Cranbrook, Colômbia Britânica), durante o resto das suas vidas, vindo a falecer em 2009 e 2010, respectivamente, depois de muitos desafios. 


O nosso filho Marco, Estela (Princesa do Huambo), e eu (2005)

 
A minha Mãe (Maria Helena) nasceu em Leopoldville (hoje Kinshasa, no antigo Congo Belga, hoje República Democrática do Congo) em 1921. A minha mãe passou a sua meninice em Lisboa, e veio para Angola ainda na sua juventude, como consequência da grande crise económica de 1929-33 onde viveu a maior parte da sua vida, até ir para o Brasil em 1975, após a independência de Angola. Ela faleceu em Abril de 2010 em Macaé, no Estado do Rio de Janeiro, Brasil. 
 
A minha Mãe foi sempre a pessoa que mais admirei em toda a minha vida. Apesar das grandes e muitas vicissitudes que ela enfrentou na sua vida, ela nunca deixou de lutar contra a adversidade e injustiça, e manter sempre o ânimo no momento presente e a esperança de tempos melhores. Foi dela que herdei o gosto muito grande que tenho em aprender, em ver a vida como a vejo, e em ser a pessoa que me esforço ser. Ela falava bem kikongo e tinha uma boa compreensão da História de Angola em geral e do Antigo Reino do Congo em particular. 


A minha Mãe Maria Helena de Pinto Correia Ponte (1921-2010)

 
O seu pai (meu Avô materno) Júlio Esteves Pinto Correia, nasceu em 1875 e faleceu em 1955. Ele veio da aldeia de Fratel, Castelo Branco, Beira-Baixa, Portugal, para África muito novo em 1907 para Boma, Matadi, e Leopoldville (hoje Kinshasa) no antigo Congo Belga (hoje República Democrática do Congo), onde se estabeleceu e fez fortuna no comércio de importação de produtos europeus e exportação de produtos coloniais, o que deve ter incluído o negócio da borracha no então Congo Belga. Ele foi um comerciante destacado na cidade de Leopoldville desse tempo, tendo tido uma sucursal comercial em Bruges, na Bélgica, e também sido presidente da antiga câmara de comércio de Leopoldville. 
 
Na década de 1920 ele viveu com a sua família em Lisboa onde comprou um prédio na Avenida Marquês de Tomar (paralela (ou perpendicular?) à Avenida da República). Mais tarde, em 1934, depois da grande crise económica mundial de 1929-33, ele perdeu tudo e deixou o Congo Belga e veio com os seus filhos que até lá viviam em Lisboa (o meu tio Júlio, a minha tia Mélita, e a minha mãe Helena) para o norte de Angola onde do nada estabeleceu a Roça Novo Fratel na área do Uando, perto da Serra do Cusso, a sul da Serra da Canda, na região da vila da Damba, com uma plantação de café de 1.004 hectares de área. 
 
Nesse tempo, o único meio de transporte era a tipóia (machila, cavalo de madeira, ou cavalo do Congo, como também era chamada), levada ao ombro de dois ou quatro homens, durando uma viagem à Damba, a vila mais próxima da fazenda, um pouco mais de dois dias.


O meu avô Júlio Esteves Pinto Correia (1870-1955)

Em 1934 o seu filho Júlio, que tinha então dezasseis anos, morreu súbitamente  na Roça Novo Fratel, devido a um ataque fulminante de biliosa (paludismo/malária que ceifou tantas vidas na Angola desse tempo), para o que não havia tratamento na altura. Devido aos seu isolamento e parcos recursos disponíveis, o meu avô viu-se obrigado a ter que arrancar e usar as portas da sua casa da fazenda para ele próprio fazer um caixão digno para enterrar o seu único filho. Anos mais tarde, o meu avô erigiu uma pequena ermida muito bonita em memória do seu filho Júlio, que estava sepultado na fazenda. Para nós todos, este era o lugar mais sagrado e todos os anos íamos à Roça Novo Fratel em romagem à campa do saudoso Tio Júlio para honrar a sua memória. 

A Roça Novo Fratel, cobrindo uma área de 1.004 hectares, era uma das mais antigas e maiores no concelho da Damba, pois foi fundada pelo meu avô em 1933. Ela estava situada perto das povoações do Sácamo e Chimacongo (perto do Lucunga), área da Lêmboa, a oeste da da Vila da Damba cerca de 60 kms, entre os rios Lueca e Lifunde, no sopé da Serra do Cusso, e a sul da Serra da Canda. Outras fazendas de café importantes na região era a Roça Maria Dora da família Sousa, a Fazenda Neves Ferreira, e a fazenda da Dona Estrela (peço perdão, mas já não me lembro do nome do marido).
 
A década de 1930 foi difícil para o meu Avô e para a sua família, pois demorou mais de quinze anos até que as cotações dos produtos coloniais subissem de novo, o que só aconteceu já depois do fim da Segunda Guerra Mundial. No decurso da sua longa vida em África, o meu avô perdeu várias vezes quase tudo o que tinha e teve de recomeçar a vida de novo devido às grandes quedas na cotação de produtos coloniais como a borracha e o café, precipitadas pelas graves crises económicas mundiais de 1918-22 e de 1929-33.
 
Não muito longe a norte da Roça Novo Fratel encontram-se as ruínas da antiga Missão do Cusso, estabelecida em 1649 pelos padres Capuchinhos italianos Bonaventura de Coneglia e Pietro de Vegas, por iniciativa da Propaganda Fide ordenada pelo Vaticano, e não pelo rei de Portugal, (através do processo do Padroado), que apenas funcionou poucos anos. 
 
De acordo com o arcebispo de Luanda Dom Manuel Nunes Gabriel, na sua importante obra "Angola - Cinco Séculos de Cristianismo", Literal Sociedade Editora, Queluz, 1979, as missões dos capuchinhos não eram de facto missões permanentes, mas sim hospícios espalhados pelo interior do antigo Reino do Congo à guarda dos chamados "escravos da igreja" que velavam pela sua manutenção, hospedagem e alimentação dos padres capuchinhos itenerantes nas suas viagens de evangelização. 

 
Dom Garcia II, Rei do Congo, recebe os primeiros padres Capuchinhos italianos, em 1645

 
Devemos lembrar aqui que tudo isto se passou pouco depois da restauração da independência de Portugal (1640), e que os primeiros padres capuchinhos italianos e espanhois vieram directamente de Espanha para o Congo sob a protecção do rei de Espanha e sem o conhecimento e autorização das autoridades portuguesas. Foram cinco os hospícios dos Capuchinhos no Congo, a saber: Sonho (no Pinda, sede do condado do Sonho (Soyo) onde os Capuchinhos desembarcaram em 1645; São Salvador, capital do reino do Congo (antiga e nova Mbanza Kongo), e sede da missão e da prefeitura apostólica do Congo; Ncusso, na área da Damba, perto da Roça Novo Fratel; Bamba Congo, no antigo ducado de Bamba, perto da actual vila do Bembe; e Bamba Lubota, a noroeste do Bembe, em direcção a à vila do Ambrizete (Nzeto).
 
A localização exacta da Missão do Cusso esteve encoberta pela bruma da história durante quase trezentos anos. É certo que haviam documentos históricos que provavam sua existência, mas ninguém sabia ao certo onde era localizada. Só nos fins da década de 1940, através de pesquisa aturada de tradição oral através da resposta à pergunta onde estiveram "os homens que não compravam, nem vendiam" (padres) é que a localização exacta da histórica missão do Cusso foi finalmente identificada.

A serra do Cusso (Ncusso) e a serra da Canda, um pouco mais a norte, antigamente ambos chamados em conjunto como os míticos Montes de Cristal, estabeleciam a linha divisória de águas dos rios que iam desaguar ao Oceano Atlântico (afluentes do Rio M'bridge), ou que se iam juntar a leste ao Rio Cuando, que por sua vez se ia juntar ao rio Zaire.
 
Em 1948, conforme disse o Padre Hilarino de Cassaco, na ocasião da fundação da Missão da Damba pela mesma congregação dos Padres Capuchinhos Italianos, isto é quase trezentos anos mais tarde, uma pedra das ruínas da famosa e histórica Missão do Cusso foi usada na cerimónia do lançamento da primeira pedra do edifício da nova Missão Católica da Damba, dedicada a São João de Brito. 

Nota - Os Padres Capuchinhos italianos chegaram a Angola em 1635 onde trabalharam durante dois séculos nas terras de Congo, Matamba e Angola até 1835, ano em que todas as ordens religiosas foram expulsas de Portugal e colónias. Eles voltaram em 1948 para operar a missão urbana de São Paulo dos Musseques em Luanda, e fundar as missões da Damba e de Camabatela, no então distrito do Uíge. 
 
 
Frontespício da 1ª edição da obra de Antonio Cavazzi, Bolonha, 1688

 
O padre capuchinho italiano João António Cavazzi de Montecuccollo escreveu a sua famosa obra "Istorica Descrizione de' tre' regni Congo, Matamba et Angola sitvati nell' Etiopia Inferiore Occidentala e delle Missioni Apostoloche efercitateui da Religiofi Capuccini", publicado em Bolonha, em 1688, baseado na sua experiência pessoal de treze anos vividos nas terras de Congo, Angola, e Matamba (1654-67). Ele foi o confessor real de Nzinga Mbandi (então Dona Ana de Sousa, nos seus últimos anos de vida), raínha da Matamba, e oficiou o seu funeral e Te Deum quando ela faleceu em 1663. Cavazzi permaneceu na Matamba até 1665, mudando-se depois para  Luanda, e finalmente regressando à Itália em 1667. Em 1673 ele voltou a Angola (Luanda) como prefeito da Missão dos Capuchinhos, onde viveu até 1677, findos os quais ele regressou doente a Génova, onde veio a morrer aos 56 anos, pouco tempo depois de lá chegar em 1678.


A chegada dos Padres Capuchinhos Italianos à Damba, em 1948, para fundarem a Missão de São João de Brito.

 
O meu avô teve seis filhas e um filho, de três esposas africanas diferentes nascidas no Congo Belga e em Angola, espaçadas mais ou menos vinte anos cada uma: as minhas tias Júlia e Aurora da primeira esposa, que não sei o nome (c. 1900 e 1910); o meu tio Júlio, minha tia Amélia, e minha mãe (Helena), da segunda esposa Ana Carneiro - c. 1915 e 1931; e as minhas tias Dulce (1945-2018) e Marina (1940-) ambas nascidas na Damba da sua  terceira esposa (c. 1940 e 1945), que também não sei o nome. Com a excepção da minha mãe e da minha Tia Mélita, todas as minhas tias estudaram em Portugal. 
 
 
Antigo posto militar em Maquela do Zombo, 1923, onde a minha Tia Júlia viveu durante muitos anos e vila onde nasci.
 
 
A minha tia Júlia, que era também minha madrinha de baptismo, casou e viveu muitos anos em Maquela do Zombo, onde enviuvou cedo e passou a viver em Lisboa. Ela dava lições de piano, pois ela tinha o curso do Conservatório de Música de Lisboa. A minha tia Júlia teve duas filhas: as minhas primas e a Jovita, que viveram sempre e casaram em Portugal. 
 
A minha tia Aurora casou com o meu tio Armando Rodrigues que era administrador do quadro de administração civil em Angola. Eles viveram em diversas povoações e vilas em Angola, entre as quais a vila de Quibaxe (nos Dembos) quando nós vivíamos na Damba. A minha tia Aurora teve cinco filhos: o Toneca, a Milú, a Manuela (assistente social), a Dina, e o Rui (todos viveram e casaram em Angola), e todos foram para Portugal em 1975.
 
A minha tia Mélita (Amélia) casou com o meu tio Agostinho Pires, que tinha uma casa comercial em Moerbeke, no distrito do Baixo Congo, no antigo Congo Belga, situada a pouco menos de  duas horas da fronteira do posto do Quipango no Congo Belga (logo a seguir ao posto alfandegário da Quimbata, em Angola). Eles deixaram o Congo Belga em 1959 e foram viver para Portugal. Eles tiveram um filho, o meu primo Hugo (Pinto Correia Pires), nascido em 1954, que depois de cursar gestão de empresas na Universidade Católica de Lisboa, veio a ser um gestor de destaque em Portugal (Nestlé, SIC, e Diário de Notícias). 
 
A minha tia Mélita faleceu em Lisboa em 1975. O meu tio Agostinho tinha uma filha de um relacionamento anterior, a nossa prima Luísa, que era casada com o Carlos (de Trás-os-Montes), e eles tinham cinco filhos da nossa idade (a Elsa, Hélia, e já não me lembro do nome dos outros), que vieram viver para Luanda uns anos depois da independência do Congo Belga, e foram mais tarde para Portugal, depois da independência de Angola.
 
A minha tia Dulce cursou línguas românicas e foi professora de liceu durante muitos anos em Torres Vedras, Portugal, e a minha tia Marina foi professora primária diplomada em Luanda, onde casou e morou até 1975. Ela casou com o meu primo António Coelho (1942-2012) com quem teve três filhos: a Cristina, nascida em Catete em 1966, o Marco, nascido em Luanda em 1968, (que é advogado em Lisboa), e o Sérgio, já nascido em Lisboa em 1974. As minhas tias Dulce e Marina frequentaram o colégio de São José de Cluny em Luanda, antes de prosseguirem os seus estudos em Portugal. 

Apesar de viverem numa remota fazenda longe de tudo e de todos, onde a escola mais próxima era em Maquela do Zombo a três dias de viagem de tipóia, e onde o único liceu era em Luanda, o meu Avô esmerou-se sempre para dar a melhor educação e instrução posssível às suas filhas Amélia (Mélita) e Helena. Assim ele mandou vir da Livraria Minerva em Luanda o "Curso Completo dos Liceus em Casa", e ele próprio na Roça Nova Fratel orientava zelozamente todos os dias o estudo das filhas, até elas concluirem os estudos equivalentes ao quinto ano do liceu. 
 
Ele tinha uma biblioteca pessoal extensa em casa na fazenda, e tinha muita inclinação para tudo quanto fosse tecnologia. Nesse tempo electrónica era limitada à rádio, e ele completou com êxito o curso por correspondência para a manutenção e reparação de rádios. Lamentavelmente, a sua valiosa biblioteca foi queimada quando a fazenda foi atacada pelos guerreiros da UPA em Maio ou Junho de 1961.
 
Com a subida dos preços do café e de outros produtos coloniais no mercado mundial depois do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-45), o meu avô beneficiou muito, pois a Roça Novo Fratel começou a gerar lucros muito mais elevados, o que lhe permitiu fundar outra fazenda de café (a Fazenda da Quimbumba), e construir um prédio de dois andares com oito apartamentos e seis lojas, no Bairro de São Paulo em Luanda, na esquina da Rua António Enes (actual Rua Ndunduma) com a travessa Almirante Azevedo Coutinho, que vinha do Bairro Miramar, conforme a figura abaixo:
 

O prédio que o meu avô Júlio Esteves Pinto Correia construiu na antiga Rua António Enes, em Luanda, em 1955, imediatamente à esquerda na fotografia. Bairro Miramar à esquerda e Bairro Operário à direita. Fotografia tirada em 1971.

O meu avô morreu em Luanda em 1955 e foi sepultado no Cemitério Novo (de Santa Ana) na antiga Estrada de Catete, em Luanda, depois de viver quase 60 anos em África (Congo Belga e Angola). Depois da morte do meu avô, o meu primo Toneca (filho da minha tia Aurora, ambos já falecidos) passou a gerir a Roça Novo Fratel até 1975.
 
A minha avó materna Ana Carneiro, que nunca conheci em pessoa pois faleceu antes de eu nascer, era de ascendência africana e era oriunda da região de Cabinda/Boma. Eu nunca conheci algum membro da sua família, mas sei através do meu irmão Rui que tínhamos alguns parentes afastados no distrito de Cabinda e na região de Boma / Banana (República Democrática do Congo) com quem ele conviveu durante a sua residência em Cabinda. 


A minha avó Ana Carneiro com os filhos Júlio (atrás)
Mélita (esquerda) e Helena (direita, minha mãe, com cara de aborrecida)
Fotografia tirada em Leopoldville em 1925.

O meu pai (José António da Ponte) nasceu na Vila de Vinhais em 1921, distrito de Bragança (Trás-os-Montes, Portugal) e emigrou para Angola em 1942 depois de terminar o Sétimo Ano no Liceu de Bragança. Os seus pais (meus avós) foram Domingos e Sara Rodrigues da Ponte, que viveram a sua vida em Vinhais. Os seus irmãos foram os meus tios  Mariazinha, António José, Domingos, Corina, e Odete.
 
O meu Pai emigrou para Angola em 1942, e começou logo a trabalhar como aspirante do Quadro Administrativo no antigo distrito do Congo (onde conheceu a minha mãe) e trabalhou anos mais tarde nos Serviços de Fazenda e Contabilidade em Vila Luso (Moxico/Luena). Em 1954 ele estabeleceu-se como comerciante e agricultor na vila da Damba com uma casa comercial e atelier de desenhador, topógrafo, escritório de demarcação de terrenos, procurador judicial, e agência de viagens, bem como uma pequena fazenda de produção de ginguba, laranjas, tangerinas, e maracujás na área do Rio Lueca a cerca de 50 km a oeste da Damba. 


O meu pai José António da Ponte (1921-1974)

 
A maioria da família do meu pai nasceu e viveu sempre em Portugal, no distrito de Bragança, Trás-os-Montes. Contudo, como ele, dois irmãos vieram para Angola: a minha tia Maria Emília (Mariazinha), que foi professora nas escolas de magistério primário de Sá da Bandeira (Lubango) e de Silva Porto (Kuito), e o meu tio Antonio José (Toninho) que foi oficial da marinha de guerra portuguesa. 
 
A minha Tia Mariazinha teve quatro filhas (Lena (recentemente falecida), Micéu, Loca, e Chimy) e viveu em Sá da Bandeira durante uns anos, antes de voltar a casar e mudar para Silva Porto. O meu tio Toninho casou em 1966 com a minha tia Margarida (falecida há uns anos), de uma conhecida família de Luanda, de quem tiveram um filho (o Tomé), que é dentista em Espinho, perto da cidade do Porto. O meu tio Toninho esteve destacado em Angola durante quatro anos servindo como comandante de um destacamento de fuzileiros navais em Sazaire (Sonho) e Nóqui,  e nas chanas do Leste (nas Terras do Fim-do-Mundo do Moxico e Cuando-Cubango). Já em Portugal, ele foi durante alguns anos capitão do Porto de Leixões. Todos os outros meus tios e tias tiraram cursos superiores em Portugal.
 
Tendo lidado de perto com o problema de demarcação de terras no Congo português, o meu pai aprendeu de perto e cedo o conflito de terras entre as comunidades africanas (kandas) e os colonos europeus para a demarcação de terras para o estabelecimento de novas plantações de café para agricultores europeus. O seu papel era na maioria das vezes o de tentar reconciliar interesses radicalmente opostos e lutar por interesses não protegidos das comunidades africanas. 
 
 
Assim se tratavam às reclamações ao processo de
demarcação de terras em Angola, 1951
 
A Kanda era a uma linhagem (um clã) do povo Bakongo, a quem pertenciam todos os indivíduos (vivos e mortos) que se consideravam descendentes de um antepassado comum (uma mulher no sistema matrilinear bakongo ou homem num sistema patrilinear noutras culturas). Cada kanda tinha designação e tradições próprias. O chefe de cada clã era designado por Mbuta Kanda. Por norma, a Kanda mais antiga era social e politicamente a mais preponderante.
 
Para o povo Bakongo, a terra era propriedade comum da Kanda (terra clânica), era sagrada e de pertença dos antepassados da família. A terra, que incluia os recursos naturais (animais, florestas, savana, minerais, e os rios), em si não podia ser alienada de qualquer forma, pois era propriedade comum da kanda. De acordo com a tradição, a terra podia ser cultivada individualmente, e o produto do cultivo (trabalho agrícola) era propriedade individual, contudo, o usufruto de produtos naturais da terra (que se obtiam por actividades colectoras), como a caça, a pesca, as florestas, e a riqueza mineral da terra eram de propriedade comunal. Por norma, o homem desbastava o terreno para a  exploração agrícola, e a mulher, semeava, tendia, e colhia o produto da terra.
 
 
Na família tradicional Bakongo, a mulher era quem trabalhava a terra, além de apanhar a lenha, cuidar da casa e dos filhos, preparar alimentos, e ir ao mercado comprar ou vender.


É de notar que no sistema poligâmico Bakongo, em que o marido tem várias mulheres, cada esposa do lar poligínico normalmente cultiva uma lavra que é desbastada e preparada pelo marido mas cultivada e cuidada pela mulher. A colheita revertia apenas uma parte para o marido e o resto para a mulher e seus filhos. A sociedade tradicional Bakongo era matrilinear, pelo que era o tio materno (irmão da mãe) mais velho quem tinha maior ascendência e poder na família extensa.
 
Depois dos ataques da UPA (União dos Povos de Angola) às povoações e fazendas nos antigos distritos de Uíge e Zaire em Março de 1961, o meu pai deixou tudo o que tinha na Damba e passou a exercer a profissão de topógrafo mas baseado em Luanda, onde passámos a residir permanentemente. Como topógrafo, ele  especializou-se em trabalhos de fotogrametria (interpretação de fotografia aérea para uso em topografia), topografia de estradas, e topografia urbana, trabalhando para a firma Artop (na antiga Rua Guilherme Capelo) e para a Junta Autónoma das Estradas de Angola (JAEA, na antiga Rua Serpa Pinto), perto da Farmácia Africana. 
 
Enquanto vivemos em Luanda, o meu pai passava períodos extensos ausente de casa e da família trabalhando no mato, e durante estes períodos a minha mãe teve que assumir em casa o duplo papel de mãe e pai ao mesmo tempo para todos nós. Ele fez trabalhos de topografia em Bom Jesus (Icolo e Bengo), Cambambe, no leste de Angola (Lunda - Saurimo e Dala), no Moxico (Munhango, saliente do Cazombo, Luimbala, e Lungué-Bungo), e na Huíla, na Jamba, e no projecto gigantesco que foi a construção da estrada na encosta da Serra da Leba, levada a efeito pela JAEA sob a liderança do Engenheiro João Campino.
 
 
As curvas e contra-curvas da estrada sobre a encosta da Serra da Leba, Huíla, ligando a base e o topo do terreno numa diferença em altitude de cerca de 2.000 metros. Um projecto emblemático da antiga Junta Autónoma das Estradas de Angola (JAEA), onde o meu pai trabalhou como topógrafo. O projecto da Serra da Leba demorou quatro anos a realizar.

Lembro-me que uma vez ele perdeu um jeep Unimog ao fazer a travessia do Rio Zambeze por uma jangada no Saliente do Cazombo (no Moxico). O jeep ficou completamente submerso no rio por um dia inteiro, e no dia seguinte quando removeram o jeep do rio, o meu pai esperou um dia para o carro secar, e passando esse período ele só ligou a chave de ignição e o jeep Unimog pegou imediatamente sem qualquer problema, como se nada tivesse acontecido.
 
O meu Pai foi sempre foi um pouco reservado, mas muito independente e até um tanto oposto  à política colonial oficial. O seu círculo de amigos foi sempre composto por angolanos com raízes nacionalistas. Ele em Luanda e em Cabinda tinha a sua tertúlia de amigos que em oposição ao clube elitista do Clube dos Rotários (Rotary Club), eles próprios se entitulavam como a "Clube dos Arrotados". Ele foi amigo chegado dos membros do conjunto Ngola Ritmos, incluindo Liceu Vieira Dias, do pintor Mário Araújo, de Mário António, de Alfredo Margarido, de outros nacionalistas angolanos notáveis como Adolfo Maria, e de familias luandenses antigas. 
 
Já como topógrafo, durante as suas viagens ao Saliente do Cazombo e à Lunda, ele tornou-se amigo do etnógrafo João Vicente Martins, que muito estimava. João Vicente Martins substituiu José Redinha na direcção do Museu da Lunda. 
 
Não sei ainda porquê, mas com a excepção de Mário Araújo, que era um amigo de casa muito chegado, ele falava muito pouco connosco acerca das suas amizades nacionalistas, mencionando só de quando em vez o importante trabalho a que eles se dedicavam.

O meu pai gostava muito de ler e tinha uma biblioteca pessoal apreciável. Lembro-me que ele gostava muito de livros de ficção policial, e que ele tinha a colecção completa da colecção  Vampiro (da Editora Livros do Brasil). Todos os anos ele comprava sempre a edição anual do Almanaque Bertrand, uma publicação muito cheia de informaçõese com muitos puzzles, enigmas, charadas, e quebra-cabeças que ele adorava resolver, e subscrevia a versão portuguesa das "Selecções do Reader's Digest" publicada no Brasil. Ele tinha quase todos os livros de John Steinbeck traduzidos em português, bem como os três volumes de "Guerra e Paz", de Leon Tolstoi.
 
 
O Almanaque Bertrand, edição de 1959, que o meu Pai religiosamente comprava todos os anos e que adorava resolver puzzles, enigmas, charadas, e quebra-cabeças.

 
Em 1968 ele assentou finalmente em Cabinda como topógrafo principal da Câmara Municipal de Cabinda, onde trabalhou durante oito anos e veio a falecer precocemente em Maio de 1974 aos cinquenta e três anos de idade. 


Edifício da Câmara Municipal de Cabinda em 1970, onde o meu Pai e o meu irmão Rui trabalharam.


A nossa família viveu em Vila Luso (hoje Luena), distrito do Moxico, entre 1944 e 1950, em Luanda entre 1950 e 1953, na Vila da Damba (distrito do Uíge) entre 1954 e 1961, em Luanda entre 1961 e 1968, e em Cabinda entre 1968 e 1975. 
 
 
Antiga Vila Luso, Moxico, 1950s, onde na década anterior nasceram os meus irmãos Luis Filipe, Rui Manuel, e Maria Ema. Vila Luso tinha a melhor planificação urbanística de Angola, lembrando o seu traçado perpendicular uma pequena cidade americana.

 
Os meus pais tiveram seis filhos: Luis Filipe (Luisinho), nascido em Vila Luso em 1946. Ele morreu tragicamente nos braços de minha mãe em Vila Luso em 1949 depois de se engasgar com a boca cheia de areia quando estava a brincar no quintal. Eu não cheguei a conhecer o meu irmão Luisinho pois ele morreu com três anos de idade, antes de eu nascer; Rui Manuel (Quinhas) nascido em Vila Luso em Outubro de 1947 e falecido precocemente em Cabinda em 1990; Maria Ema (Émita), nascida em Vila Luso em Agosto de 1948 e falecida em Lisboa em Janeiro de 2010; eu, Helder Fernando (Dézito para todos e Saranico para o meu pai) nascido na vila de Maquela do Zombo, distrito do Uíge, em Junho de 1950; Maria Dilar (Funhica para o meu pai) nascida em Luanda em Maio de 1952; e Ana Paula (Paulinha), nascida em Luanda em Janeiro de 1961, de onde ambas emigraram para o Brasil em 1975 e 1976.
 
 
O meu irmão Rui Manuel de Pinto Correia Ponte (1947-1990)
 
 O meu irmão Rui foi educado em internatos em Luanda (Colégio Brotero, no Bairro do Cruzeiro), no colégio dos Irmãos Maristas em Luanda (situado ao fundo da antiga Avenida dos Combatentes), e no Liceu Salvador Correia. 
 
Quando tinha três anos, o meu irmão Rui foi vítima de um surto de parilisia infantil (poliomelite) que grassou toda a região ao longo da linha do Caminho de Ferro de Benguela (do Lobito a Teixeira de Sousa (Dilolo) - Luau) que lhe afectou a perna direita e o deixou a ter de coxear para o resto da vida. Esses surtos de pólio (a que também chamávamos paralisia infantil ou poliomielite) eram relativamente comuns na Angola desse tempo, pois não havia ainda uma vacina eficaz. 
 
O meu irmão foi funcionário no Instituto dos Cereais de Angola em Luanda e desenhador na Câmara Municipal de Cabinda. O Rui foi o único membro da nossa família que ficou em Angola depois da Independência. Depois de 15 anos de sacrifícios, desafios, e injustiças, ele morreu precocemente em Cabinda em Setembro de 1990. 
 
 
A minha irmã Maria Ema Pinto Correia Ponte (1948-2010)


A minha irmã Ema foi educada no ensino primário no Colégio das Irmãs de São José de Cluny em Luanda, e mais tarde em internatos de madres em Torres Novas, em Portugal, através da ajuda dos meus tios Agostinho e Mélita, onde ela completou o terceiro ciclo (antigo sétimo ano) em línguas românicas. Quando regressou a Angola, ela casou e foi viver para Silva Porto (Kuito), e mais tarde na Vila Nova, onde foi professora. Ela regressou a Lisboa em 1975, onde trabalhou no Instituto Ricardo Jorge até à sua morte em 2010.
 
A minha irmã Dilar fez o ensino primário em Luanda, frequentou o Colégio das Irmãs de São José de Cluny, e a Escola Preparatória Emídio Navarro, junto ao Liceu Salvador Correia. Em 1968 ela acompanhou os meus pais  quando eles mudaram para Cabinda, onde ela trabalhou para a delegação dos Serviços de Agricultura e Florestas. Ela casou em 1972 com o meu ex-cunhado Júlio Andrade da Silva, de quem se separou em 1984. Em 1975, eles foram para Vitória do Espirito Santo e na vila de São Mateus, ambos no estado de Espírito Santo, Brasil. Mais tarde, ela mudou-se para Macaé, Rio de Janeiro, onde ela sozinha e com muitas dificuldades criou os seus quatro filhos.
 
A minha irmã Paula, a mais nova de todos nós (a caçula), naseu mais tarde já em 1961 na antiga Maternidade Maria do Carmo Vieira Machado em Luanda (actual Maternidade Lucrécia Paim). A minha irmã Paula frequentou o Colégio Moderno (então na esquina das ruas Guilherme Capelo e Alexandre Peres, em frente à Cervejaria Bracarense, e à entrada do Bairro da Maianga), e o Colégio das Irmãs de São José de Cluny em Luanda durante o ciclo preparatório, antes de sair para Ilha das Flores, nos Açores, para onde foi viver com os meus tios Toninho e Margarida por alguns meses em 1974 depeois de a situação se deteriorar em Luanda. A Paula foi com a minha Mãe para o Brasil em 1976, onde conheceu e veio a casar com o meu cunhado Mike Martung, falecido recentemente. Eles viveram na cidade de Vitória do Espírito Santo (ES) e mais trade em Macaé (RJ), Brasil.

 
O antigo Colégio/Internato de São José de Cluny, em Luanda, que as minhas irmãs, tias, e primas frequentaram.Um dos edifícios mais icónicos de Luanda. Fotografia tirada em 1959.
 
Todas as minhas irmãs foram educadas no Colégio das Irmãs de São José de Cluny, na rua Nossa Senhora da Muxima (antiga rua das Quipacas) em Luanda. Como disse acima, o meu irmão Rui frequentou o internato do Colégio Brotero e o Colégio dos Irmãos Maristas, ambos em Luanda. De todos os meus irmãos, eu fui o único que sempre frequentou escolas e liceus públicos.
 
O meu irmão Rui teve uma filha de nome Fernanda Helena que vive em Cabinda, nascida em 1978, mas que eu nunca tive a oportunidade de conhecer em pessoa e com quem nunca conseguimos ter contacto. A minha irmã Ema e o meu ex-cunhado Nochinhas Llorente (já falecido) tiveram um filho - o Pedro Romero, nascido em Silva Porto (Cuíto) em 1970. Já em Lisboa a minha irmã Ema e o meu ex-cunhado António Caldeira (da Vila Nova, Huambo, também já falecido) tiveram um filho, o Gonçalo nascido em Lisboa em 1977, que casou com uma moça polaca, a Mónica, e de quem tem um filho, o Leonardo. Eles vivem hoje em Varsóvia, na Polónia. A minha irmã Dilar e o me ex-cunhado Júlio Silva tiveram quatro filhos: a Isabel, nascida em Cabinda em 1973, o Miguel, nascido em Luanda em 1974, o Bruno, já nascido em São Mateus, estado do Espirito Santo, Brasil, em 1977, e a Vivian, também nascida em São Mateus em 1979. A minha irmã Paula e o seu marido Mike Martung (falecido há poucos anos) tiveram cinco filhos: a Melanie, a Melissa, o James, a Sandy, e a Ashley, nascidos em Vitória do Espírito Santo, ou na cidade de Macaé, no estado do Rio de Janeiro, no Brasil.
 

Alegoria aos Povos de Angola, pintura de Neves e Sousa

Em termos de irmãos e irmãs, a minha irmã Maria Dilar (Funhica para nós), dois anos mais nova do que eu, foi desde sempre a minha companheira de brincadeiras e diabruras. A minha irmã Maria Ema (dois anos mais velha que eu) estudou em colégios de madres em Portugal a cargo dos meus tios Agostinho e Mélita e primo Hugo, que tinham deixado o Congo em 1960, e o meu irmão Rui Manuel (que era três anos mais velho do que eu, esteve internado no Colégio Brotero no Bairro do Cruzeiro em Luanda. Mais tarde ele frequentou o Colégio dos Maristas (ainda ao cimo da antiga Avenida dos Combatentes, e o Liceu Nacional Salvador Correia
 
A nossa família não era de qualquer forma rica, pois até éramos uma família remediada, em que o meu pai e a minha mãe tinham ambos que trabalhar para sustentar a numerosa familia. De uma forma geral, a economia da região da Damba começou a deteriorar em 1955, atingindo o nível mais baixo em 1960. Em Luanda, conforme viremos mais tarde nesta crónica, continuámos a viver sempre dentro de um orçamento familiar apertado.

Infelizmente, eu não tenho qualquer informação sobre os meus bisavós ou antepassados mais antigos quer do lado materno quer do paterno, mas espero um dia poder encontrar mais elementos sobre a árvore genealógica da minha família. Contudo, eu sei que nós temos uma ascendência mista europeia e africana (portuguesa e angolana), e com efeito pergunto a mim próprio com frequência quem foram os meus antepassados angolanos (bem como os portugueses) o que me traz à mente a questão inevitável de que em três ou quatro geraçãoes atrás nós havemos de ter antepassados na nossa árvore genealógica que sofreram os horrores da escravatura no Congo ou em Angola.
 
 
3. Vila da Damba
 
A vila da Damba nos finais dos anos cinquenta do século XX era uma vila pacata, quase esquecida no interior do norte de Angola. Situada num pequeno plateau com altitude aproximada de 1.100 metros, era sede de concelho e dois postos administrativos (31 de Janeiro e Mucaba) no antigo distrito do Uíge. 

A população nativa do antigo concelho da Damba era constituída por comunidades Sosso (a maioritária, ao centro), Mazombo a norte, Zadis a noroeste, Cussos a oeste, Pombos e Maiaca a leste, Mambatas a noroeste, e Bungos e Hungos a sul.

Depois da cidade de Carmona (Uíge, capital do distrito) a sul, e de Maquela do Zombo (antiga capital de distrito e mercado regional muito importante), a norte, a vila da Damba era o principal centro regional comercial e administrativo no canto nordeste de Angola, sendo em termos económicos mais relevante do que a vila de São Salvador, antiga Mbanza Kongo, capital do antigo reino do Congo. 
 
À Damba acorriam muitas pessoas para comprar e vender mercadorias, prestar ou receber serviços, entre os quais residentes, visitantes, comerciantes, agricultores, funcionários, e outros de uma região mais larga que incluia as povoações de Béu, Cuilo Futa, Cuílo Pombo, Camatambo, 31 de Janeiro, Pete, Cusso, Lucunga, Madimba, Cuimba, Quibocolo, e as vilas do Bungo e de Quimbele. 

Em termos de população indígena em 1959, a Damba era o concelho mais densamente povoado do distrito do Uíge com uma densidade populacional de 9,05 pessoas por quilómetro quadrado, derivado de uma população indígena de 71.571 pessoas a viver num território de cerca de 8.330 quilómetros quadrados (pouco menos do que um décimo da superfície total de Portugal continental). Em termos de população não indígena, estima-se que viviam no concelho da Damba em 1970 cerca de 210 europeus e 93 mestiços, não contando soldados portugueses destacados na região em comissão de serviço.
 
 
História
 
Apesar de um contacto muito esporádico com os portugueses (mercadores de escravos, padres, militares, e comerciantes aviados ) ao longo de mais de trezentos anos, a região da Damba, situada na fronteira das antigas províncias de Mbata e Mpemba do Antigo Reino do Congo, nunca foi conquistada ou ocupada pelos portugueses e viveu sempre sob a suserania do Reino do Congo e dos chefes regionais até à segunda década do século XX. 
 
Depois do desastre da batalha de Ambuíla ocorrido a 29 de Outubro de 1665, em que as forças do Rei do Congo, Dom António I Maninulaza, foram derrotadas pelos portugueses comandados por Luis Lopes de Sequeira, em que o próprio rei foi decapitado (de facto a sua cabeça foi trazida numa bandeja de Ambuíla para Luanda, onde foi exposta durante alguns dias e depois sepultada solenemente na Ermida da Nazaré) por ordem do governador brasileiro André Vidal de Negreiros, o Reino do Congo entrou em decadência e os seus reis perderam grande parte do seu poder, autoridade, e prestígio por um período que havia de exceder cerca de duzentos anos, até meados do século XIX. Durante todo este período, o contacto com os Portugueses foi limitado e esporádico ao longo da costa e quase inexistente no interior.
 
Com a crescente importância para as potências coloniais europeias nos meados do século XIX, da região da àfrica Central em geral, e da foz do Congo em particualr, desde Cabinda até ao Ambriz, todas elas (incluindo Portugal) querendo formalizar tratados com chefes locais, o Rei do Congo tornou a ganhar uma certa relevância política. 
 
Segundo Lopes de Lima (no seu Ensaio Sobre a Estatística de Angola e Benguella e suas Dependências na Costa Ocidental d´África a Sul do Equador, Livro III, 1846), o Reino de Angola abrangia nesse tempo os presídios de Muxima; Massangano; Cambambe, Pedras de Pungo Andombe ou Pedras Negras; Ambaca; e São José do Encoje. E era dividido nos distritos de Icolo-e-Bengo e Barra do Bengo; Dande e Barra do Dande; Golungo, compreendendo Zenza, Quilengues, Dembos; e Barra do Calumbo.
 
O Reino de Benguela abrangia os presídios de Novo Redondo, Caconda, e Moçâmedes. E ainda os distritos de Dombe Grande da Quizamba, Bailundo, Huambo, Galangue e Sambos; Quilengues e Huíla. 
 
 
Uma imagem de uma sessão de trabalho da Conferência de Berlim, 1885
 
 
O resultado principal da Conferência de Berlim em 1885 foi a partilha da África pelas principais potências coloniais europeias (Inglaterra, França, Alemanha, e Portugal). A Bacia Convencional do Zaire foi a razão principal desta conferência, pois era a região mais disputada em África, com o território tradicional da nação Bakongo vir a ser partilhado pelo Estado Livre do Congo (inicialmente Associação Internacional do Congo e mais tarde Congo Belga), pela França (Congo Brazzaville), e por Portugal (Cabinda e Congo Português).
 
 
A Bacia Convencional do Zaire, principal pomo de discórdia na Conferência de Berlim, 1885

 
É de notar que o Rei do Congo Dom Pedro V Água-Rosada e seus dois filhos estiveram presentes na Conferência de Berlim como observadores, sem direito a intervir nas discussões ou a votar nas resoluções. Contudo, ele interviu nos trabalhos da conferência em confirmar os tratados que vários chefes locais tinham assinado com os portugueses, o que resultou nos territórios de Cabinda e do Congo Português ficarem sob a soberania portuguesa.
 
Como conseqência imediata da Conferência de Berlim, que se reuniu entre Novembro de 1884 a Fevereiro de 1885, o território tradicional da nação Bakongo foi dividido entre três potências coloniais: França, a norte do Zaire, Associação Internacional do Congo, a sul do Rio Zaire, e Portugal (território de Cabinda e Congo Português em Angola), e mais tarde entre quatro estados africanos independentes: Gabão, República do Congo (Brazzaville), República Democrática do Congo (Kinshasa), e Angola). 
 
Não foi só a nação Bakongo que viu o seu território ancestral dilacerado pelas potências europeias. O mesmo aconteceu ao povo Iaka que viu o seu território tradicional ao longo do rio Cuango ser repartido entre Portugal e a Associação Internacional do Congo. De igual modo, o Império Lunda, que entretanto estava a ser invadido pelo povo Tchokwe, viu também as suas terras ancestrais serem repartidas entre as mesmas duas potências coloniais e a Inglaterra 
 
Em Junho de 1877, os portugueses estabeleceram o distrito do Congo com capital em Cabinda e uma residência em São Salvador. O antigo distrito do Congo abrangia as terras a norte (Cabinda) e a sul (Congo) da foz do rio Zaire, com a excepção do corredor da foz do Zaire propriamente dito (Boma, Banana, e Matadi) que passaram a pertencer ao então estabelecido Estado Livre do Congo (Congo Bela a partir de 1908). 
 
O Estado Livre do Congo (anteriormente designado como Associação Internacional do Congo) era uma possessão pessoal do Rei Leopoldo II da Bélgica, e este precisava de uma saída directa para o Atlântico. Assim, apesar dos direitos históricos que Portugal invocou na Conferência de Berlim sobre os territórios a norte e a sul da foz do rio Zaire, o território de Cabinda acabou por ser um exclave desligado do resto do território de Angola.
 
Logo a seguir, e com o intuito de ocupar o território tradicional dos bakongo em Angola, os portugueses avançaram com a ocupação do território interior até ao rio Cuango, ao longo da linha de fronteira em direcção à Lunda. A expansão portuguesa para além da Lunda (a leste em direcção à Rodésia do Norte/Zâmbia), o chamado sonho do Mapa-Côr-de-Rosa, que ligaria Angola a Moçambique, foi bruscamente interrompido pelo Ultimato Inglês de 1891, sob influência do conhecido imperialista inglês Cecil Rhodes, que advogava um império inglês que ia da Cidade do Cabo na ponta sul da África, até ao Cairo, no Egipto.
 
 
Regiões da África Central em que a influência portuguesa era predominante. Note-se que a influência portuguesa ia até ao Lago de Malebo (onde se viriam a fundar as cidades de Brazzaville e Leopoldville/Kinshasa. Este mapa foi publicado em 1881, portanto antes do Mapa-Côr-de-Rosa, da Conferência de Berlim (1884-5). Foi a disputa por esta área interior do continente africano (mais tarde as colónias inglesas das Rodésias (Zâmbia e Zimbabwe como estados independentes) e da Niassalândia (Malawi)) que deu origem ao Ultimato Inglês em 1891.

 
Breve História do antigo Distrito do Congo Português
 
Acredita-se que os habitantes mais antigos do território do antigo distrito do Congo Português tenham sido os "mbakas ("mbuti", ou "pigmeus") que foram desalojados ou conquistados e absorvidos ao longo de séculos pelos povos Banto quando chegaram e ocuparam o território no século VI. Desde os tempos das grandes migrações Banto, o território foi ocupado pelo povo Bakongo, sendo o litoral a terra da tribo Muxicongo, o planalto central ocupado pelas tribos Baxicongo, Sosso, e Bazombo, e a bacia do Cuango ocupada pela tribo Maiaca a norte e Bassuco a sul. 
 
Em termos de densidade populacional, a região centro ocupada pelas tribos Muxicongo, Sosso, e Mazombo, era a região mais povoada, seguida pela região ribeirinha do Cuango, sendo a região litoral esparsamente povoada. Este padrão de povoamento foi talvez resultado em parte do sistema de captação de escravos que assolou mais as regiões costeiras do que o interior durante os últimos quatro séculos até aos finais do século XIX.
 
É de notar que o território tradicional do Antigo Reino do Congo propriamente dito abrangia somente as terras a oeste do Rio Nkisi (até leste da Damba), e não as margens do rio Cuango, pois as terras a leste do Rio Nkisi faziam parte das antigas hordas jagas dos Baiaca (ou Maiaca, ou Iaka) que era um potentado distinto e independente da tribo Baiaca. As terras a sul do antigo distrito do Congo eram ocupadas por tribos e potentados do povo Ambundo (Mahungo, Dembos, Ginga, e Ngola).
 
Quando os portuguese chegaram ao Congo em 1483, eles encontraram um estado organizado em potentados locais unidos sob a autoridade de um chefe supremo nacional (o Ntotila, ou Mani Congo) eleito pelos chefes das kandas regionais mais importantes, com uma economia de subsistência baseada no trabalho agrícola doméstico e algum comércio de longa distância. Esse estado, o Antigo Reino do Congo, tinha sido consolidado por Nimi-a-Lukeni, o primeiro rei do Congo, cerca de cento e cinquenta anos antes.
 
Com a chegada dos portugueses, vieram os padres católicos que acabaram por converter (até certo grau) as classes dominantes conguesas ao cristianismo, e começou o tráfico de escravos do Congo para alimentar a indústria nascente do acúcar nas Ilhas de São Tomé e Príncipe. 
 
Estes dois factores externos tiveram uma influência extraordinária na vida política e económica do Congo, pois desde cedo levaram a um clima de instabilidade e lutas dinásticas quase permanentes que enfraqueceram sobremaneira a autoridade tradicional dos reis do Congo.
 
Desde cedo a Igreja Católica se esforçou por influenciar a sucessão dos reis do Congo, pois por tradição a monarquia conguesa não era hereditária, como medida de influência e controle na vida política do reino. Contudo, e apesar de algum sucesso inicial, este conflito fundamental entre os desejos da a prática católica europeia (e mais tarde no século XX as igrejas protestantes) e as tradições do povo Bakongo só cresceu e se complicou à medida que a interacção entre as duas culturas se aprofundava. 
 
Com efeito, de acordo com a tradição, a sucessão dos reis do antigo reino do Congo (o Ntotila) era baseado num sistema de eleitores representantes das linhagens mais destacadas (kandas) em que um sobrinho materno, não necessariamente um filho primogénito (varão) ou filha podia ser candidato ou candidata a suceder ao rei. 
 
Por outro lado, os padres católicos estacionados junto da corte do rei do Congo (os Jesuítas desde os meados do século XVI e os Capuchinhos desde os meados do século XVII) tentaram impor desde o início do contacto um sistema de sucessão dinástica baseado no modelo cristão europeu em que o filho (ou filha) primogénito era o herdeiro do trono, condição fundamental para o estabelecimento e continuação de uma dinastia ao longo de várias gerações.

De igual modo, o conflito entre a doutrina e a acção da igreja católica e as tradições do povo Bakongo estendia-se também ao facto que o rei e os homens das classes dominantes podiam ter muitas mulheres (esposas), o que de facto era a prática social de acordo com as tradições poligâmicas ancestrais do Congo. Em vão a igreja lutou contra este costume, pois ele era uma das bases fundamentais da economia tradicional Bakongo, e por tradição e norma não era anormal para um rei ter mais de cem mulheres e dezenas ou mesmo mais do que uma centena de filhos. De facto, quanto mais filhos um homem tivesse, mais rico e influente ele era na sociedade tradicional. Desses muitos filhos, alguns (não somente o varão) candidatavam-se a suceder ao pai, o que complicava sobremaneira a questão da sucessão real. 

Este conflito político permanente entre as instituições tradicionais do povo Bakongo e as práticas católicas era mais notório na luta aberta entre o Mani Kabunga (adivinho/feiticeiro/justiceiro mor do rei, como por exemplo o Nasaku ne Vunda do tempo de Nvemba a Zinga, Dom Afonso I) e os padres católicos. O Mani Kabunga foi perdendo a sua influência no xadrês político conguês ao longo das primeiras décadas de contacto. Contudo, para a confirmação do poder real do candidato escolhido, o reconhecimento e confirmação do papel do político do Mani Kabunga foi sempre imprescindível, sem a qual não podia nunca ser coroado rei. 
 
Em 1568 as hordas dos jagas Imbangala (Yaka), vindas do leste, invadiram as capitais regionais e arrazaram a capital nacional de Mbanza Kongo, matando o Rei Dom Bernardo I, e o próximo rei Dom Álvaro I só se salvou da derrota iminenteperante os Jagas através da intervenção militar dos portugueses, o que aprofundou ainda mais  dependência da classe política Congo perante os interesses esclavagistas portugueses. Mbanza Kongo só foi reconquistada seis anos mais tarde em 1574, com a ajuda militar dos portugueses.
 
É de notar aqui que a história dos Jagas e sua acção no reino do Congo ainda não está completamente esclarecida. Alguns historiadores oferecem a opinião de que as invasões jagas não foram de facto uma invasão dos potentados do leste, mas sim uma revolta popular interna contra o caos causado pela escravização do número crescente de residentes do Congo. 
 
Contudo, uma conclusão é aceite por todos os estudiosos - com a derrota dos Jagas pelo contingente português de 600 homens sob o comando de Francisco de Gouveia, governador de São Tomé, que resultou na reocupação de São Salvador em 1574, o peso da influência portuguesa nos destinos do reino do Congo aumentou muito, à custa da independência das classes dominantes conguesas.
 
 
A Queda das Monaquias Negras
 
Em 1641o rei do Congo Dom Garcia II estabelece relações com os holandeses que entretanto tinham conquistado e expulsado os portugueses dos portos principais da costa de Angola - Luanda, Pinda, Cabinda e Molembo, São Tomé e Benguela.
 
Os padres Capuchinhos espanhois e italianos, enviados para o reino do Congo pelo Vaticano através da Propaganda Fide eram vistos pelos portugueses (sob influência dos Jesuítas) como pouco leais ao rei português D. João IV, que assumiu o poder em Portugal depois da restauração da independência do jugo espanhol em 1640. Os padres mestiços, da terra, eram desde há muito claramente anti-portugueses.
 
Após a reconquista de Luanda em 1648, o governador Salvador Correia de Sá castigou severamente os potentados congueses que não tinham sido fiéis aos portugueses durante a ocupação holandesa, entre eles Dom Garcia II, que foi obrigado a assinar um tratado de paz em 1949 pela qual perdia os territórios a sul do Rio Dange, incluindo a Ilha de Luanda, fonte da moeda zimbo, proibia a permanência de espanhóis e holandeses no Congo, e os padres Capuchinhos era obrigados a comunicar com o Vaticano somente através de Luanda, de acordo com as regras do Padroado Português
 
Este tratado de paz imposto por Salvador Correia obrigava ainda o Rei do Congo a ter que pagar uma pesada multa em panos, e um tributo anual avultado em panos ou escravos, e a dar à corôa portuguesa todas as minas de cobre (do Bembe), prata e ouro no seu território.
 
Com relutância, o rei conguês Dom Garcia II aceitou as condições duras do tratado de paz imposto por Salvador Correia em 1649, mas resistiu e fez tudo para não as executar, o que veio a acentuar o conflito, levando os portugueses cerca de quinze anos mais tarde a mandar uma expedição militar à região do Ambuíla (na área actual dos Dembos, Ducado do Uando, ao longo do curso do Rio Ulanga, na Serra do Pingano, Nova Caipemba, província do Uíge), comandada pelo capitão Luís Lopes de Sequeira).
 
O capitão e Sargento-Mor Luis Lopes de Sequeira foi um dos militares portugueses de maior renome na história de Angola. Ele nasceu em Luanda em 1634 e era filho do capitão português Domingos Lopes de Sequeira e de mãe negra angolana. O seu pai, Domingos Lopes de Sequeira, também foi um militar de destaque em Angola, que acabou por ser massacrado pelas forças do Soba Ngunza-a-Quissama a oeste do Seles, na sua tentativa de reforçar com um contingente militar de forças vindas do Brasil, as forças portuguesas no reduto de Massangano que se encontravam numa situação crítica, contra o cerco das tropas holandesas em Junho de 1645.
 
Além de comandar as forças portuguesas em Ambuíla (29 de Outubro de 1665) que derrotaram o rei do Congo Dom António I Manimulaza, no tempo do governador André Vidal de Negreiros e dois anos depois da morte da raínha Nzinga Mbande, Luis Lopes de Sequeira comandou também as forças portuguesas que derrotaram o rei do Ndongo, Dom João Hari Ngola Hari e o seu general Dom Diogo Cabanga na Batalha das Pedras de Npungo-Andongo a 29 de Novembro de 1671, no tempo do jovem governador Francisco Távora, e as forças do rei da Matamba Dom Francisco Gueterres Ngola Kanini, na Campanha do Libolo (1679-81), no tempo do governador João Silva e Sousa. Luis Lopes de Sequeira morreu em Ambaca de ferimentos recebidos (uma flecha nas costas de mão não inimiga) na Batalha de Katole, a 4 de Setembro de 1681.
 
Devido aos seus magníficos feitos militares de derrotar definitivamente os três reis do Congo, Ndongo, e Matamba, e de conquistar os seus territórios tradicionais, Luis Lopes de Sequeira passou a ser conhecido na história de Angola como "Terror dos Sertões" pelos potentados africanos locais, e como "Mulato do Prodígios", e "Atlante das Conquistas" pelos portugueses.
 
A Batalha de Ambuíla
 
A derrota de Dom António I Manimulaza (António Unvita Ancanga,1617-1665), rei do Congo, na batalha de Ambuíla travada a 29 de Outubro de 1665, em frente às tropas portuguesas comandadas por Luis Lopes de Sequeira, teve consequências catastróficas para a continuidade do antigo reino do Congo como entidade política independente e potentado regional.
 
Com efeito, não só o rei Dom António I foi morto (a sua cabeça foi cortada e trazida para como troféu para Luanda, apresentada em grande cerimónia ao governador brasileiro André Vidal de Negreiros, (que com João Fernandes Vieira e Henrique Dias foi um dos herois das duas Batalhas de Guararapes, travadas próximo da cidade do Recife, capitania de Pernambuco, Brasil, em 1648 e 1649 que resultou na eventual expulsão dos holandeses do Brasil), e sepultada na Ermida da Nazaré mandada construir pelo Governador André Vidal de Negreiros em 1664), mas também grande número dos membros da nobreza conguesa das kandas mais importantes do antigo reino do Congo foram também mortos, entre eles o Duque de Bamba, comandante militar supremo das tropas conguesas, o Duque de Patas, o Marquês de Pemba, o Príncipe Dom Álvaro, e um padre Capuchinho italiano que acompanhava o rei, conforme as "Memórias Contendo a Biographia do Vice Almirante Luis da Motta Feo e Torres: A História Dos Governadores e Capitães Generaes De Angola, Desde 1575 até 1825, E a Descripção Geographica e Política dos Reinos de Angola e De Benguella", Paris, 1825.
 
 
A derrota do rei do Congo Dom António I Manimulaza por Luís Lopes de Sequeira na Batalha de Ambuíla (29 de Outubro de 1665) selou o destino do antigo reino do Congo por mais de dois séculos

 
As décadas que se seguiram à batalha de Ambuíla foram para o reino do Congo um período muito conturbado de guerra civil e instabilidade política aguda caracterizado por constantes e longas lutas dinásticas que acabou por resultar no abandono de Mbanza Kongo como capital do reino e na dispersão das províncias e diluição do poder político central pelos chefados locais. 
 
Como exemplo desta instabilidade, nos 33 anos entre 1666 e 1700 houve 14 reis no Congo em quatro capitais: Dom Álvaro VII, Dom Álvaro VIII, Dom Rafael, Dom Álvaro IX, e Dom Daniel em Mbanza Kongo/São Salvador; Dom Garcia II, Dom André, Dom Manuel Afonso, Dom Afonso X, e Dom Pedro IV em Quipango; Dom Pedro III e Dom João II em Lemba (Bula); e dois candidatos de nome Afonso que se proclamaram reis no Ambriz. Para complicar, destes 14 reis, quatro reinaram ao mesmo tempo em cada uma destas capitais.

 
Não há uma imagem contemporânea de Luis Lopes de Sequeira, mas esta é uma rendição imaginária actual do grande cabo de guerra que venceu os reis do Congo, do Ndongo, e da Matamba entre 1665 e 1681.

 
Pode dizer-se que com a morte de Dom António I Manimulaza na batalha de Ambuíla, esta foi para o antigo Reino do Congo o mesmo que a batalha de Alcácer-Quibir tinha sido para Portugal com a morte do rei Dom Sebastião (perda da independência por sessenta anos) em 1578.
 

Uma rendição da histórica Batalha de Alcácer-Quibir (Batalha dos Três Reis), travada em Marrocos em 1578
 
 
A derrota e morte do rei Dom Sebastião na Batalha de Alcácer-Quibir (batalha dos Três Reis) pelos exércitos marroquinos em 1578 levou à anexação de Portugal por Espanha (União Ibérica) por sessenta anos (até 1640), e à sua erosão como potência colonial importante no quadro europeu e à consequente ascensão ddas Províncias Unidas (Holanda) e da Inglaterra.
 
A partir das campanhas lideradas por Luis Lopes de Sequeira (1665-1681) e até meados dos Século XIX (durante quase cerca de 200 anos), os reis do Congo, Ndongo, e Matamba perderam grande parte do seu poder e prestígio, sem poder influenciar de qualquer maneira efectiva o que acontecia nas antigas províncias dos seus reinos, ao mesmo tempo que os portugueses fortaleciam o seu domínio por Angola e falta de presença no Congo.

Ao mesmo tempo, a atenção dos portugueses virou-se do reino do Congo para o reino de Angola, e estabeleceram-se em Luanda e na bacia do rio Cuanza, não sem deixar nunca de capturar escravos no interior dos reinos do Congo e Iaka e no império Lunda e exportá-los através dos portos de Sonho (Soyo), Ambriz, e Ambrizete, e até Cabinda e Malembo, a norte do rio Zaire. 
 
Do mesmo modo, a influência católica diminuiu ao longo dos tempos dando lugar a várias expressões de sincretismo religioso que culminaram com a acção e consequente mito de Dona Beatriz Kimpa Vita no Congo.
 

Uma rendição da profetiza Dona Beatriz Kimpa Vita (1684-1706)

 
A profetiza Dona Beatriz Kimpa Vita (1684-1706), também chamada Santo António Conguês, foi morta a 2 de Julho de 1706 na fogueira em São Salvador pelo rei do Congo Dom Pedro IV Nusama a Mvemba sob pressão dos Padres Capuchinhos. O legado histórico de Dona Beatriz Kimpa Vita foi o movimento profético Antoniano (baseado na crença da reincarnação de Santo António de Pádua) que sobreviveu até aos nossos dias na religião Bakongo e influenciou algumas crenças em Angola como o quibanguismo e e tocoismo.
 
Em 1723, o rei Dom João V de Portugal ordena uma expedição naval composta de navios de Portugal e do Brasil para a costa de Malembo e Cabinda, entre os quais a nau Nossa Senhora da Atalaia, comamndada pelo capitão de mar e guerra José de Semedo Maia  e do comandante Estêvão José de Almeida, de Belém do Pará, para desalojar o contingente militar inglês do forte  que tinha sido construído meses antes para proteger a feitoria inglesa na região, com o apoio do Rei do Ngoio. Após breve combate, os ingleses rendem-se, retiram-se de Cabinda, e vão de volta à Inglaterra, passando os portugueses a considerar Cabinda como uma possessão ultramarina desde essa data.
 
 
Planta do Forte de Santa Maria de Cabinda, 1784, do qual hoje só restam ruínas.

 
Em 1779 a raínha Dona Maria I de Portugal mandou construir um forte em Malembo e outro em Cabinda para defender as feitorias dos portugueses das investidas francesas, inglesas, e flamengas  que assolavam o comércio de escravos na região. Quatro anos mais tarde, em 1784, o forte português de Santa Maria de Cabinda (então chamada Porto Rico) foi atacado e destruído pela força naval comandada pelo então capitão de mar-e-guerra Charles de Bernard de Marigny da marinha de guerra francesa. A corôa portuguesa protestou de imediato o ataque francês o que veio a resultar na confirmação do reconhecimento internacional da soberania portuguesa sobre a costa de Cabinda e Molembo, através de uma convenção diplomática de 30 de Janeiro de 1786 mediada pelo rei de Espanha.
 
 
Vice-Almirante Charles de Bernard de Marigny, da Marinha de Guerra Francesa, que comandou a destruição do forte português de Santa Maria de Cabinda (Porto Rico) em 1783-84.


Com o intuito de interceptar o tráfico de escravos trazidos do Congo, Iaca e Lunda para o Mossul e Ambriz, o governador português de Angola, António de Vasconcelos mandou em 1759 uma coluna militar com o objectivo de pacificar os dembos Ambuíla e Ambuella e estabelecer um presídio em São José do Engoge (perto de Nova Caipemba), onde os portugueses construiram um forte e anos mais tarde uma igreja. Anos mais tarde, em 1765, o Dembo Ambuíla revoltou-se outra vez contra a presença portuguesa no Engoge, mas foi derrotado pelos portugueses.


Ruínas do presídio (forte e igreja) de São José do Encoge, a norte dos Dembos, já perto de Nova Caipemba, Uíge. A igreja foi restaurada em 1967 mas encontra-se hoje também em ruínas.


Por iniciativa do Marquês de Pombal em 1761, Portugal foi o primeiro país europeu a dar o primeiro passo ao abolir o tráfico de escravos para o seu território europeu, declarando libertos e forros todos os escravos que entrassem em Portugal. 
 
No entanto, no Atlântico Sul, o tráfico de escravos de África para o Brasil (Maranhão, Pernambuco, Baía, e Rio de Janeiro) aumentou muito neste período com o estabelecimento de companhias majestáticas de exploração colonial. Nessa altura os escravos capturados no Congo eram exportados através dos portos de Ambriz, Cabinda, e Malembo, onde estavam estabelecidas inglesas, francesas, e portuguesas. 


Ruínas da Igreja do Forte de São José do Encoge (1759)


A situação de guerra nos Dembos continuou até 1791, quando os portugueses finalmente derrotaram os dembos Dambi-Angonga e Quitexi-Cambambi, que passaram a prestar vassalagem ao rei de Portugal.
 

Em 1836 o Marquês de Sá da Bandeira aboliu o tráfico de escravos a partir da costa de África (ainda em desenvolvimento)

 
Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo, Marquês de Sá da Bandeira (1795-1876), destacado abolicionista português que foi presidente do Conselho de Ministros de Portugal entre 1837 e 1839.

 
Entre 1837 e 1840, com base no Tratado do Rio de Janeiro, a Armada Imperial Brasileira estabeleceu a base naval da Divisão Leste no território de Cabinda, fazendo deste o único território colonial brasileiro fora da América do Sul. A presença brasileira na região resultou no fim aparente do tráfico de escravos e na dissolução do reino do Ngoio em 1847. Cabinda passou então a ser um porto pesqueiro e comercial português de certa monta, onde se comerciavam panos libongos, sal, e madeira. 
 
Em 1854, o príncipe Mpolo, do principado de Malembo aliou-se a Portugal oferecendo aos portugueses o monopólio comercial da Baía de Malembo. No ano seguinte, 1855, o rei de Cacongo, Mambuco Puna, ofereceu a Portugal o monopólio comercial da baía de Cabinda. Em 1870 é estabelecida pelas autoridades portuguesas a Prefeitura Apostólica do Baixo Congo e do Cubango, sob os auspícios dos Padres do Espírito Santo, e em 1877 é estabelecida a Missão de Lândana.  

Etimologicamente, o nome "Cabinda" vem da junção de duas palavras kikongo - Mafuca, que era o funcionário superior da corte do reino do Ngoio responsável pelo comércio com o exterior (intendente geral do comércio), e Binda, que era o nome próprio de um desses funcionários, assim do original Mafuca Binda, uniram-se as palavras e perdeu-se o prefixo Mafu, o que ficou "Cabinda". 
 
É ainda útil mencionar aqui que os habitantes de Cabinda antes do contacto com os europeus chamavam "Tchioua" à povoação, que quer dizer "grande mercado", e que os portugueses também chamaram "Palmar" no século XVIII, "Porto Rico" nos princípios do século XIX, e "Vila Amélia" depois de 1896, em comemoração do casamento do futuro Rei Dom Carlos I de Portugal com Maria Amélia Luisa Helena de Orleães. Depois da implantação do regime republicano em Portugal em 1910, o nome da vila deixou de ser "Vila Amélia" e passou ao actual nome de "Cabinda". 
 

Uma vista de Vila Amélia (Cabinda), 1901


Questão do Ambriz 1851 com a Inglaterra e Questão do Mossul
Viagens de exploração de David Livingstone (1852-73) e W. D. Stanley (1874-77)
Ocupação de São Salvador pelas tropas de Baptista de Andrade (1860-61)
Conferência Geográfica de Bruxelas 1876
Tratado do Zaire entre Portugal e a Inglaterra não ratificado pelas partes
Missões Baptist Missionary Society (BMS) protestantes São Salvador (1878), Bembe, e Quibocolo
Acção de Dom António Barroso, Superior da Missão do Congo.Visitas missionárias ao Bembe (1883) e ao Zombo (1886). Criado o distrito eclesiástico do Cong. Padre Barroso nomeado vara ou arcipreste do mesmo.Relatório do Padre Barroso
Dom Pedro V Água-Rosada - Bairros Católico e Protestante em São Salvador 
Ministro do Ultramar Conselheiro Júlio de Vilhena (1883), pai de Ernesto Jardim de Vilhena - administrador da Diamang 
Tratado do Zaire Portugal Inglaterra não reconhecido pela França e pela Alemanha. Tratado não ratificado por Portugal, que então pediu a organização de uma conferência internacional sore a Bacia do Congo. França, Alemanha, e Bégica aproveitam-se da situação e organizam a Conferência de Berlim potências participantes
Conferência de Berlim 1885. O Rei do Congo (Dom Pedro V Água-Rosada) e dois dos seus filhos estiveram presentes aos trabalhos da Conferência de Berlim, onde afirmaram a sua nacionalidade portuguesa, o que contribuiu para que fosse reconhecida a soberania de Portugal sobre todo o território do norte de Angola.
Bacia Convencional do Zaire - Liberdade de comércio e de evangelização
Missão Católica de Madimba (1885),Missão Católica do Sonho (Soyo) (1886)
Delimitação de fronteiras Norte (Congo) e Leste (Lunda) com o Congo Belga
Distrito do Congo estabelecido no papel, sem ocupação efectiva em 1887 com capital em Cabinda
Ocupação de Maquela do Zombo - com o objectivo de arrecadar os vultosos rendimentos alfandegários da borracha trazida do Congo (Cuango) 800 toneladas por ano
Campanhas dos Dembos  João de Almeida 1907
Ocupação militar da Damba
Em 1913 as capitanias-mores do Bembe, Damba, e Cuango passam a circunscrições administrativas
Revolta de Tulante Álvaro Buta 1913 contra o Rei do Congo
O governo de Faria Leal
Transferência da capital para Maquela do Zombo
Ciclo da Borracha no Cuango
Fundação da vila do Uíge em 1917
Transferência da capital do distrito para a vilas do Uíge
 

Em 1944, o Distrito do Congo fazia parte da Província de Luanda

 
Em 1944, o Distrito do Congo, que incluia os territórios de Cabinda, Zaire, e Uíge, era parte da antiga Província de Luanda. O mesmo distrito era governado directamente pelo governador-geral de Angola, através de dois intendentes, um em Cabinda e outro em Maquela do Zombo.
 
 
Comércio de Marfim
 
Ciclo da Urzela e da Cera
 
 
Ciclo da Borracha
 
 
Um carregador de borracha da região do Cuando, ca. 1890

 
 

Ocupação militar e admiststrativa
 
 
Ciclo do Açúcar
 
Caminho das Palmeiras e plantação de cana de açúcar, na Fazenda Bom Jesus, ao longo do Cuanza

 
 
Ciclo do Algodão
 
 
 
Mercado rural para produtores de algodão, distrito de Malange, 1970s

 
 
Diamantes e Diamang
 
Diamantes - uma das preciosas riquezas da Lunda

 
 
Ciclo do café 
 
Separação dos distrito em Zaire (São Salvador) e Congo (Uíge)
 
 

 
 
Cronologia dos Reis do Congo
 
 
 
Mapa da divisão administrativa da colónia de Angola em 1902. Repare-se que a configuração do território é marcadamente diferente da actual. Nesse tempo, a Província de Angola estava dividida em seis distritos: Congo, Luanda (Angola), Lunda, Benguella, Mossâmedes, e Huílla. Note-se que algumas fronteiras ainda não tinham sido finalmente estabelecidas, como as terras a sudeste de Cabinda, a  noroeste da Lunda, o saliente do Cazombo, a leste do Moxico, e a sudeste do Cuando-Cubango. 

Assim, em 1896, uma coluna militar ocupou Maquela do Zombo, o mercado regional mais importante do interior, muito próximo da fronteira com o Estado Livre do Congo (posto fronteiriço do Quimbata / Quipango), e as povoações de Cuílo (1899) e Cuango (1900) localizados até ao fim da linha norte da fronteira em direcção ao Rio Cuango. 
 
 

Maquela do Zombo foi durante o ciclo da Borracha o principal mercado no Baixo Congo
 
 
A importância de Maquela do Zombo e do Cuango devem-se ao papel fundamental que aqueles dois mercados tradicionais desenrolavam no comércio da borracha do Estado Livre do Congo. O regime de exploração atróz das populações africanas além Cuango por agentes do Rei Leopoldo II fez com que muitas aldeias inteiras se mudassem do Congo para Angola para fugir ao terror imposto  pelas autoridades coloniais do Rei Leopoldo II da Bélgica. 

 
A Force Publique, que eram os sequazes do rei dos belgas Leopoldo II, cometeram crimes bárbaros no Estado Livre do Congo.

 
Acima vemos uma dramática foto de Nsala, pai de Boali (da aldeia de Wala, vila de Basankusso) sentado, sem poder compreender ou explicar olhando para as mãos e pés decepados de sua filha de cinco anos. As mãos e pés de Boali foram decepados pela Force Publique do Estado Livre do Congo como medida bárbara de violência para forçar os africanos a preencher as quotas de borracha na vila de Baringa, estabelecidas pela Anglo-Belgian Indian Rubber Company em 1904 para o distrito de Nsongo (bacias dos rios Lopori e Maringa). Fotografia de Alice Harris, 1904. 
 
Como povoação, a Damba já existia há muito tempo antes da chegada dos portugueses em 1911. De facto, a Ndamba era o local de um dos mercados tradicionais bakongo mais importantes desde o século XVI. Contudo, não era a "capital" da região, pois esta era onde o Mbuta (soba)  Mandamba Lutayi vivia, a cerca de 18km da vila actual. 
 
Acredita-se que o primeiro colono português a viver na Damba tenha sido um comerciante de apelido Vaal. As outras povoações na região incluiam Camatambo (Kamatambu), Sosso (Mbanza Nsosso), Lêmboa (Lêmbwa), e Pete/Cusso (Mpete Ncusso).

 
Destacamento de militares portugueses na campanha de ocupação da Damba, 1914

 
A 5 de Outubro de 1911 os portugueses chegaram à Damba, onde estableceram uma capitania-mor, nessa altura sob a autoridade tradicional de Dom Miguel Nankunzi. Os portugueses substituiram Dom Miguel Nankunzi em 1920 por ele discordar com a política colonial renovada do Alto Comissário Norton de Matos de obrigar os nativos a pagar o "imposto indígena" (chamado previamente imposto de cubata) e a obrigar as mulheres locais a fazerem trabalhos forçados no caso de não fazerem o pagamento do imposto em dinheiro. 
 
inserir aqui a foto Dom Miguel Nankunzi
 
Dom Miguel Nankunzi foi substituído por Sebastião Kialoca como soba regedor da região, por ordem do primeiro administrador Sr. Manuel Laurentino da Silva. Contudo, Dom Miguel Nankunzi continuou a ser de facto a autoridade tradicional mais respeitada na região até ao seu falecimento em 1959. Ele foi sucedido nessa altura por Ndofula Kabata, que exerceu as funções até 1961, ano em que deixou a Damba e se refugiou no Congo (RDC) por causa da situação de guerra que se vivia.
 
Tal como outras potências coloniais em África, como a França, a Inglaterra, e a Alemanha, após a abolição do tráfico de escravos do Atlântico e da escravatura interna nas colónias no terceiro quartel do século XIX, Portugal recorreu ao uso de trabalho forçado como medida de aproveitar a mão-de-obra barata em Angola e Moçambique. 
 
O Regimento Geral de Trabalho dos Indígenas nas Colónias Portuguesas de 1899 estipulava que "todos os nativos das províncias ultramarinas portuguesas estão sujeitos à obrigação moral de obter através do trabalhoos meios de que necessitam para subsistir e melhorar a sua condição social. Eles têm plena liberdade de escolher os meios para cumprir com esta obrigação, mas se não cumprem, a autoridade pública pode forçá-los ao cumprimento".
 
Devido à forte resistência da opinião pública internacional contra uma exploração colonialista atroz (mormente os principios que regravam as consequências da Conferência de Berlim nos anos a seguir a 1885; a divulgação dos resultados da investigação do inglês Henry Nevison em 1903 através dos grandes jornais mundiais das condições atrozes de trabalho forçado de "serviçais" angolanos nas roças de cacau e café em São Tomé); e o escândalo internacional da exploração atroz do Rei Leopoldo II da Bélgica no Estado Livro do Congo em 1908; a imposição do sistema de trabalho forçado africano não podia mais continuar a fazer-se descaradamente. 
 
Assim, as potências europeias introduziram nas colónias o chamado imposto de palhota, que obrigava os nativos africanos a pagar o imposto em dinheiro ou géneros como borracha, algodão, milho, oleaginosas, mantimentos, marfim, e gado (proibido mais tarde), sob a pena de não pagamento a ter que trabalhar na construção e manutenção de estradas e obras públicas ou em companhias agrícolas e mineiras nas colónias. O imposto de palhota tinha ainda um outro objectivo muito importante: o de integrar o mais depressa possível o indígena africano na economia colonial como consumidor de produtos manufacturados nas metrópoles da Europa. 
 
Na história colonial portuguesa, o imposto de cubata teve origem no "Mussoco" ou "imposto de palhota" nos prazos da corôa em Moçambique, de acordo com ideário colonial do Comissário Régio de Moçambique António Enes, que o formalizou nos domínios das companhias majestáticas (Companhia de Moçambique, Companhia da Zambézia, Companhia do Niassa, Sena Sugar Company, Companhia de Boror, Companhia do Mandal, Companhia do Buzi, e Companhia do Incomati), que substituiram o antigo regime colonial dos prazos da Coroa. 

No caso de Angola, os primeiros passos com o imposto de palhota foram dados em 1885 quando o governador-geral Ferreira do Amaral introduziu na colónia o regime das Granjas do Estado, que se baseava essencialmente no trabalho forçado não-pago de indígenas. As granjas do estado não só geravam um rendimento não desprezível aos cofres da colónia, como também reduziam muito as despesas militares, pois os produtos agrícolas consumidos pelos contingentes militares passaram a ser produzidos localmente (mais frescos) a um custo muito abaixo do preço de mercado. 

Com a maioria das campanhas militares de ocupação em Angola a desenrolarem-se e completarem-se durante este período, e a consequente ocupação administrativa a tomar forma através de todo o território de Angola logo após a ocupação militar, depressa todos os governadores abraçaram o sistema do imposto de palhota.
 
 
Uma caravana de carregadores de borracha em Maquela do Zombo, 1906. Os carregadores tiveram um papel fundamental na economia colonial de Angola até ao uso do automóvel na década de 1930, pois os animais de tracção (bois, cavalos, e burros) não podiam ser usados devido à endemia da doença do sono.

 
Assim, e após várias tentativas não muito bem organizadas, o "imposto de cubata" foi finalmente formalizado em Angola pelo governador Paiva Couceiro em 1907 num quadro de transição de uma economia de tráfico de escravos para uma economia de produtos tropicais agrícolas e mineiros.
 
Como o imposto de cubata incidia sobre os africanos nativos vivendo ainda  numa economia tradicional de subsistência que ainda não era monetarizada, o imposto de cubata era normalmente pago em géneros ou em espécie (uma corveia), o que pela impossibilidade de pagamento em dinheiro acabou para abrir caminho ao trabalho forçado da maioria da população nativa de Angola durante décadas. 
 
Foi através do trabalho forçado generalizado da população africana que resultava da impossibilidade do pagamento em dinheiro do imposto de cubata (que era impossível para eles pois não usavam dinheiro na sua economia tradicional) que o Alto-Comissário Norton de Matos foi capaz de encetar o seu famoso programa de construção e mautenção de estradas, pontes, e obras públicas em Angola. Em 1919 o imposto de cubata foi substituído pelo "imposto indígena", que por sua vez foi substituído pelo "imposto geral mínimo" em 1963. 

É ainda importante notar que o imposto de cubata em Angola foi sempre uma fonte importante de meios para os cofres do governo, crescendo o seu montante de 34,1 contos em 1907 (1,9% da receita total da colónia) para 2.981 contos em 1938 (ou seja 26,8% da receita total da colónia).

Uma das tarefas mais importantes que os quadros administrativos (chefes de posto e administradores civis) tinham de completar todos os anos era o recenseamento das populações indígenas. O recenseamento demorava várias semanas a completar e visava quatro objectivos principais: a) actualizar o censo da população nativa (registo de residência, nascimentos, mortes, casamentos, divórcios) de cada posto ou sede de concelho; b) actualizar o inventário dos recursos económicos (cubatas, lavras, animais, produção agrícola, etc..) dos mesmos; c) colectar directamente em dinheiro o imposto de cubata; e, d) identificar e notificar o soba local e as pessoas que não podiam fazer o pagamento do imposto de cubata em dinheiro ou em espécie. 
 
Estes, de facto, constituiam a grande maioria, e tinham então que fazer o pagamento do imposto de cubata em trabalho forçado (público para o estado na construção de estradas, pontes, edifícios, e outras obras públicas) ou numa fazenda ou mina de uma companhia privada), o que significava trabalho árduo não pago por cerca de três a quatro meses durante o próximo ano, em que o indígena tinha que se alimentar a si próprio e a sua família e também trazer as suas próprias ferramentas de trabalho. 

O imposto de cubata era colectado no local durante os dias do recenseamento pelo chefe de posto ou administrador e depois remetido para a respectiva repartição distrital dos serviços de fazenda. Uma pequena percentagem do rendimento colectado do imposto de cubata era paga ao chefe de posto (1,5%) e ao administrador (2,5%), e à administração do concelho (1%). 
 
As autoridades administrativas eram incentivadas em capitalizar no valor do trabalho forçado resultante do não pagamento do imposto de cubata, pois o Alto-Comissário Norton de Matos oferecia um automóvel por cada 40 quilómetros de estrada construídos em cada concelho por trabalhadores indígenas. O período de trabalho forçado não podia exceder mais de seis meses durante um ano.

O tempo de trabalho para a remissão da dívida do imposto de cubata não podia exceder seis meses. O horário de trabalho em geral ia das 5:30 até às 19:00 horas com pequenos períodos de repouso para o mata-bicho. 
 
A fuga ao imposto de cubata era punida severamente, através de repetidas penas mais longas de trabalho mais árduo e perigoso, e mesmo com castigos físicos com a palmatória, o chicote, ou o cavalo marinho.
 
 
Geografia da Damba
 
Em termos de orografia (relevo) e hidrografia (rios), alguns rios (e as cadeias de montanhas que os separavam) na região da Damba corriam para norte, onde por fim se iam juntar ao rio Zaire, e outros para oeste, indo desaguar eventualmente ao Oceano Atlântico. 
 
 
A vegetação típica da região da Damba

 
Os rios principais da região eram os rio Lueca, Coje, e Zadi-Andimba que corriam para o Rio Mbridge, e os rios Lulovo e Luquiche Zadi, que confluiam com o Rio Zadi, que corria para norte e se ia juntar eventualmente ao Rio Zaire. 
 
 
Orografia e hidrografia geral do norte e centro de Angola. Note-se a orientação Sul - Norte (bacia do Zaire), Leste- Oeste (costa atlântica), e Oeste-Leste (bacia do Etosha/Kalahari) dos rios, vales e montanhas.
 
 
Da mesma forma, no norte de Angola, as bacias criadas por estes rios eram delimitadas por serras que seguiam a mesmas duas orientações (norte/sul e este/oeste), das quais se destacam a serra do Cusso, a serra da Canda (a Noroeste e Oeste, respectivamente), e a serra do Mucaba a oeste, (todas demarcando o curso de rios que correm directamente para o Atlântico) e a serra da Canganza, que separa as bacias dos rios Zadi e Cuílo, que por sua vez correm para norte em direcção ao Rio Zaire.
 

Mapa do antigo Distrito do Uíge, Angola, 1968


Clima

O clima da região da Damba era chuvoso, quente e húmido (tropical de savana) com duas estações distintas: a estação das chuvas e do calor, e a estação seca e mais fria (cacimbo). A vila da Damba situava-se num planalto, e assim tinha um clima um pouco mais ameno e mais propício para o  povoamento humano. 
 
A estação das chuvas começava em Setembro, crescia até Novembro, e dimunuía em Dezembro, para quase uma ausência de chuva em Janeiro e Fevereiro. Então a chuva aumentava outra vez até Abril (o mês mais chuvoso) para acabar em meados de Maio. Os meses secos eram Junho, Julho e Agosto. 
 
A temperatura média anual da área da Damba oscilava entre os 20º e 25º graus centígrados. Contudo, as noites podiam ser frias (inferiores a 10º graus centígrados) em Junho, Julho, e Agosto. Os meses mais quentes eram em norma Março e Abril,com temperaturas também elevadas em Novembro e Dezembro, chegando a ultrapassar os 35º graus.

Em termos de nebulosidade (núvens), em geral os céus não eram muito encobertos na estação das chuvas,e mais claros na estação do cacimbo. Na estação das chuvas havia sempre muitas trovoadas muito fortes (todas as casas tinham pára-raios). Por outro lado, na estação do cacimbo tínhamos muito nevoeiro que aparecia quase todas as manhãs, mas que rapidamente se dissipava. Em termos de humidade, a região da Damba era muito húmida, com um índice de 85% de humidade relativa.
 
 
A Vila

Em termos de geografia urbana a vila estendia-se ao longo da estrada principal de terra batida (não asfaltada) Uige-Maquela do Zombo com casas para famílias europeias cercadas por sanzalas (povoações de nativos) a vários quilómetros da vila. 
 
Na zona norte da vila encontravam-se os edificios públicos, como a administração civil, correios, cadeia, igreja, escola, cemitério, e residências do administrador, secretário, médico, professor, chefe dos correios, e outros funcionários. 
 
Em frente à igreja da vila e à escola primária havia um largo muito grande onde nós jogávamos futebol. No centro era a zona comercial onde se encontravam as lojas e residências dos europeus, e na zona sul encontrava-se o hospital, e já na periferia, o aeródromo, e as missões católicas. 
 
A maioria das casas dos europeus tinham uma área independente para a loja e armazém onde praticavam o comércio com africanos, um quintal muito grande, e a residência  propriamente dita para a família. 
 
A nossa casa (residência), estava situada numa esquina da rua principal e uma rua que nos separa va da família Nicolau Francisco. A casa que julgo que era alugada, era composta de uma sala comum de visitas e de jantar e de três quartos na secção principal com uma varanda virada para a rua principal da vila, e de um corredor que dava para o quintal onde se encontrava primeiro a casa de banho, depois a despensa, e ao fundo a cozinha.

 
O saudoso candeeiro a petróleo Petromax. Quando faltava a electricidade, o que era frequente, o que nos salvava era o velho Petromax.

 
Se bem que tivéssemos energia eléctrica, ela faltava com frequência, devido a avarias na central geradora de electricidade. Esta trabalhava a gasóleo. Para atender a situações de emergência por falta de electricidade, nós tínhamos dois candeeiros Petromax e dois candeeiros de sala Alladin, que trabalhavam a petróleo.  A geleira trabalhava também a petróleo.
 
 
O fogareiro a petróleo Primus, utensílio essencial nas cozinhas de Angola dos anos Quarenta e Cinquenta do século XX, usado antes da chegada dos fogões a gás butano. 

 
Nós usávamos três tipos de fogão - um ou dois fogareiros a petróleo pequenos da marca Primus que se tinha que bombar antes de se acender, um forno de lenha para fazer pão, bolos, e outras comidas de forno, e um braseiro grande de carvão que usávamos para assar peças de carne, panelas maiores e onde aquecíamos a água para banhos, pois não tínhamos esquentador. A água quente tinha que se levar para o chuveiro da casa de banho. Os sabonetes que usávamos para lavar a cara eram da marca Lux ou Palmolive, e para tomar banho o saudoso sabonete Lifebuoy. Quanto a lavagem de roupa, esta era lavada no quintal por uma lavadeira que trabalhava dois dias por semana, usando um tanque de lavar a roupa de de cimento. 
 
 
Um filtro de água doméstico, tipo de barro e Pedra de Moçâmedes

 
 A água que bebíamos era fervida antes de ser filtrada através de um filtro grande (10 litros) de pedra e barro de Moçâmedes. O chão era de cimento, e tinha que ser lavado com creolina com frequência. 

Atrás da casa tínhamos um grande quintal com uma horta e uma planta de bambu muito grande. Ainda no quintal tínhamos as capoeiras de galinhas, coelhos, e cabritos. Havia ainda uma área para estacional a carrinha ou mesmo camiões que traziam mercadorias ou levavam café ou ginguba. A loja tinha duas frentes, uma para a rua principal, e a outra para a rua secundária. A agência de viagens e procuradoria era virada para a rua secundária. O armazém era ao lado da loja com entrada pela rua secundária. Esta rua secundária não tinha quaisquer casas a não ser a nossa e a da família Nicolau Francisco. Era só uma rua que ia ligar à rua paralela sem casas que passava pela escola e ia dar eventualmente às traseiras do edifício da  Administração Civil.
 
Já que falei na grande planta de bambú, recordo-me que no dia de funeral da nossa cadelinha Fiesta, para quem nós fizémos uma campa muito bonita, a minha irmã Dilar ao levantar uma tábua grande do chão deparou com uma cobra longa castanha toda enrolada, que entretanto acordou  assustada e logo fugiu. A Dilar ainda lhe deu com a tábua, mas a pobre cobra não queria nada connosco, e de imediato fugiu e se escondeu na base da panta de bambú, tão bem que nós nunca mais a vimos.
 
 
Edificio da administração civil do concelho da Damba, 1957

 
A presença da autoridade administrativa colonial na vila era marcante, pois os edificios mais destacados da vila eram aqueles ligados à administração civil. A casa do administrador era a maior casa da vila, situada mesmo à frente da Administração do Concelho. Quando nós saímos em 1961, uma nova residência de dois andares (o único prédio de dois andares na vila) para o administrador estava em construção, perto da residência do médico.
 
Na quadra da Páscoa, era habitual o padre visitar todas as casas da vila. Ele começava na casa do administrador e percorrendo toda a vila ia até à última casa da vila, que era a casa da família dos Oliveira do Quibocolo. Cada família esmerava-se por receber a visita do vigário da melhor maneira possível oferecendo-lhe boa comida, doçaria fina, vinho bom, e os melhores licores. É evidente que o pobre pároco depois de tantas guloseimas e bebidas já se sentisse um pouco "feliz" quando ia a meio da sua jornada pastoral, e que já não dissesse "coisa com coisa" e ter que se agarrar às paredes quando chegava ao fim da vila. O meu Pai em particular, esmerava-se por "regar" bem a sacra visita tanto quanto possível, pelo que nós podíamos ver claramente a diferença entre o estado do senhor padre quando entrava em nossa casa, e quando saía já um pouco confuso a trocar os passos...
 
Naquele tempo (até 1961) não havia na Damba qualquer presença militar, além do pequeno grupo de cipaios (actuando mais como polícia indígena) adstritos à administração civil e cadeia comarcã locais. 
 
O cemitério, lugar calmo e coberto de mangueiras frondosas que davam muita sombra e paz ao local de descanso perpétuo, era situado à saída norte da vila, na estrada que ia para Quibocolo e Maquela do Zombo, e o desvio para a mina de cobre do Mavoio.


A antiga escola primária da Damba, 1957, onde fiz a instrução primária, da 1ª à 4ª classe

 
A vila da Damba tinha água canalizada e energia eléctrica das quatro da tarde às dez horas da noite. A vila tinha também uma escola primária (da primeira à quarta classe), um centro de saúde (pequeno hospital sem Raio-X mas com uma pequena maternidade), estação de correios e posto P-19 de rádio, uma igreja e duas Missões Católicas (uma masculina e outra feminina). O Raio-X mais próximo era no Mavoio, perto do Quibocolo. A Damba não tinha uma rede local de telefones. Cartas e telegramas eram os meios mais comuns para trocar informação entre pessoas.
 
 
O edifício do saudoso Clube Recreativo Beneficiente e Desportivo da Damba, 1957

A vila tinha também um clube (o Clube Recreativo e Beneficiente da Damba) com uma sala de cinema e de festas, ringue de patinagem, e um estádio de futebol (situado já fora da vila). A festa de fim-de-ano (reveillon) era a festa mais desejada do ano, pois todas as famílias se juntavam numa grande farra a dar boas vindas ao novo ano.
 

A antiga Igreja Católica da Damba, sede da paróquia de São João de Brito, 1960s

A Damba tinha duas missões católicas, uma masculina e outra feminina, que se situavam a poucos quilómetros da vila. A Missão da Damba foi fundada em 1948 com a chegada  dos padres capuchinhos italianos Camilo de Terassa e Hilarino de Carraco, e o irmão José. A missão feminina foi fundada poucos anos mais tarde. As missões tinham escolas que além do programa normal de instrução primária e evangelização, ofereciam também programas de artes e ofícios para rapazes e raparigas, bem com educação sanitária e assistência em caso de doença às famílias da região. A missão feminina tinha ainda a maternidade Raínha Santa Isabel que servia as necessidades de obstetricia da região.


Maternidade Raínha Santa Isabel, na Missão Católica Feminina, Damba, 1960

 
Lembro-me ainda que a Damba tinha uma escola de artes e ofícios que era famosa pela beleza e qualidade de mobílias de verga e de madeira que os seus artesãos produziam. Numa baixa adjacente à vila havia uma granja jardim (a Granja Agrícola da Damba) muito bonita com hortas e um riacho com peixes (bagres), onde se situava a central eléctrica. Não me esqueço nunca que um tanto distraído um dia decidi sentar-me num tubo (cano de escape) do motor da central eléctrica, que estava muito quente, pelo que queimei muito as minhas pernas, e me deu dores muito intensas por alguns dias. A vila tinha ainda uma fábrica de descasque de café, uma fábrica de óleo de palma, e uma fábrica de descasque de arroz.


O antigo hospital da Damba, no extremo sul da vila, 1960

 
A Damba tinha uma oficina mecânica para carros e dois postos de abastecimento de gasolina (Mobil no estabelecimento comercial da família Neves Ferreira, e Sacor, da família Negrão). Em termos de estradas, a Damba estava ligada a Maquela do Zombo a norte (104 km a norte), a Carmona (Uige) (196 km a sul), ao Lucala (a estação de caminho de ferro (linha de Malange, do Caminho de Ferro de Angola) mais próxima a 445 km sul), e Luanda (530 km pelo estrada do Bembe, Toto e Ambriz, e 506 km pela cidade de Carmona, capital do então distrito do Uíge). 
 
 
Sinal à saída do Quiteca na Damba indicando as distâncias das povoações vizinhas mais importantes, 1967
 
 
As estradas não eram asfaltadas, pelo que só na estação do cacimbo (estação mais seca e fria) eram mais ou menos transitáveis; contudo, na estação das chuvas elas tornavam-se um grande problema, pois qualquer viagem demorava três a cinco vezes mais tempo do que no cacimbo, devido às péssimas condições do terreno. 
 
 
Ainda na décade de Sessenta, as estradas que ligavam as vilas no norte de Angola, eram intransitáveis durante a estação das chuvas.

 
Até ao uso generalizado do automóvel depois da Segunda Guerra Mundial, os europeus faziam uso da tipóia (machila, ou cavalo de madeira, ou ainda cavalo do Congo) para o transporte de pessoas e de carregadores para o transporte de carga.


Ambaquista numa machila na região de Quimbele, 1950s


Grande parte do tráfego de veículos nas estradas do norte de Angola nos anos de 1950s eram camionetas que traziam da costa peixe seco e mercadorias para as vilas  do interior e levavam café e ginguba para o porto de Luanda. O condutor era branco ou mestiço, e o ajudante (o monangambé) era preto e viajava  em cima da carga, ao vento, à poeira, e à chuva.
 
 
A antiga carreira de autocarros Viriatos que servia a Damba nos anos Sessenta

 
A Damba tinha um pequeno aeródromo que tinha serviço regular semanal de aviões DC-3 (Dakota) operados pela DTA (a transportadora aérea do estado - Direcção dos Transportes Aéreos) com Luanda. A vila tinha serviço bi-semanal de camionagem e carreira para Maquela do Zombo e para a cidade de Carmona (hoje Uige), capital do distrito. O jornal mais lido na vila era o Jornal do Congo, publicado semanalmente em Carmona (Uíge).
 
 
O avião (DC3 Dakota) da DTA de carreira regular com Luanda, no campo de aviação da Damba, em 1959

 
Em termos da sua  relevância no contexto da economia regional, a vila da Damba tinha cerca de 20 casas comerciais de propriedade de portugueses europeus e talvez umas seis ou oito fazendas de café na área circumvizinha, sendo o café, a ginguba (amendoim), o óleo de palma (déndém), gengibre, e o arroz os seus produtos principais. 
 
 
A torre de controle e sala de embarque do antigo aérodromo da Damba, 1958 
 
 
A economia regional baseava-se assim na permuta de desses produtos locais e na venda de bens de consumo pelos comerciantes portugueses às famílias africanas. O café era a principal cultura com duas fábricas de descasque de café na vila servindo as necessidades das fazendas da região. Além das fazendas dos europeus, a população africana produzia muito café que vendiam aos comerciantes portugueses nas vilas e povoações da região. Esse mercado era chamado de "tonga" (permuta em português).
 
 
Permuta do café (tonga) na região da Damba, 1960s. Note o garrafão de vinho de cinco litros atrás na camioneta.

 
As autoridades administrativas esforçavam-se por manter os termos da permuta legais e lícitos (tonga), mas na verdade alguns comerciantes baseavam a sua actividade na candonga (comércio ilícito / mercado negro) com termos claramente negativos para os produtores africanos. Todos na vila sabiam quem eram os candongueiros (os que estavam a enriquecer mais depressa) e quais os métodos que eles usavam para extraír mais valor dos agricultores tradicionais. Esta exploração desenfreada do valor criado pelos agricultores tradicionais tornou-se um dos factores principais da luta armada que eclodiu a 15 de Março de 1961.
 

Terreiro de café numa fazenda no norte de Angola, 1960s


Mão-de-obra Rural - Os Contratados

A economia cafeícola no norte de Angola, Cuanza-Norte, e Cuanza-Sul (Seles), assentava no trabalho dos "contratados" (trabalhadores rurais bailundos trazidos do Huambo e do Andulo). Os contratados eram atraídos por falsas promessas de angariadores desonestos ou compelidos à força pela  conivência de autoridades administrativas sem escrúpulos para contratos de trabalho que não eram mais do que trabalho forçado disfarçado. 
 
Os contratos eram em regra por dois anos, mas com frequência eram renovados uma ou duas vezes. O salário do contratado era cerca de metade do salário de um trabalhador rural recrutado localmente. O salário era pago 20% ao mês, e no fim do contrato, o contratado recebia os restantes 80% por cada mês de trabalho. 
 
Os contratados eram trazidos em camiões de caixa aberta desde o planalto até à roça numa viagem que podia demorar até uma semana. Mais tarde, a caixa dos camiões passou a ser coberta para proteger da chuva e da poeira, e já na década de Setenta, eles eram transportados por autocarro, desde a origem até à vila mais próxima da roça, e daqui para a roça em camiões de caixa aberta.
 
Haviam dois tipos de trabalhadores na roças: os que trabalhavam em casa (domésticos), como o cozinheiro, criados, lavadeiras, e o ajudante (o monagambé), que não eram "contratados", e que por norma trabalhavam já há uns anos; e os contratados, que trabalhavam nas tarefas relacionadas com o café, contratados por períodos de dois anos.
 
O contratado trabalhava seis dias por semana. O dia de trabalho era longo, pois começava muito cedo (entre as 5:30 e as 6:00 horas da manhã) e ia até às seis da tarde, com um repouso breve para o mata-bicho. O contratado não tinha férias.
 
A assistência médica era básica: se o contratado caísse doente, ele era trazido ao hospital da vila mais próxima para ver o médico. Os medicamentos eram fornecidos pelo estado ou comprados pelo fazendeiro, e o seu custo deduzido dos 80% de salário retido. Em caso de acidente no trabalho, o fazendeiro trazia o contratado ao hospital, mas não havia seguro de invalidez. Se o contratado morresse durante o contrato, ele era enterrado na roça, e a família não era indemnizada.
 
A vida para os contratados que trabalhavam nas roças de café era difícil. No caso da Roça Novo Fratel, que é a que eu me lembro, a casa do contratado era uma pequena casota em adobe de um só quarto, com um pequeno espaço para cozer os alimentos, pintada a cal branca por dentro e por fora e com telhado de telha, sem tecto interior para deixar passar o fumo do fogo através de uma pequena chaminé, que acendiam para a preparar o jantar e aquecer a casota, com uma única porta e uma pequena janela. O chão era de terra batida.
 
A casota não tinha casa de banho, pois esta era numa casa comunal separada. O contratado dormia no chão numa esteira dupla de bordão coberto por um cobertor de algodão cinzento (que era o mais barato). Alguns contratados, aqueles que eram da região, tinham a sua família consigo, mas a maioria dos que vinham do Planalto do Huambo viviam sózinhos.
 
 
Trabalho de secagem de café no terreiro da Fazenda Boa Viagem, da CADA (Companhia Angolana de Agricultura) na região do Seles, Cuanza-Sul, 1968

 
A alimentação era constituída por duas refeições ao dia: o mata-bicho (pequeno almoço) e o jantar ambos preparados pelo próprio trabalhador. A refeição era quase sempre composta de fuba (farinha de mandioca cozida), que cozida se chamava funge, ou ainda uma kiquanga com peixe seco molhado em óleo de palma, acompanhado de uma ração pequena de ginguba torrada. Num jantar mais especial (sábado) a refeição era completada com um pouco de milho ou fruta local e um copo (ou mais) de malavo ou vinho.
 
Depois de um dia árduo de trabalho e do jantar, havia um tempo curto para convívio, onde se conversava, contavam-se histórias, e às vezes se dançava, pois pelas 8:30 da noite, a maioria dos trabalhadores recolhiam à sua casota para dormir. 
 
O fazendeiro geralmente tinha uma pequena cantina (loja, botica) onde tinha um pequeno inventário de vinho e de outras coisas que os trabalhadores precisassem. As vendas eram por norma a crédito até serem pagas quando o trabalhador recebesse os 80% do salário retido pelo patrão. Este sistema de crédito levava a muitos abusos por parte do fazendeiro, especialmente no que tocava à venda de vinho.

 
Edifício da antiga Administração Civil de Maquela do Zombo, 1960s
 
 
A maioria das fazendas seguia um certo padrão urbanístico comum: Um grande terreiro quadrado ou rectangular para secar café com três ou quatro secções distintas ao centro, a casa do fazendeiro ao fundo e ao cimo do terreiro, de um lado, e o "bairro" das casotas dos trabalhadores no outro lado do terreiro, e o armazém, oficinas, e garagens no lado oposto à casa do fazendeiro. Atrás da casa do fazendeiro havia sempre uma horta grande onde se cultivavam batata, legumes e vegetais frescos para consumo da família do fazendeiro. A estrada de accesso à fazenda não era asfaltada e era mantida pelo fazendeiro.
 

Rua (estrada) principal da povoação do Mucaba, em 1959.


Perto da povoação do 31 de Janeiro havia um colonato indígena (também conhecido por Colonato da Damba) com uma capacidade total para 245 famílias de tocoístas e caboverdeanos, devidamente apetrechado com casas, implementos agrícolas, adubos, e sementes, assistidos por 15 técnicos dos Serviços de Agricultura e Florestas. 
 
 
Colonato do Vale do Loge, 1960s
 
 
Perto do Toto e não muito longe de Nova Caipemba, havia outro colonato, o Colonato do Vale do Loge com uma área de 16.000 hectares (600 dos quais em produção) para 120 famílias tocoístas que tinham sido expulsas do Congo Belga em 1950. O profeta Simão Toco viveu nesse colonato em regime de residência fixa durante alguns anos.
 
 
Chegada à povoação da Lêmboa (Mabaia) de uma camioneta carregada de café para ser descargado no armazém da casa comercial depois da tonga, 1950s

A Damba  servia as necessidades comerciais, administrativas, de saúde, e de educação mais imeditas para um número de povoações à sua volta, como as povoações de Lêmboa, Lucunga, Mucaba, Camatambo, Pete, e 31 de Janeiro
 
 
Rua principal da Vila do Lucunga, 1960s. Repare-se que cada casa era composta por loja e residência da família do comerciante

 
As ligações entre a Damba e a povoação do Quibocolo e a mina de cobre do Mavoio eram economicamente importantes, mas estas estavam mais sob a órbita comercial de Maquela do Zombo, que era também o principal centro administrativo da região chefiado por um indendente, que era responsável pela supervisão dos administradores de concelho e chefes de posto da região. 
 
 
Uma rua comercial de Maquela do Zombo, 1960s, a vila que me viu nascer.


Da mesma forma, a povoação do Bungo estava mais ligada ao Negage e a Carmona, do que propriamente à Damba. A noroeste da Damba, já na fronteira com o Congo Belga na margem do rio Cuango, era a região do Cuílo Futa, Quimbele, e Sacandica, habitadas pelo povo Maiaca, que eram na verdade mais despovoadas e remotas, e de menor importância económica naquele tempo.
 


A rua principal da Vila do Bungo, 1960s

 
Das frutas saborosas da Damba não esqueço as deliciosas mangas do cemitério, que eram muito grandes e saborosas, bem como banana, abacate (grande e pequeno), ananás e abacaxi, safú (comia-se depois de passar por água a ferver), mamão e papaia, maracujá (grande e pequeno), nêsperas, pitangas, goiabas, cajú, jaca, déndém, e tâmaras. 
 
 
Uma vista da pequena povoação da Quibala (Norte), na estrada para a vila o Ambriz, 1960s.


Em termos de cereais, os mais comuns eram o luco, o massango, o milho, e a massambala, que faziam parte da dieta tradicional. O feijão macunde também era muito popular. Contudo, o alimento mais s usado era a raíz da mandioca (madioko), que depois de devidamente preparada através de um laborioso processo, era a base alimentar da família tradicional. É de notar que a mandioca não é uma planta nativa de África, mas sim do Brasil, pois foi de lá trazida pelos portugueses nos primeiros tempos do tráfico de escravos.
 
 
O popular fruto Safú da Damba, que se comia cozido
 
 
Da cozinha tradicional Sosso, eu lembro-me da funge (seku) feita de farinha de mandioca (fuba) e água a ferver que se comia com peixe seco e óleo de palma a acompanhar, e da kikwanga, que era um bolo cozido ao vapor (banho maria) feito de massa de mandioca fermentada embrulhado em seis ou sete folhas de ngongo ou de bananeira e amarrado com cordeis à volta. A kikwanga conservava-se muito bem, pois podia comer-se alguns dias mais tarde, e assim, a kikwanga era a comida pronto-a-comer mais disponível nas kitandas (mercados locais) e mesmo à venda à beira das estradas. Contudo, o prato tradicional que eu mais gostava era o mutete de galinha. 
 
 
Nsombe / Catato - uma delícia da cozinha tradicional Bakongo

 
Haviam também dois pratos tradicionais muito apreciados na região, mas que eu nunca comi. Uma era o Nsombe (também conhecido por Catato), que era uma lagarta (larva) esbranquiçada, gorda, e comprida colhida em certas palmeiras, que era frita em alho e servida com arroz, e a outra era o Nzenze, que eram os deliciosos grilos fritos.
 

Dois bolos de Kikwanga prontos para comer

 
Em termos de fauna, a região da Damba era tinha uma variedade muito grande de animais salvagens, incluindo veados, golungos (antílopes), pacaças, elefantes, onças, javalis, perdizes, galinhas do mato, e muitas variedades de cobras (umas venenosas, outras não), e um animal pequeno de quatro patas com uma cauda longa (e uma língua ainda mais longa) com o corpo todo coberto de escamas grossas, o pangolim (nkaka), que se enrolava todo numa bola fechada e  inexpugável quando pressentia perigo.
 
 
Grilos (Nzenze) , um pitéu muito apreciado na Damba

 
Lembro-me ainda que na Damba haviam muitos pirilampos que à noite acendiam uma pequena luz na cauda quando voavam. Não posso ainda não deixar de mencionar o facto de que havia muitas barata grandes sem todo o lado.
 
 
O Pangolim, animal típico da região da Damba (nkaka)
 
 
Que eu saiba, não havia leões na região da Damba, se bem que me lembro que a minha Mãe me disse que um leão tinha sido morto na região há uns anos atrás. Já que estamos no tópico de leões, ela também me disse que que ela tinha tido um cozinheiro em Vila Luso (Luena, Moxico) que tinha sido comido por um leão, quando voltava para casa à noite depois do trabalho.
 
Em termos de vegetação, o capim era por norma muito alto e cortante e as florestas eram mais comuns ao longo dos vales apertados criados pelo curso dos rios, oferecendo uma paisagem de savana para o planalto em que se situava a vila. Na Damba havia alguns eucaliptos, não nativos à região, situados especialmente ao longo da estrada paralela à rua principal que passava em frente à escola e por trás da administração (no lado sul da vila).
 
Nos rios maiores (Lulovo, Lueca, Luquiche-Zadi, Coje, Lucinga, M'Bridge, e Luati), podiam-se encontrar jacarés. Todos os rios da região tinham peixes, mas a pesca não era uma actividade económica muito significante, se bem que o peixe fizesse parte da alimentação quotidiana da família tradicional Sosso. 


Antigo brasão da Vila da Damba

 
Das duas coisas que me lembro ainda que muito esbatidamente dos meus anos de meninice (três a cinco anos) foi de ver neve em Vinhais (Bragança, Portugal), quando lá fomos visitar a família do meu Pai, e das visitas que fazíamos aos meus tios Armando e Aurora, que viviam na vila de Quibaxe, na região dos Dembos, em especial da minha prima Milú que gostava muito de tomar conta de mim, e a quem às vezes eu chamava Mãmã. Lembro-me também que o meu tio Armando tinha uma station wagon Ford, modelo de 1953, muito bonita de côr café com leite e castanho.

Um tanto precoce, eu aprendi a ler, escrever, e contar em casa sob a orientação da minha mãe, ainda antes de entrar para a escola primária da Damba. A minha mãe fez todos os esforços no sentido de eu poder começar na escola mais cedo com seis anos, mas o pedido foi indeferido pela repartição dos Serviços de Instrução do Uíge. 
 
 
Capa do Livro de Leitura da Primeira Classe (Ensino Primário), 1957

 
Com certa ansiedade, eu finalmente entrei para a escola da Damba em Setembro de 1957, sendo a nossa professora na primeira e segunda classes a jovem professora Dona Maria José Aleixo, de quem guardo as mais gratas memórias. Na terceira e quarta classes a professora da escola foi a Dona Ondina Teixeira, que tinha chegado há pouco de Portugal. Eu fui um bom aluno nos quatro anos de ensino primário, mas nunca fui um aluno excepcional.
 
 
O nosso habitual Caderno Diário, onde escrevíamos o que aprendíamos nas aulas ou escrevíamos os nossos trabalhos de casa.
 
 
Como a maioria das crianças desse tempo, a minha Mãe esmerou-se por criar em mim o gosto pela leitura. Assim, ela encorajou-me a ler todos os livros clássicos da literatura infantil, nomeadamente O Gato das Botas, O Barba Azul, O Capuchinho Vermelho, Branca de Neve e os Sete Anões, A Bela Adormecida, Pinóquio, Rapunzel, Alice no País das Maravilhas, As Viagens de Gulliver, e As  Mil e Uma Noites (Sinbad, o Marinheiro; Sherezade), e outros. 
 
De todos os livros infantis que li, o que me deu a melhor lição para a minha vida foi Pinóquio, pois ensinou-me que há sempre uma diferença entre o bem e o mal e que temos sempre um preço a pagar por tudo o que fazemos na vida. Noto aqui que muita da literatura infantil que fui exposto na minha meninice era cheia de proibições, medo, terror, maldade e violência, em contraste directo com a literatura infantil actual.


Pinóquio com orelhas e cauda de burro, pagando o preço dos seus desatinos

 
Quando fiz sete anos, a minha mãe organizou um picnic na fazenda nova que o meu pai começou na região do Gando, situada perto da Mabaia, a cerca de uma hora de viagem da Damba. Esta fazenda que o meu pai começou não era de café, mas sim de fruta (laranja, limão, e maracujá), e ginguba. Para a festa foram convidados os meus amigos da Damba bem como os meus tios Mélita e Agostinho e o meu primo Hugo, que vieram propositadamente de Moerbeck, no Congo Belga (a cerca de duas horas de viagem da fronteira), onde eles viviam, à Damba para celebrar o meu aniversário. 
 
Não sei porquê, mas nunca esqueci os presentes que a minha tia Mélita me deu: uma máquina fotográfica AGFA, tipo caixa, e um par de calças jeans de marca "Lamy" de côr azul, bem como caixas de bombons e amêndoas de chocolate da Bélgica, que eram uma verdadeira delícia.
 
O presente memorável quando fiz sete anos
- uma máquina fotográfica Agfa de caixa

Eu não tenho accesso a fotografias da nossa casa na Damba, mas a nossa casa situava-se na rua principal mais ou menos a meio da vila, com um  pequeno jardim à frente e um quintal muito grande atrás, onde tínhamos também uma horta grande. A casa estava dividida em duas partes principais: a loja, o armazém, e um terreiro pequeno; e a residência da família de forma mais ou menos quadrada, que tinha uma sala de visitas e de jantar e três quartos, com a casa de banho, despensa e cozinha, fora do quadrado principal da residência, havia o quintal atrás muito grande, com uma horta ao fundo, que era demarcado por plantas de chá de príncipe, também conhecido por chá de caxinde, ou citronela, que a minha usava muito para chá. 
 
Os nossos vizinhos eram a família Nicolau Francisco, situados do outro lado da rua secundária. Do lado oposto e mesmo junto à nossa casa era a casa do Sr. Machado (falecido em 1959) e sua esposa D. Maria José (que mais tarde emigrou para Fall River, no estado de Massachusetts, nos Estados Unidos da América). 
 
Em frente à nossa casa, no outro lado da rua não havia nenhuma casa, havia um terreno baldio, seguido de uma barroca profunda, que dava início à estrada traseira que levava ao lado de trás da descascadora de café da firma Pires & Irmão, seguida da traseira do hotel da família Antunes. Continuando-se nessa estrada, ia-se ter à central eléctrica e à Granja.
 
 
Uma preciosa fotografia dos nossos amigos da Damba em 1958 que a Mimi Antunes me mandou. Da esquerda para a direita (crianças somente) - Manuela Zamith, Milú Nicolau Francisco, Carlitos Antunes (olhando para trás), Vitinho Antunes, Mimi Antunes (a falar), a minha irmã Dilar (Funhica), e eu (com orelhas grandes e a precisar de um bom corte de cabelo). Parece-me que a fotografia foi tirada numa festa da escola primária, pois há um mapa de Angola na parede.

 
Os meus amigos mais chegados eram os meus vizinho João e Milú Nicolau e os seus primos Carlitos e Mimi Antunes. Os outros amigos eram os irmãos Orlando e Mário Loures, e os irmãos Martins (José Henriques e Pedro) que tinham chegado há pouco tempo de Portugal. O João Nicolau era o meu grande amigo de aventuras. A Milú veio a casar com o Zé Neves Ferreira, foi professora na Damba até 1975. O João tirou o curso de regente agrícola. O João e a Milú tinham mais irmãos, dos quais apenas me lembro da Fátima, que era um pouco mais velha. Pelo que fui informado, eles todos foram para Portugal em 1975. A Mimi e o Carlitos tinham um irmão mais novo, o Vítor, que apesar da sua tenra idade também alinhava no convívio. Quanto à Mimi, nada soube do que veio a ser a sua vida, contudo, vim a encontrá-la muito recentemente (2024) no Facebook, depois de a procurar durante mais de 63 anos.
 
Tragicamente, o Carlitos Antunes morreu de uma forma de leucemia fulminante que o assolou sem aviso e em menos de seis meses lhe roubou a vida. A morte do meu amigo Carlitos foi difícil para mim, pois além da morte do meu Avô três anos antes, o Carlitos foi o meu primeiro amigo a morrer. Lembro-me que indaguei por algum tempo sem resposta cabal o que era a morte e para onde iam as pessoas depois de morrer. Eu pensei que o Carlitos, como bom amigo que era, decerto tinha ido para o céu. Mas, eu tenho de confessar, eu indagava (e preocupava-me também) se as malandrices que fazíamos poderiam de qualquer forma ter influenciado uma passagem temporária um tanto mais longa pelo purgatório.
 
Era no quintal do hotel da família Antunes que se matava o porco todos os anos. O pobre animal era morto, raspado de todos os pelos, removidas as miudezas, e cozinhado num buraco grande feito no chão e revestido e coberto de folhas de bananeira, sobre uma camada grossa de carvão a arder, tudo por sua vez coberto por uma camada final de folhas de bananeira e de terra. A cozedura do porco durava cerca de um dia, e era uma festa grande para todos na Damba o repartir da carne do animal entre as famílias que participavam na festa. É curioso, mas eu testemunhei anos mais tarde a mesma prática de cozinhar o porco nos Luau das Ilhas do Hawaii.
 
 
Os nossos pais contraternizando na Damba de 1959: à esquerda, o Sr. Antunes, do Hotel (pai da Mimi); o meu Pai ao centro; e o Sr. Cardoso, da oficina de carros, que construiu os karts que nós adorávamos conduzir. Fotografia cedida pela Mimi Antunes (Madeira).
 
 
O dono da oficina mecânica da Damba, o Sr. Cardoso, construiu um mini-carro (tipo Kart), com motor de motorizada, que era a delícia das crianças da Damba, quando ao domingo à tarde nos intervalos dos jogos de futebol cada um de nós podia conduzir o dito kart numa volta ao campo de futebol. 

Uma coisa que nós (eu, a minha irmã Dilar, e os meus amigos João e Milú Nicolau, e Milú e Carlitos Antunes) gostávamos de fazer era na estação própria era ir ao mato e tirar a casca da planta da canela selvagem que era abundante na Damba, que quando a comíamos ficávamos com os beiços (lábios) bem inchados e avermelhados, o que deformava dramaticamente a nossa cara. 
 
Como a maioria dos africanos, nós também  raspávamos e depois mascávamos os quatro caroços da planta que chamávamos noz de coca (makazu), que era parecidos com o caroço de abacate, e tinha um sabor muito especial, pois era um pouco ácido a principio, mas depois se tornava mais deliciosamente seco. 
 
 
Noz de cola (makazu), planta muito comum na Damba, que se mascava

 
Devido ao clima, nós brincávamos descalços durante o dia, e só à noite é que lavávamos os pés ou  tomávamos banho antes de jantar e da hora de dormir. Como tal, não havia maneira eficaz de evitar as famosas matacanhas (ou bitacanhas, ou ainda bitacaias) que se encravavam debaixo da pele nos dedos dos pés, e que cresciam rápidamente. Apesar do risco grande de infecção, nós próprios removíamos as matacanhas com um alfinete em brasa, com muito cuidado para não quebrar o óvulo da matacanha, que tinha que ser tirado em inteiro, para não continuar a crescer no pé.
 
Outro passatempo predilecto que tínhamos era ir à Granja pescar bagres no riacho, ou melhor caçar, pois apanhávamos os pobres peixes à mão. Da mesma forma, nós apanhávamos sapos à mão e apanhávamos pássaros com visgo, ou caçá-los com fisga.
 
A Manuela Zamith e a Manuela Neves Ferreira eram também amigas com quem brincávamos, mas com menor frequência. Na fazenda, como vizinhos tínhamos as irmãs Margarette e a Ana, da família Sousa, que viviam com os seus avós na fazenda (Roça Maria Dora) próxima da Roça Novo Fratel. O filho do Sr. Sousa e pai da Margarette e da Ana, ficou com a alcunha de "Smith", pois embarcou com um amigo escondidos dentro de um caixote num navio que transportava café para Nova Iorque, nos Estados Unidos, onde foram descobertos durante a viagem. Meses mais tarde, eles foram mandados de regresso a Luanda, e depois para a Damba, mas em resultado dessa grande aventura ele passou a ser conhecido por Smith.

Como as demais famílias na Damba, nós tínhamos animais de estimação. De facto, tínhamos a Fiesta, uma cadela muito amiga, um leitão, e um cabrito, os quais cada um de nós (eu, o meu irmão Rui, e a minha irmã Dilar) tínhamos de tomar conta. Eu era responsável por tomar conta e dar de comida ao cabrito (que não tinha nome). Em 1958 houve vários casos de raiva em animais na área da Damba (a raiva nos cães e animais selvagens era endémica na região), pelo que a minha mãe decidiu, como medida de protecção aos nossos animais de estimação e para nós mesmos, mandá-los todos para a Roça Novo Fratel. Umas semanas mais tarde, o meu primo Toneca veio à Damba para nos dizer que o meu cabrito tinha sido comido por uma jibóia (uma cobra muito grande). 
 
Isso aconteceu na mesma altura em que eu tinha acabado de ler o livro do Capuchinho Vermelho, em que o Lobo Mau tinha comido a avó da menina do Capuchinho Vermelho, e que esta pensava  que a avó ainda se encontrava viva dentro da barriga do Lobo Mau. O meu primo Toneca então levou-me à fazenda para me mostrar a jibóia atravessada na estrada com um bojo muito grande na barriga onde se encontrava o malogrado cabrito. Na minha inocência, eu pedi que abrissem a barriga da Jibóia na esperança de encontrar o cabrito ainda vivo na barriga da mesma, tal como a avó da menina do Capuchinho Vermelho na barriga do Lobo Mau. O meu primo Toneca, que já era adulto nessa altura, com algum custo lá me convenceu que o mais certo é que o cabrito já estava morto e que nada se podia fazer. Lembro-me ainda que a pobre jibóia não teve muita sorte, pois foi morta, passando o Jeep várias vezes sobre ela. Hoje penso nisso, na minha inocência, e na nossa crueldade em matarem a pobre jibóia, passando o Jeep várias vezes sobre o seu corpo...

Como disse acima, a minha irmã Dilar, dois anos mais nova do que eu, era a minha principal companheira de diabruras, assim não posso deixar de partilhar um acontecimento memorável. Mesmo em frente à nossa casa havia um poste de iluminação pública, que acendia do lusco-fusco até às dez horas da noite. Durante um certo período do ano, nós tínhamos todas as noites milhões (!) de grilos (nzenze) que voavam incansavelmente à volta da luz do candeeiro. Entretanto, a Dilar tinha aprendido com nosso criado (empregado doméstico) que os nzenze eram um pitéu delicioso, pelo que ela e o criado não perderam tempo nenhum a apanhar quantos grilos puderam e na manhã seguinte assá-los numa frigideira, e depois comê-los de imediato. Eu caí das nuvens quando os vi devorar deliciosamente os ditos grilos assados...

Enquanto crianças, nós não tínhamos uma boa noção de perigo, e que era à medida que íamos vamos crescendo é que nos íamos apercebendo melhor o que era perigoso ou o que era seguro. Pois bem, em penso que nos meus tempos de menino eu não tinha a menor noção de risco. Um dia eu e o meu irmão Rui fomos brincar para o topo de uma montanha de casca seca de bagos de café, que era formada como resíduo (sobreproduto) de uma descascadora de café atrás da casa comercial Pires & Irmão na Damba, que por sua vez era queimada ao vivo gradualmente. 
 
Não ciente do perigo, eu fui logo brincar para topo da montanha mais alta de onde poucos minutos depois caí para o lado em que a casca seca dos bagos de café estava a ser queimada ao vivo, mesmo no meio da boca do vulcão. O meu irmão Rui rapidamente veio e com uma determinação heróica salvou-me imediatamente do inferno em que me encontrava, contudo as queimaduras à volta de todo o corpo e as dores terríveis eram evidência da gravidade da situação. Levaram-me de seguida para o hospital da Damba onde o enfermeiro me tratou (não muito bem) pois encobriu-me horas mais tarde com um cobertor de algodão que se colou à pele nas áreas das queimaduras, e que tive dores horríveis para o descolar mais tarde. Nesta dramática operação de salvamento, o meu irmão Rui também teve muitas queimaduras nas pernas e nos braços.
 

Nkanda, Mukanda, ou Nzo Longo - Rito de passagem à puberdade de rapazes entre os Bassosso, região da Damba, 1953

Tenho ainda para contar outro episódio dramático em que quase morri na Damba. A minha mãe tinha uma amiga na vila, a D. Natalina Zabaleta Cabral, mãe do nosso amigo Beto Cabral, da mesma idade do meu irmão Rui, que tinha passado a tarde connosco num dia em que tinha chovido todo o dia. Ao fim da visita, já depois do jantar, por volta da sete da noite (portanto já escuro), a minha mãe pediu-me para eu acompanhar a D. Natalina a sua casa que era a dois quarteirões de distância. 
 
Nós os dois saímos e começámos a andar com cuidado em direcção à casa da D. Natalina pois estava escuro e o chão estava molhado e quando estávamos quase a chegar ao destino fomos subitamente atacados por intensas chicotadas de choques eléctricos que não sabiam de onde vinham e de que não nos podíamos ver livres. 
 
Depois de dealbar no ar e no chão por mais de alguns minutos, por acção dos choques eléctricos eu fui atirado contra o pneu de trás de um camião que estava parado no outro lado da rua. Por acção do isolamento da corrente eléctrica do cabo eléctrico da rua pela borracha dos pneus, os choques pararam e pude ver o que estava a acontecer à D. Natalina, que continuava a ser electrocutada. Por sorte miraculosa, ele foi atirada minutos depois contra os mesmos pneus onde eu estava, e assim livrar-se dos choques eléctricos. Gritámos os dois bem alto e pedimos socorro aos vizinhos do outro lado da rua, que vieram prontamente para nos salvar. 
 
Alertámos eles sobre o facto de que havia um cabo eléctrico vivo (com corrente) no chão molhado e que tinham de ter muito cuidado até poderem vir até nós. Eles avisaram logo o operador da central eléctrica da vila sobre o que estava a acontecer, pelo que ele desligou a corrente eléctrica para toda a vila até poderem vir salvar-nos. Levaram-nos ao hospital onde reparámos que tínhamos cortes e queimaduras em todo o corpo, o que nos causava dores difíceis de suportar. 
 
No fim de tudo, tivémos sorte em estar um camíão parado à frente do local do acidente, caso contrário, teríamos decerto morrido neste acidente inesperado, e eu decerto não estaria aqui a contar esta história... Soube anos mais tarde que depois dos acontecimentos de Março de 1961, a família Zabaleta Cabral não regressou jamais à Damba, e que tinha emigrado para a África do Sul.

Na casa a seguir à família Machado vivia a família Pereira, da qual apenas me lembro que a mãe tinha ataques de loucura frequentes que muito me chocaram. Depois de algum tempo e de muito sofrimento ela foi transferida para Luanda e internada no pavilhão de psiquiatria do hospital para doenças mentais. Este foi o meu primeiro contacto com pessoas com doenças mentais, e recordo que tinha uma pena profunda da senhora com a doença que a afligiu.
 
 
Capa do Livro de Leitura da 3ª  Classe 1959- "...Lá vamos, cantando e rindo..."

 
Lembro-me que o nosso livro de leitura da 3ª classe tinha uma gravura de uma família de agricultores felizes em Portugal, caminhando jovialmente para casa de pois de um dia de trabalho árduo no calor do verão, já à noitinha com a lua cheia a brilhar no horizonte. Eu tinha uma certa dificuldade em compreender esta gravura pois agosto era um dos meses mais frios do ano na Damba, e a nossa família não trabalhava directamente a terra, o que me levou a ficar mais ciente de algumas diferenças entre a vida em Angola e em Portugal.  
 

Página do Luar de Agosto em Portugal, livro de leitura da 3ª Classe
 
 
Da mesma forma, devido ao nosso clima e vegetação na Damba, nós (eu, o meu irmão Rui, e a minha irmã Dilar) no natal fazíamos um presépio muito bonito e muito grande com musgo (de cor verde muito rica) que era abundante na Damba, com a cena do nascimento de Jesus e a visita dos três reis magos, ao passo que na Europa e na América, como nós víamos nos filmes, o natal só era natal se houvesse uma árvore de natal em casa. É certo que nós fazíamos também uma árvore de natal em nossa casa, mas devido à falta de pinheiros (coníferas), esta era sempre um pouco definhosa. Nós abriamos os presentes (bonecas para raparigas e pistolas de fulminante para rapazes) que o Menino Jesus (não o Pai Natal!) punha no sapatinho na manhã do dia de Natal.
 
Já que estamos a falar acerca da quadra do natal, eu lembro-me que um dia eu e o meu irmão Rui fomos à missa na igreja da Damba. A certa altura da missa o padre muito entusiasmado, depois de ler o evangelho, disse (por engano): "Jesus Cristo, com cinco mil pães e dois mil peixes, deu comida a cinco pessoas!" O meu irmão Rui ao ouvir tamanho erro, começou a rir bem alto, sem poder conter as gargalhadas. O padre parou a missa, desceu do altar e caminhou em direcção a nós, perguntando com um ar severo ao meu irmão Rui por que é que ele estava a rir. O meu irmão, ainda não podendo conter o riso por completo, respondeu um tanto atrevido "Alimentar cinco pessoas com cinco mil pães e dois mil peixes; senhor padre, isso não é nada de especial, até eu o podia fazer!
 
No ano seguinte, na mesma altura do ano, o mesmo padre fez um esforço por dizer tudo corretamente durante a missa, dizendo, desta vez corectamente: "Jesus Cristo, com cinco pães e dois peixes, deu comida a cinco mil pessoas!". O meu irmão Rui, lembrando-se do que se tinha passado no ano anterior, sorriu com ar de esperto. O padre, então parou a missa de imediatoi e perguntou do altar ao meu irmão Rui por que é que ele estava a rir, e se ele não se impressionava com o milagre". O meu irmão Rui, sem perder a compostura, respondeu: "Nada de especial, senhor padre, com o que sobrou do ano passado, até eu também o podia fazer!", ao que se seguiu de imediato uma gargada geral no templo.  É evidente, que nós os dois fomos expelidos imediatamente da missa...
 
O carnaval era uma época festiva muito especial para nós, pois a minha Mãe fazia para nós as mais belas vestimentas. Havia sempre um desfile de carnaval infantil no clube da Damba, em que nós ganhámos várias vezes o primeiro prémio. Eu lembro-me que fui mascarado de Robin dos Bosques, de Sinbad (o Marinheiro), e de Sultão de Bagdad. A minha irmã Dilar mascarou-se de bailarina, de princesa, e dançarina havaiana. 


Entrada da mina de cobre do Mavoio, 1960s


Quando morámos na Damba, nós fizémos várias viagens. As mais próximas e frequentes eram a Maquela do Zombo, onde eu ia cortar o cabelo, pois não havia barbeiro na Damba. A caminho, nós visitávamos a povoação do Quibocolo e a as minas de cobre do Mavoio. Por vezes, de Maquela nós íamos até Moerbeck, no Congo, passando pelo posto de fronteira da Quimbata, para visitar os meus tios Agostinho e Mélita e os meus primos Hugo e Luísa que lá viviam. Para oeste da Damba nós fomos uma ou duas vezes a Luanda, tomando a estrada do Bembe, que ia através da povoação do Lucunga, Bembe, ao Toto (onde havia uma pista de aterragem para avionetes e onde morava o amigo de família Sr. Cid Adão Gonçalves, que era muito conhecido e respeitado por todos), Quibala, até à vila do Ambriz, já na costa atlântica, depois Caxito, Cacuaco e finalmente Luanda. 
 
 
A antiga e famosa Vila do Bembe, 1950s
 
 
Numa dessas viagens, nós rumámos norte antes do Lucunga, e fomos até São Salvador do Congo. Como a maioria das estradas da região, esta estrada não era boa, mas tinha a vantagem de haver menos montanhas e rios a atravessar que a estrada por Carmona (Uíge), pelo que na estação das chuvas esta rota era um pouco mais transitável.


A antiga povoação do Toto com o quartel do exército português ao centro, o Hotel de Cid Adão Gonçalves à esquerda (prédio de dois andares), e a sanzala de reordenamento rural ao fundo, 1960s

 
Nós também íamos com certa regularidade a Carmona (Uíge), passando pelo 31 de Janeiro, Bungo e Vila do Negage. Quando íamos a Luanda, era esta a rota mais comum. Depois do Uíge, passávamos pelo Quitexe, Vista Alegre, Quibaxe, até Caxito, de onde depois seguíamos para Luanda. A vila de Quibaxe era especial para nós, pois era lá que os meus tios Armando e Aurora moravam, pois o meu tio Armando Rodrigues era lá administrador do concelho. É de notar que era também em Quibaxe onde a minha prima Milú, a minha prima preferida, vivia. 

 
Prédio principal da antiga Missão Católica do Bembe, 1960s

 
Numa viagem que fizémos a Luanda, nós regressámos à Damba tomando o combóio da linha de Malange até ao Lucala, passando pelo Dondo e por Vila Salazar (hoje N'Dalatando), depois seguindo norte por carreira até Quitexe, Samba Cajú, Camabatela, Negage e Uíge, onde o meu pai nos foi buscar de carro. Esta foi a minha primeira viagem de comboio. Nós partimos muito cedo, ainda de madrugada cheia de nevoeiro, de taxi duma pensão onde estávamos no Bairro dos Coqueiros junto ao Sporting Clube de Luanda para a estação de caminho de ferro do Bungo, em Luanda. 
 
 
Anúncio do saudoso sabonete Lifebuoy, 1950s

 
Não me esqueço desta primeira viagem de combóio, pois durante a viagem de locomotiva a minha irmã Dilar desmaiou e perdeu os sentidos várias vezes, o que assustou um pouco a minha Mãe. Lembro-me ainda quanto gostosas eram as garrafas de refrigerante Synalco e Mission, sabores de framboesa e ananás, e as latas de leite com chocolate CCMel que vendiam no combóio. Falando em leite e chocolate, eu lembro-me que nós bebíamos leite em pó misturado com água, e não leite normal e fresco, porque não havia na Damba, talvez devido à presença de doença do sono. Ainda me lembro das marcas: leite NIDO da Nestlé, e Leite Primor, dos Açores, que vinham em latas grandes de 2,5 kgs. Do chá, lembro-me do Chá Licungo, produzido pela Companhia da Zambézia em Moçambique.
 


Em Luanda nós ficámos duas vezes em casa da família Noronha Leite, que eram nessa altura um casal antigo de Luanda, já reformados, que viviam na Rua Engenheiro Artur Torres, no quarteirão paralelo ao Cinema Restauração na Avenida do Hospital, no Bairro dos Ferreiras, que tinha a particularidade de ser uma das poucas ruas em Luanda de pedra calcetada, em vez de asfalto. 
 
O Sr. Leite era de linhagem nobre e foi um quadro colonial superior no Estado da Índia durante muitos anos. A D. Fábia, sua esposa e já de certa idade, era muito simpática e sempre pronta a ajudar em tudo o que podia. Eles tinham duas filhas talvez dez anos ou mais velhas do que nós. Uma, a mais velha, trabalhava na Junta do Comércio Externo, e a outra, a mais nova,  era casada com o Osório, que era gerente na Casa Americana e mais tarde na firma Motores de Angola (as firmas que eram os representantes dos carros da General Motors em Angola - Chevrolet e Bedford). Infelizmente já não me lembro do nome delas.
 
O Sr. Leite, mais velho e já de saúde frágil, tinha uma cultura geral muito elevada e sabia muito acerca de Luanda antiga e sobre a história dos portugueses na Índia, mas o que mais me lembro dele é que ele comia omelete de ovos todas as manhãs, cheia de gindungos dos mais picantes que havia em Angola. Só uma vez contei vinte e quatro malaguetas grandes dentro de uma omelete!!!. Isto para mim era impensável, pois eu não aguentava comer uma omelete sequer só com metade de uma simples malagueta não tão picante.

Lembro-me ainda que em 1958 ou 59 nós fomos a Luanda passar as férias de Março. Os meus pais alugaram uma casa na Ilha de Luanda, à esquerda de quem entra, na ponta sul da Ilha e perto do Restaurante Mar e Sol. A casa tinha uma particularidade muito especial, pois tinha uma palmeira muito grande no meio da casa, num pátio interior, e de esta ter sido desenhada tendo em atenção a beleza e utilidade da palmeira na dentro da casa. Apesar de estarmos mesmo à frente da praia, nós evitávamos tomar banho lá porque as águas eram um bocado paradas, preferindo ir para a contra-costa, que tinha ondas grandes.
 
O médico da vila da Damba nessa altura era o Dr. Morais Zamith, que tinha dois filhos da nossa idade, o Jorge e a Manuela (que fazia anos no dia de Natal), e hoje ambos médicos de renome. O Dr. Zamith foi quem assistiu a minha mãe no meu nascimento. Ele era uma autoridade de renome em África no combate à doença-do-sono (tripanossomíase) que é transmitida pela mosca tsé-tsé. Anos mais tarde, ele chefiou mais tarde em Luanda durante muitos anos a Missão de Combate à Tripanossomíase em Angola. 
 
 
A mosca Tsé-tsé, portadora do parasita tripanossoma que causa a doença do sono em animais e pessoas, que influenciou sobremaneira o percurso históricode muitos povos na África Central

 
A região da Damba situava-se na zona endémica da doença-do-sono e da malária em Angola. Embora a doença-do-sono afectasse mais animais, uma das suas formas afectava também pessoas. Como tal, o governo promovia todos os anos a campanha da Brigada da Pentamidina na área da Damba para ajudar a erradicar a doença, o que quase alcançou com êxito em 1975. 
 
A biliose, o  paludismo, a febre amarela, a febre tifóide, e outras doenças tropicais foram também os focos de resitência mais potentes à penetração europeia do território, sendo comum antigamente designar povoações como Cabinda, Ambriz, Luanda, Porto Amboím, Novo Redondo, e Benguela como "cemitério dos brancos".
 
Da mesma forma e juntamente com a malária e outras doenças endémicas, a doença do sono em África foi um dos factores que ao longo dos séculos mais atrasaram o desenvolvimento das sociedades africanas a sul do Sahara, pois não permitiram o uso de animais de tracção como o boi e o cavalo na agricultura e transporte. 

Devemos lembrar aqui que nesse tempo ainda não havia cura para um número grande de doenças endémicas em Angola, e que os serviços de saúde na Angola desse tempo eram ainda muito incipientes, pois a cobertura hospitalar era ainda muito escassa. Esta situação de escassez levava muitas vezes o médico a ter que cobrir uma área muito grande por vezes de população muito elevada, criando assim a necessidade de muito trabalho ter que ser feito pelo enfermeiro. 
 
 
O mosquito Anopheles vector da malária, que tantas mortes causou aos povos africanos a sul do Sahara ao longo da história
 
 
O "hospital" da Damba era assim mais um posto hospitalar que oferecia serviços básicos de medicina geral  (profilaxia e rastreio, maternidade, sem cirurgia ou radiografia) com suporte de enfermagem, do que um hospital propriamente dito, em que o enfermeiro, por exigência da sua experiência e ausência do médico da vila, em certas situações ele se via forçado a substituír o médico.

Uma planta de café, gravura de Olfert Dapper, ca. 1680

 
Na Damba nós conhecemos uma pessoa muito especial, a Dra. Julieta Fatal (1922-2012), casada com o médico veterinário que foi destacado para a área da Damba. Ela viveu em Angola de 1953 a 1975 onde foi professora em vários liceus. Ela era uma poetisa de destaque tendo publicado três livros de poesia. 
 
Devo dizer aqui, que eu vejo a poesia era como um jogo de xadrez jogado acima das nuvens em que a palavra e o sentimento se envolvem numa forma de arte sublime, e eu vejo-a  um tanto em forma matemática como uma geometria não plana a três dimensões: palavra, harmonia, e  sentimento. 
 
A Dra. Julieta Fatal, que era formada em História pela Universidade de Coimbra, tinha uma consciência muito límpida da condição colonial e de classes que se vivia na Angola desse tempo. Lembro-me que às vezes quando se irritava com alguma coisa que os criados (empregados domésticos) fizessem de errado, em vêz de de os chamar matumbos (burros, o que era o termo comum), ela chamava-os "acéfalos"!
 

A poetisa Julieta Fatal (1922-2012)

Um outro membro destacado da administração colonial foi o Dr. Manuel Alfredo Morais Martins,  que foi secretário e mais tarde administrador do concelho  da Damba entre 1948 e 1953, a ainda mais tarde intendente dos Serviços de Administração Civil de Angola, Secretário-Geral de Angola nos governos do Coronel Silvino Silvério Marques e Coronel Reboch Vaz, e Inspector Superior de Administração Ultramarina. 
 
Ainda novo e com base no que aprendeu a lidar com o povo Bassosso da Damba, o Dr. Manuel Alfredo Morais Martins, escreveu um livro ainda hoje fundamental sobre a etnografia Bakongo - O Contacto de Culturas no Congo Português - Achegas Para o seu Estudo, publicado em 1958 pela Junta de Investigações do Ultramar. 
 
 
O Prof. Dr. Manuel Alfredo Morais Martins, antigo Secretário e Administrador do Concelho da Damba (1948-1953)
 
 
O Dr. Morais Martins deixou uma obra notável na Damba durante os cinco anos que serviu como secretário e administrador do concelho, pois foi graças a ele que muitos melhoramentos essenciais para a vida da vila se realizaram, como  o abastecimento de água canalizada à vila, construção do tanque de àgua, iluminação pública, construção do aeródromo e aerogare, e estabelecimento das oficinas de artes e ofícios da administração onde se estabeleceu a famosa oficina de mobílias de verga da Damba. 
 
Foi ainda durante o seu termo que se fundou o posto do Mucaba, e se estabeleceu a nova Missão Católica Feminina da Damba com a sua maternidade e enfermaria. Eu lembro-me bem que já passados muitos anos depois de termos vivido na Damba, os meus pais, especialmente a minha Mãe, falavam sempre com muito apreço sobre a obra feita pelo Dr. Morais Martins na vila e concelho da Damba.
 
O Dr. Morais Martins completou o curso de Administração Ultramarina na antiga Escola Superior Colonial (mais tarde Insituto Superior de Ciência s Sociais e Política Ultramarina, em Lisboa), e doutorou-se depois de 1975 em Ciências Sociais e Política Ultramarina, major em antropologia cultural. Ele leccionou durante alguns anos no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, e ele deixou as suas extraordinárias memórias num livro muito especial e interessante, o "Meu Bornal de Recordações", que vale mesmo a pena ler.


Aspecto de uma sanzala Bakongo, no norte de Angola, ca. 1958

 
O clube da Damba era o espaço social mais activo da vila. Mostravam filmes, davam festas, era o local onde artistas e mágicos vinham dar shows, bem como peças de teatro de fim-de-ano escolar. Foi no Clube da Damba que vi o meu primeiro filme e ouvi o grande declamador João Villaret a declamar o poema épico "O Mostrengo", do grande poeta português Fernando Pessoa. Não esqueço que poucos anos mais tarde o declamador João Vilaret veio a morrer num navio mercante durante a sua viagem de regresso a Portugal, por uma infecção renal não tratada, causada por uma infecção que ele tinha apanhado num tratamento aos calos que tinha sido feito em Nova Lisboa.


O antigo brazão da Colónia Portuguesa de Angola (1950) 

 
Quando os meus pais tinham de saír da vila por alguns dias, nós ficávamos na missão das madres (situada a poucos quilómetros da vila), que nos presenteavam com deliciosos rebuçados italianos e santinhos (cromos de temas e figuras sagrados) muito bonitos, se tivessemos bom comportamento. Uma vez nós ficámos com a Dona Palmira Pinto (esposa do Sr. Pinto, que era muito mais velho do que ela, e  que tinha o mais antigo hotel na vila, situado mesmo ao lado do Clube Recreativo da Damba). O outro hotel era da família Antunes, pais da Mimi e do Carlitos.
 
 
O antigo Hotel do Sr. Pinto e da D. Palmira na Damba. Depois de Maio de 1961 o hotel tornou-se sede do Posto Militar do Exército Português.
 
 
Durante essa estadia em casa da D. Palmira Pinto, lembro-me que num dia de manhã quando acordei ver na cozinha uma ponte (ainda longa de 10 ou 15 cm) que as formigas (kissondo ou bissondo) construiram elas próprias para alcançar o açúcar que estava num jarro de vidro, o que me levou a pensar quanto inteligentes e engenhosos eram os pequenos insectos.

No meu dia-a-dia eu lembro-me que na Vila da Damba em 1958 ou 59, não conseguia compreender porque é que o nosso criado (empregado doméstico) africano de quem já me não lembro o seu nome, talvez da minha idade e ainda menino como eu, meu amigo e companheiro de diabruras sem fim, era "diferente" do meu amigo e vizinho João Nicolau (branco), também da minha idade e companheiro inseparável de aventuras?


Soba da região de Noqui, reconhecido pelas autoridades
coloniais portuguesas, com símbolo de nobreza, 1956

 
Lembro-me ainda da familia africana Paquete Neto, que morava  perto da Escola Primária da Damba, e vivia em regime de residência fixa imposta pelo governo colonial devido a actividades políticas nacionalistas. O Senhor Paquete Neto era já de certa idade e muito erudito. A família era grande e grangeava o respeito de todos na vila.
 

A antiga moradia do Rei do Congo, casa fornecida pelo governo português
em São Salvador do Congo, 1957
 
 
Não posso esquecer ainda hoje de uma viagem que fizemos a São Salvador do Congo (hoje Mbanza Kongo), onde me foi indicado a casa onde vivia o Rei do Congo, D. António III, que tinha falecido havia poucos meses atrás em 1957, o que me deixou um pouco perplexo. 
 
 
Trono e insignias do Rei do Congo, 1647

 
A minha mãe já me tinha falado dele e da glória da sua corte no tempo da chegada dos portugueses ao Antigo Reino do Congo (duque do Sonho em Pinda e Rei do Congo em Mbanza Kongo/São Salvador), mas admirei-me que o Rei do Congo vivia numa casa "normal", uma casa construída pelo Estado, em que o estilo era o mesmo do posto de saúde da Damba, e não num palácio ou mesmo uma cubata maior de soba. Reparei também que nunca tinha visto qualquer referência de destaque a ele ou ao Antigo Reino do Congo na escola, em livros ou em jornais. 
 
 
O Rei do Congo Dom Pedro VII Água-Rosada, falecido em 1955

 
Ainda nessa viagem a São Salvador do Congo (Mbanza Kongo), nós visitámos o lugar onde se    encontravam os túmulos dos Reis do Congo, que vi como uma manifestação vincada do poder político tradicional do povo Bakongo, do qual eu era relembrado com muita frequência nas conversas que ouvia dos meus pais com amigos africanos e família. 


Bilhete postal mostrando os túmulos dos Reis do Congo em São Salvador do Congo                  (Mbanza Kongo), cerca 1911


27 Comments:

Blogger Letinha said...

Xinguila...

Puxa minino!
Adorei ler a tua história...
Sim, que esta... é a TUA História...
A história da tua vida...pessoal, como tão bem defines no inísco...

Vou continuar a utilizar o passe que me deixaste... estou a adorar!

Letinha

12:53 da tarde  
Blogger Letinha said...

Ops...
Há um erro de datilografia...
Queria dizer...início!

Letinha

12:55 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caríssimo Xinguila,
São 01.55 a.m. de 9.9.07. Enviei há pouco para si (agora para o hfponte@shaw.ca) uma cópia da msg que lhe enviei em 18.08.07 (para helder.ponte@gmail.com. Não sei se recebeu alguma delas. Esta é uma nova tentativa para contactar consigo. Se me der o seu nr. de telefone eu telefono-lhe para aí para o Canadá.
Francisco Oliveira
Parede-Concelho de Cascais-Portugal

5:58 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caro Xinguila,
Desculpe não ter indicado o meu mail. Tinha-lhe enviado uma msg minutos antes através do Gmail mas penso ter "dado barracada" e o mesmo apagou-se.Aqui vai:
francisco.foliveira7@gmail.com
Só hoje soube deste seu outro endereço (hfponte@shaw.ca) pelo meu irmão que andou no Salvador Correia (eu andei na Escola Comercial). Obrigado e cumprimentos.
Francisco Oliveira

6:05 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Xinguila,
Quanto mais leio as suas memórias e os seus escritos sobre Angola vontade tenho de ter um contacto seu para lhe agradecer o que me tem feito regressar aos meus tempos de Luanda - Cidade Alta. Nasci no Hospital Central e vivi na Rua do Sol, Rua do Casuno, Rua da Misericórdia e finalmente Bairro do Saneamento! Os meus irmãos frequentaram o Salvador Correia e as minhas irmãs o Guiomar de Lencastre. Para já não acrescento mais. Na minha msg de Agosto vai a resenha da minha vida
E digo para mim mesmo: Temos de nos ter encontrado algum dia pois por onde você andou eu andei. Para a semana vou tentar enviar-lhe de novo a minha msg de Agosto, a partir de outro endereço. Só queria saber se a recebeu.
Saúde e Felicidade para si e Família e Bem-Haja pelo que fez e está a fazer.
Obrigado.
Francisco Oliveira
Parede-Cascais-Portugal
PS-Vou enviar este "comment" (chamemos-lhe assim) via "anónimo" pois tentei fazê-lo a partir do meu endereço no Google e aparentemente não seguiu.

2:10 da tarde  
Blogger Neto said...

Cheguei ao contacto com a tua história pessoal através de um colega e amigo que ma enviou hoje po e-mail. Ainda não a li toda mas, uma conclusão já posso tirar: passamos pelos mesmos locais em Luanda e vivemos algumas histórias parecidas, senão as mesmas. Passar testemunhos é não faltar à História.

2:39 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Afinal aqui é que devia dizer que sou a Gracinha Coelho.
Por engano comentei a seguir.

Ficarão marcas minhas por aqui fora.

beijo grande

8:12 da manhã  
Blogger MariaNJardim said...

Passei por aqui e gostei.
Sou natural de Moçâmedes e hoje vivo em Portugal pelas mesmas circunstancias...
Os meus cumprimentos
www.princesa-do-namibe.blogspot.com

1:11 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

caro xinguila, Foi com saudade que li os pedaços da tua vida.

Bem hajas

12:50 da tarde  
Blogger jose neves ferreira said...

Há neste belo desfiar de recordações,q/dizem muito a quem pertence àquelas esplendorosas terras de Angola, 2 coisas q/ gostava de aludir:1) o amigo e vizinho João Nicolau é,concerteza,o irmão mais novo da m/mulher, filho do Snr. Nicolau; 2)o ataque de 4 de Fevº.1961 por membros do MPLA é uma versão fantasiosa que o MPLA criou, q/também inventou q/o MPLA nasceu em Luanda a 10.12.1956, p/dar um cunho de maior autenticidade nacional e primordial ao MPLA, no confronto c/aUPA(FNLA),q/foi fundada em 1958 no Congo Belga,portanto no estrangeiro. Isto está bem demonstrado p/historiador angolano Carlos Pacheco no s/livro "MPLA-Um Nascimento Polémico";Joaquim Pinto de Andrade, no prefácio deste livro da sua leitura sintetiza:o MPLA foi concebido em Tunes, em Janº.1960 e nasceu em Conakry, em Junho do mesmo ano. Por outro lado, há hoje poucas dúvidas q/o"4de Fevereiro" foi feito pelo ELA-Exercito de Libertação de Angola, sob o comando de Neves Bendinha e sob o patrocínio politico directo do Cónego das Neves.

11:22 da manhã  
Blogger Unknown said...

Carissimo Helder,
Acabei de reler a tua "viagem", e foi com uma enorme saudade desses tempos felizes vividos em Angola, que resolvi deixar aqui o meu obrigada. Como já aqui foi dito, ler estas tuas memórias, sobretudo a parte final, fez-me voltar a percorrer lugares que me são imensamente familiares, e a recordar nomes de pessoas que também conheci.
Um abraço por estes momentos tão gratos que me proporcionaste,
Teresa Mercês de Mello

3:32 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caro Tio Helder,

Olá, tudo bem? Aqui é a sua sobrinha, a Belinha. Gostaria de lhe agradecer imensamente por contar mais sobre Angola, sobre a sua história, sobre a história de nossa família, de nossas vidas. Algumas dessas histórias aqui relatadas a Vovó já havia me contado várias vezes, ouvia tudo com muito carinho e atenção, desde muito pequena, ela me contava exatamente com a mesma riqueza de detalhes, ela sempre se emocionava, ficavámos até tarde da noite, conversando e tomando chá preto com biscoitos, sinto muitas saudades disso. E hoje ao ler tudo isso, fiquei muito...muito emocionada e orgulhosa de você! Muito obrigada por tudo! Estamos com muitas saudades!!! Beijos para você, Tia Estela e para o Marco. Que Deus os abençoem. Beijinhos. Belinha

4:21 da tarde  
Blogger Mário Russo said...

Caro Helder,

Que bom ler a tua/nossa história. Sou um dos manos Russo, de Sá da Bandeira, o Mário da engª civil. O Toninho, de economia, vive no Brasil e já esteve nos EUA. É director de RH da DOW para a América Latina. Estivemos na grande RU4.

Eu vivo em Portugal. Doutorei-me em Civil e sou prof.

Curiosamente estou a escrever-te de Luanda, onde sou prof. convidado da nossa vetusta Universidade, do mestrado em engenharia do ambiente (o 1º da sua história).

É uma cooperação da FEUP com a UAN (Univ Agostinho Neto).

Fiquei emocionado pelo teu relato elegante, claro e sintético.

Parabéns.

Um grande abraço,

Mário Russo
mariorusso@netcabo.pt

10:42 da manhã  
Anonymous Luis Parreira said...

Há diferentes opiniões e atitudes na interpretação que fazemos da realidade histórica da soberania portuguesa em Angola, talvez por eu ser Angolano e ter nascido Português, vivi intensamente os últimos 35 anos, tanto da terra onde nasci como do meu pais que é Portugal, tanto em Portugal como em Angola, vivem pessoas que se um reencontram com a história,e a história de Angola não começou na rainha Ginga, é um paradigma, porque são, negros , mulatos e brancos, e como sabe muitos não fugiram para Portugal em 1975 como era suposto.
Na actualidade muitos portugueses e angolanos, continuam a ter a coragem de discutir, porque razão Portugal abriu mão do direito histórico a Angola, deixando-se levar por uma falácia de alguns poucos que apregoavam que os milhares de brancos ali nascidos não podiam ser angolanos por causa da sua cor da pele sendo isso, uma vergonhosa falsificação da história. Porque os antepassados de muitos negros que hoje se dizem «genuínos» e «donos da terra» ocuparam os territórios que actualmente compõem Angola, pouco antes, e, às vezes, pouco depois de os portugueses terem chegado e, muitas vezes, ao mesmo tempo que os colonizadores. Os únicos angolanos genuínos são, curiosamente, os mais marginalizados dos nativos: os Khoisans bosquímanes e hotentotes ) que se fixaram em Angola há mais de 11 mil anos e os Vátuas que habitaram a sua região situada nos desertos do Namibe há mais de 3 mil anos. Todos os outros povos fixaram-se em Angola a partir dos grandes movimentos migratórios da população banto, que se foram miscigenado e cruzando entre si. Afinal, o melhor mesmo é não confiarmos naqueles que querem reescrever a história e amarmos Angola.

11:16 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

senti minha alma chorar ao ler a sua mensagem de saudade, dor...eu sou a filha dum mlitar que fazia serviço na cadeia de S.Paulo aliais a casa de reclusao e fui testemunha do assalto à cadeia, da gritaria e do tiroteio, dos assaltantes houve duas vitimas e nossas o cabo QUIM, europeio...quantos aos policias estes foram assassinados quando faziam serviço no alto da Maianga...eu era nessa altura uma jovem de 17 anos e filha dum oficial...triste o que aconteceu ,Angola era uma linda terra africana e Luanda uma cidade maravilhosa Leonida Borges

6:28 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

se alguem se recordar de mim me envie uma mensagem...estudei no Liceu Femenino D.Guiomar de Lencastre...vivi no Bairro Militare depois na casa da Reclusao de Luanda...gostava de ir aos progamas Cazumbi etc etcmeu E-mail leonida@gmx.ch...vivo quase hà quarenta anos na Suiça....

6:34 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Caro Xinguila,
parabéns pelo conteúdo e qualidade do blog.
estou pesquisando a historia do município de Viana. Gostaria de apoio/material/fotos antigas.
obrigado !
Alexandre

1:03 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

I сoulԁ not гesist commenting.

Pеrfectly written!

Also viѕit my web site ... v2 Cigs Reviews

3:09 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Artigo interessante que narra a historia pessoal de um participante e agente da historia de Angola. Este artigo ilustra os diferentes papeis que um indiduo pode exercer e as diferentes perspectivas que um mesmo agente pode viver.
No caso do Helder Ponte, teve a amarga experiencia da fazenda para a qual ja nao pode voltar, numa altura em que nao entendia o que estava a acontecer. Nos ultimos anos, teve a oportunidade de participar em debates e accoes politicas alinhadas com o objectivo de restaurar a igualdade de direitos para todos os angolanos.
O seu artigo despertou em mim o desejo de documentar a minha historia e eventualmente po-la a disposicao de outros...

De um natural de Cabinda, residente em Luanda!

5:28 da tarde  
Blogger Unknown said...

Caro Xingula!1
Que descrição fantástica sobre a nossa angola. Voltei para trás no tempo e revivi tudo aquilo pq passámos em tempos de guerra. Muito parecida com o que a minha família passou nessa época. Felizmente todos se salvaram. A fazenda foi toda destruída. Mais tarde o meu pai reconstruiu algumas coisas, e entre os 15/17 anos ainda lá fui passar as férias grandes.
Sabes? tenho menos 3 anos que tu e tb vivi na Vila Damba,dos 5 dias de vida até aos 7,(quando fui estudar para Luanda).O meu avô paterno tinha por lá uma fazenda de café "Roça Maria Dora". Fui para a escola nº8, tal como tu. Os meus avós tinham um apartamento na Mouzinho de Albuquerque.E nessa mesma altura tb ia muito á Maianga a casa dos avós maternos.
O mundo é pequeno realmente. Da Damba tb conheci a família Nicolau, os Narcisos, os Neves Ferreira, O Pires e uns tantos mais de que tb te deves lembrar.Eu sou da família dos Sousa. O meu pai chamava-se Henrique e o avô José António. Eu sou Margareth. Uma Margareth emocionada, com tudo o que acabei de ler. Parabéns e Obrigada.

11:47 da manhã  
Blogger Unknown said...

Gostei do artigo que relata os eventos ocorridos em Angola, e sobretudo do seu posicionamento livre e aberto para uma sociedade Angolana.promissora mas que infelizmente descambou e subverteu as esperanças da sua população de todas as origens e etnias. Levarão uns boas gerações para o país se assumir firmemente, e dou como exemplos o Rwuanda e o Senegal. Já não estaremos cá, mas a seu tempo o caminho africano de desenvolvimento em Angola vingará.

1:34 da tarde  
Anonymous José Barata said...

Ao meu patrício Pontes,
Parece que escrevi demais e só aceita 4096 caracteres e não consigo enviar. Vou fazê-lo em duas ou três partes.
Acabei de ver casualmente este blog e li a sua história que infelizmente é a história de todos nós que nascemos naquele belo País e que tivemos de sair de lá às pressas em 75.
O curioso é que tenho uma vaga ideia de si acho que até fomos pelo menos até ao 3º.ano do Liceu colegas da mesma turma, mas posso estar enganado. Também estudei no Liceu Paulo Dias e Novais, o saudoso liceu só para alunos masculino seu entrei um ano depois de si, mas como disse que reprovou no primeiro ano acho que o encontrei no seu segundo ano o meu primeiro na mesma turma.lembro com saudades de todo esse tempo e dos professores que citou, dos quais também destaco o professor Link do desenho e pintura (acho que todos os que lá passaram destacam esse professor pela forma como passava mensagem e responsabilizava o aluno) e também o Padre (depois Bispo mais tarde) André Muaca, absolutamente fabuloso na forma como dava as aulas de moral tentando recriar com gestos e caretas os momentos em que contava a s passagens bíblicas). Adorei também a prof. Paulina de Francês, embora tivesse dois anos outro professor de Francês que não fala nele mas muito conhecido e que os alunos também gostavam embora tivesse um ar autoritário que era o prof. Almeida; Lembro ainda com saudades a prof. Margarida de Português já veterana na altura mas que povoava os nossos sonhos eróticos de jovens pois andava sempre com umas mini-saias curtíssimas e nós muitas vezes depois das aulas saímos e ficamos perto do carro dela que era um Fiat na altura daqueles que as portas abriam ao contrário só para à ver entrar e apreciarmos a roupa interior (leia-se cuecas) pois apostávamos de que cor seriam. recordo ainda a prof. do canto coral que tinha um Studebaker um carro americano com a roda suplente em cima da mala traseira, e que implicava sempre comigo pois dizia que eu tinha uma voz de segunda fosse lá o que isso fosse e que me chateava à brava. lembro também com saudade o prof.Bento que era da educação física e que ainda tive o privilégio de encontrar já em 1980 por aí aqui em Portugal em Queluz onde ela morava, e que cumprimentei disse-lhe que tinha sido seu aluno no Paulo Dias e ele deu-me um grande abraço e ficamos alguns minutos à conversa.Enfim recordo como um dos meus melhores tempos esses anos no Paulo Dias, quando fiz o 5º ano saí e infelizmente por dificuldades financeiras tive de voltar para Porto Amboim, Kuanza-Sul, onde nasci e viviam os meus Pais, o meu pai era da Sertã e a minha Mãe era de Serpa, já ambos falecidos um com 95 anos e a minha Mãe com 94 anos.

12:03 da tarde  
Anonymous José Barata said...

Parte II

comecei a trabalhar na maior companhia do mundo de algodão que era a Algodoeira Agrícola de Angola (os famosos 3 "aaa" que mais tarde serviu de símbolo para a marca do óleo de girassol que eu vi nascer exactamente nessa Empresa (as primeiras garrafas que saíram das primeiras experiências feitas por volta dos anos 67, era de um líquido quase negro e ninguém na altura ainda tinha a certeza que o óleo de girassol pudesse ser comercializado, mas a verdade é que ele hoje está em todo o mundo. Nasceu ali e nos testes que foram feitos em Portugal na fábrica da Ponte da Pedra no Norte do País, onde era a sede da Algodoeira. Enfim um Liceu e uma turma que tinha gente muito boa, e da influência do prof. Zink ficou-me o amor pelas artes que hoje pinto embora como curioso apenas (ainda estou a trabalhar com 72 anos penso que tenho menos um que si e quando me reformar talvez aos 73 a pintura vai ser o meu passatempo para além de continuar a escrever as minhas memórias sobre aquele grande País que hoje seria uma nação imparável).Daquela turma saiu também, graças ao prof. Zink (pintou as paredes laterais do écran do cinema Império ali para os lados do Pingo Doce o 1º.centro comercial de Angola e fui lá algumas vezes para ajudar nalgumas coisas e vê-lo fazer o trabalho, que sei ainda lá está embora vandalizado e com as cores esbatidas no tempo), um dos únicos artistas plásticos actuais de Angola que tem carreira mundialmente conhecido como pintor e escultor que era o António Monteiro nosso colega daqueles tempos e que agora usa o nome artístico de António Ohm, já com exposições nas maiores galerias mundiais. Dali também saíu o Filipe, não me lembra o resto do nome mas que faz filmes e está ligado as artes cinematográficas e outras tantos que andam por esse mundo fora nas suas várias profissões, como eu que vivo em Portugal desde 1975 (saí de Angola cinco dias antes da independência e nunca mais voltei) e também sou economista e auditor e contabilista, duma empresa ligada ao turismo em Lisboa. Dali também saíu gente ligado ao desporto e lembro-me bem dos vários “tremunos” de futebol (fala do Dedé e realmente era um excelente jogador mas eu acho que eu fui melhor....rrrssss, não ligue é só vaidade) onde fui um excelente executante e lembro-me bem do meu último ano no Liceu fomos a final dos campeonatos da Mocidade Portuguesa com o nosso rival o Liceu Salvador Correia, em pleno estádio dos Coqueiros em Luanda ainda pelado e o Inácio, um nosso colega negro, que gostava de me ver jogar nos tais tremunos aí no Liceu, fez grande força para eu jogar pois era apenas um miúdo ainda com 15 anos (os outros já tinham quase todos 18 ou 19) e ganhámos por 2-1, com um golo do Inácio defesa central que mais tarde foi o primeiro capitão da Selecção de Angola pós independência e de outro avançado negro o Bulica que também fez carreira no futebol lá da terra.

12:05 da tarde  
Anonymous José Barata said...

Parte III

Mas havia bons jogadores no Liceu como o Octávio que depois jogou no Benfica de Luanda, era médio esquerdino, os irmãos Moutinho que depois jogaram no ferrovia de Luanda, o Juca que jogou no FCLuanda, o Dedé, e mais uns quantos que a memória já não recorda. Também joguei Andebol, Basquetebol que também jogamos uma final mas perdemos onde sobressaía o Dinis que também andava no Liceu mas noutra turma (assim gordinho e cabelo alourado e que depois jogou basquete no Benfica de Luanda), joguei andebol mas nunca fui grande coisa e fiz atletismo e futebol de salão, que ainda joguei aqui em Portugal até aos 61 anos quando finalmente acabei com as lides desportivas. Aproveito para fazer uma rectificação ao que diz Angola ser campeão do mundo de hóquei em patins, pois embora bons nessa modalidade (Moçambique era melhor aliás nisso e no basquetebol)), nunca fomos campeões do mundo pelo menos que me lembre. Na vela sim tivemos o Sena que ganhou vários títulos e penso que até uma medalha olímpica. No basquetebol tivemos nos juniores uma excelente equipa que foi campeã nacional em Portugal que era o Vila Clotilde com o Mário Rocha, o Nelson, o Octávio e vários outros e que dava gozo ver jogar, eram excelentes. e penso que o Octávio e o Mário Rocha também foram alunos do nosso Liceu. Foi uma grande escola e dali saíram para o mundo, médicos, economistas, pintores, jornalistas, locutores de rádio (o famoso Luanda 68, 69, 70 e por aí fora) e muito mais gente útil para a sociedade.
Enfim muito gostaria de dizer mas também guardo muita coisa para escrever nas minhas memórias que pode ser um livro, um blog ou outra coisa qualquer e agradeço-lhe o facto de contar a sua história, que me fez recordar emoções passadas e me fez voltar ao passado, o nosso passado muito rico de cultura, alegrias, ensinamentos, vivências e também algumas tristezas poucas, mas muito fortes e para a vida como foi a de ter de deixar a nossa Terra.
Desejo-lhe muita saúde, continue a escrever e a recordar e esteja onde estiver nós os angolanos do antigamente estaremos sempre ligados brancos, negros e mulatos, por laços que nenhuma politica podem destruir porque são laços de irmandade e de igualdade. Obrigado pelo momento. Ah, sou o Barata, José Barata mas todos me tratavam por Barata. Só o Inácio curiosamente me tratava por Zé. Parabéns pelo blog e obrigado.

12:07 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Procurei saber algo sobre famílias de apelido Lencastre que fossem de Luanda ou tivessem lá vivido, devido ao edifício antigo do século XVI ou XVII que dizem sem assombrado e com muita história triste.
Mas o que me apareceu foi este artigo (que é muito bom) mas que nada tem a ver com o que procurei. Porque será ??

5:30 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Meu querido amigo Xinguila, é tão bom saber de ti. Continuo a seguir as tuas falas, essas memórias que nos viram crescer e esses bicos-de-lacre pousados num pôr-do-sol da nossa vida e de Luanda. Aquele abraço sempre nosso e único.

6:29 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Ilustre Senhora
Não me lembro de si, mas despertou a minha curiosidade ao ler que viveu na Casa de Reclusão de Luanda.
Também eu por lá passei, entre setembro de 73 e maio de 74.
Foi nessa época que viveu na CRL?
Perdoe-me, por favor, o atrevimento.
Respeitosos cumprimentos.

4:05 da tarde  

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