1 - Viagem Pela História de Angola

Uma viagem através dos tempos, povos, personagens e acontecimentos que moldaram a História de Angola.

Nome:
Localização: Cranbrook, Colômbia Britânica, Canada

Helder Fernando de Pinto Correia Ponte, também conhecido por Xinguila nos seus anos de juventude em Luanda, Angola, nasceu em Maquela do Zombo, Uíge, Angola, em 1950. Viveu a sua meninice na Roça Novo Fratel (Serra da Canda) e na Vila da Damba (Uíge), e a sua juventude em Luanda e Cabinda. Frequentou os liceus Paulo Dias de Novais e Salvador Correia, e o Curso Superior de Economia da Universidade de Luanda. Cumpriu serviço militar como oficial miliciano do Serviço de Intendência (logística) do Exército Português em Luanda e Cabinda. Deixou Angola em Novembro de 1975 e emigrou para o Canadá em 1977, onde vive com a sua esposa Estela (Princesa do Huambo) e filho Marco Alexandre. Foi gestor de um grupo de empresas de propriedade dos Índios Kootenay, na Colômbia Britânica, no sopé oeste das Montanhas Rochosas Canadianas. Gosta da leitura e do estudo, e adora escrever sobre a História de Angola, de África e do Atlântico Sul, com ênfase na Escravatura, sobre os quais tem uma biblioteca pessoal extensa.

segunda-feira, agosto 21, 2023

1.8 Universidade de Luanda

 

 

 

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22. Estudos Gerais Universitários e Universidade de Luanda 

 
Embora os Estudos Gerais Universitários de Angola (e de Moçambique) tivessem sido fundados em 1962, a Universidade de Luanda em 1969 oferecia cursos em ciências, engenharia, medicina (em Luanda), agronomia e veterinária (em Nova Lisboa), e letras e história (em Sá da Bandeira), e era notória a falta em Angola de uma faculdade de economia e uma de direito. Os alunos que quisessem prosseguir estudos nesses campos tinham de fazer um exame de aptidão à universidade e depois seguir para a Metrópole (Portugal - Lisboa, Coimbra ou Porto) a fim de prosseguir os seus estudos nas universidades portuguesas. 

Os brazões dos Estudos Gerais Universitários e da Universidade de Luanda

 
23. Curso Superior de Economia

O governo português era naturalmente adverso a esses desejos, e assim resistiu durante anos em autorizar que esses cursos fossem leccionados nas colónias. Contudo, em 1969, um grupo de alunos (que nós chamávamos Comissão Instaladora do Curso de Economia da Universidade de Luanda) finalistas do Liceu Salvador Correia (do qual eu fazia parte), de finalistas do Instituto Comercial de Luanda, e um número de alunos militares, resolveu concentrar energias no sentido de convencer o Governador Geral Coronel Rebocho Vaz e o Reitor da Universidade de Luanda Prof. Dr. Ivo Soares da necessidade premente de se criar imediatamente uma faculdade de economia na Universidade de Luanda. Para nosso espanto, o nosso pedido foi ouvido, e em Agosto de 1970, o Curso Superior de Economia foi finalmente estabelecido em Luanda (e em Lourenço Marques (Maputo), Moçambique), e moldado segundo o modelo do Curso Superior de Economia da Universidade do Porto. 
 
Os alunos que seguiam o curso de economia vinham de dois ramos principais: a) os que vinham do 7º ano do liceu alínea G (de Luanda, Sá da Bandeira, Nova Lisboa e Benguela), e b) os que vinham do instituto comercial (Luanda e Sá da Bandeira). Os que vinham do liceu tinham uma base mais para economia (geografia, filosofia, história, matemática, OPAN e Inglês), ao passo que os que vinham dos institutos comerciais tinham melhor preparação em contabilidade e gestão de empresas.
 
Em Julho fiz o exame de aptidão à universidade do qual dispensei das provas orais (só três alunos entre mais de cento e cinquenta fizeram essa proeza), e em Outubro já assistia às primeiras aulas na recém criada Faculdade de Economia, situada num prédio arrendado à firma Mário Cunha que tinha extensivas plantações de café na região do Seles (Cuanza-Sul), junto à Faculdade de Ciências, na sublime Avenida Marginal (Paulo Dias de Novais, de nome oficial de então, e hoje 4 de Fevereiro), junto à delegação da TAP (Transportes Aéreos Portugueses), perto da Ermida da Nazaré
 
 
O Magnífico Reitor da Universidade de Luanda, Prof. Dr. Ivo Ferreira Soares (1917-2009)
 
Durante todo o primeiro ano eu aluguei um quarto no Bairro dos Ferreiras, na esquina da Rua General Alves Roçadas  e a Rua Sousa Lara, perto da Farmácia Africana, na rua Serpa Pinto, já perto do Largo Serpa Pinto. O Bairro dos Ferreiras situava-se entre a Avenida do Hospital e a Rua Serpa Pinto, e era oferecia uma característica única em Luanda - as ruas eram de pedra, e não de asfalto.Os donos da casa (um casal com uma filha de 16 anos) eram muito simpáticos e tomavam bem conta de mim, tudo fazendo para que não me faltasse nada. Contudo, já no fim do ano lectivo, eu sentia-me muito sózinho, pelo que optei em mudar-me para uma residência universitária. O quarto em que morava ainda era longe da Faculdade de Economia (que era na Avenida Marginal junto à Igreja da Nazaré), pelo que eu ia de maximbombo (autocarro) até ao Largo da Mutamba e depois ia a pé até à Universidade, mas à noite (muito à noite, já de madrugada) eu vinha normalmente a pé todo o percurso ou apanhava boleia de carro de um colega.
 
Ainda no primeiro ano eu fiz um exame psico-técnico no gabinete de psicologia da Universidade de Luanda para saber qual era o meu quociente de inteligência e quais os campos de estudo e trabalho que eu deveria prosseguir. Para meu espanto, os resultados dos testes vieram com um QI muito alto de 130 (acima de 98% das pessoas), e com a sugestão de que eu deveria seguir economia ou engenharia mecânica, pois ambos os campos faziam muito uso de capacidade de resolução de problemas (problem-solving skills), aprendizagem rápida, e boa memória, especialmente para números e relações.

Talvez pelo papel activo que tinha desenvolvido na fundação da Faculdade de Economia, fui eleito delegado de curso (e re-eleito no segundo ano), o que era para mim um cargo de grande responsabilidade. Fiz assim o melhor que pude em compreender, representar, defender e avançar os interesses e aspirações dos alunos, e nesse processo tive o privilégio de trabalhar muito perto com o Prof. Dr. Abílio Lima de Carvalho, fundador e director do Curso Superior de Economia, que aos a passos rápidos se ia construindo. 


O Prof. Dr. Padre Abílio Lima de Carvalho (S.J.) (1928 - 2006)


O Prof. Lima de Carvalho, falecido em 2006, era um homem justo, uma mente brilhante, um cientista social de craveira internacional, e um organizador nato. Com ele aprendi muito e com ele travámos juntos umas poucas batalhas com o Reitor Professor Ivo Soares e Vice-Reitor Professor Fernando Real e a burocracia da Universidade das quais o resultado era normalmente positivo para nós, e com ele aprendi melhor qual o papel que a universidade cabia desenvolver na dinamização económica e social de Angola. 
 
O Curso Superior de Economia oferecido na Universidade de Luanda era uma licenciatura que focava em três ramos principais de disciplinas, a saber: economia, gestão de empresas, e tópicos subsidiários. O ramo da economia incluia o conjunto completo de tópicos (micro- e macroeconomia). O ramo de gestão de empresas incluía contabilidade, cálculo comercial, gestão, marketing, e outros tópicos relacionados com a administração de empresas. O ramo dos tópicos subsidiários incluía matemática (análise matemática, funções, algebra linear, cálculo diferencial e integral, estatística, e econometria), ciências sociais (sociologia, antropologia, demografia, e métodos de pesquisa), e direito (teoria do direito, direito das obrigações, direito civil (e de processo civil), fiscalidade e direito fiscal, e direito comercial). O curso tinha a duração de cinco anos, e as disciplinas eram anuais, oferecidas em dois semestres (Setembro-Fevereiro e Fevereiro-Julho), com mais cursos semestrais no quarto e quinto anos. De uma forma geral, os cursos do primeiro ano eram uma introdução geral aos tópicos, e os do segundo e terceiro ano cobriam a análise detalhada dos conceitos e teorias principais, e no quarto e quinto anos cobriam em detalhe os tópicos mais avançados de política económica e planeamento (acção). Os cursos de direito eram anuais nos primeiros dois anos, e depois semestrais, quando estudávamos so diferentes códigos legais (civil, processo civil, fiscal, comercial, e os diversos códigos de impostos).
 
O curso começou no primeiro ano em salas de aula emprestadas pela Faculdade de Ciências na esquina da Avenida Marginal e a Ermida da Nazaré. No segundo anoo Professor Lima de Carvalho conseguiu arrendar dois andares no prédio Mário Cunha, que se situava mesmo ao lado do prédio da Faculdade de Ciências para onde todas as aulas do Curso de Economia foram transferidas. A localização era excelente, pois ficava a dois passos do complexo que abrigava a biblioteca geral, a cantina/refeitório  e o bar/sala de convívio, bem como a sede do CDUA (Centro  Desportivo Universitário de Angola) e do CCUL(Círculo de Cinema Universitário de Luanda), todos localizados no prédio dos antigos armazéns da Mampeza, conhecida antiga firma comercial de exportação de café e importação de carros Mazda, e não muito longe do Centro Médico dos Estudantes da Universidade de Luanda, localizado no próximo quarteirão da Rua Direita de Luanda, e da Reitoria, Secretaria Geral, e Serviços Sociais, localizados no prédio do Hotel Presidente, localizado no Largo Diogo Cão, à entrada da Avenida Marginal.

Nas novas instalações, já tínhamos salas de aulas de muito boa qualidade, afectas a cada disciplina e  cada professor tinha um pequeno espaço próprio, existindo ainda um secretaria da faculdade e uma biblioteca própria. A biblioteca começou a funcionar com algumas dezenas de livros, e rapidamente cresceu para alguns milhares. No terceiro ano, com uma nova leva grande de alunos a Faculdade de Economia arrendou mais dois andares no prédio Mário Cunha, para acomodar o dobro do número de alunos e cadeiras.

É de notar que a composição do corpo discente da Faculdade de Economia era um pouco diferente das outras faculdades, pois embora a maioria dos alunos fossem jovens dos 18 aos 25 anos que atendiam às aulas ful-time, havia também um número muito grande de alunos já não tão jovens que eram estudantes trabalhadores que já tinham familia ou que se encontravam a prestar serviço militar. Este número elevado de alunos já não jovens era devido à procura não satisfeita de o Curso Superior de Economia só ter sido criado cerca de seis anos depois dos outros cursos oferecidos pela Universidade de Luanda.
 

Edifício da antiga Livraria Lello, Luanda, 1960s


É ainda importante referir que nós (alunos do Curso Superior de Economia) tínhamos grandes dificuldades em obter os livros recomemndados para a maioria dos cursos, pois o mercado livreiro local não estava perparado para servir as necessidades de uma nova faculdade em Luanda. As livrarias Lello, ABC, Argente Santos, e o Centro do Livro Brasileiro em Luanda eram os principais locais onde se podia comprar alguns livros, mas por norma tínhamos de os mandar vir de Portugal. É certo que tínhammos uma pequena biblioteca na Faculdade de Economia que tinha alguns dos livros adoptados para alguns cursos, em quantidade reduzida e nunca em quantidade suficiente para satisfazer a procura. A esta grave limitação tínhamos de adicionar o factor custo, pois os livros eram normalmente muito caros, e ainda o factor linguagem, pois para além de português, tínhamos de ler (e compreender) livros em inglês, espanhol e francês. Para colmatar estas deficiências, a Biblioteca Geral da Universidade de Luanda tinha um gabinete de reprodugrafia, onde eram policopiados os capítulos mais importantes das obras mais carentes, e que os alunos podiam comprar a um preço acessível. Como exemplo, o livro principal para o curso de Economia I, Lições de Economia, do Prof. Dr. Francisco Pereira de Moura só foi disponível no mercado local um ano depois de termos concluído a cadeira.


24. Programa do Curso Superior de Economia, Disciplinas e Professores
 
O ramo de análise económica começava com um curso de introdução à economia - Economia I - (baseado nas lições do livro do Prof. Dr. Francisco Pereira de Moura (do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, da Universidade Nova de Lisboa), Lições de Economia, e no livro clássico  Economia, do Prof. Paul Samuelson, professor do MIT (Massachusetts Institute of Technology) e prémio Nobel de Economia, que era nessa altura o melhor livro de introdução à economia, lecionado pelo Dr. Mário Vicente Arraia
 
No segundo ano o foco de Economia II era em macroeconomia e análise do rendimento nacional, baseado no livro do Prof. Francisco Pereira de Moura, Análise Económica da Conjuntura, e do livro do Prof. Jan Pen (Universidades de Groninger e Livre de Bruxelas), Moderna Teoria Económica (uma excelente introdução à economia keynesiana), e do livro clássico do Prof. Gardner Ackley, da Universidade de Michigan, Teoria Macroeconómica. Em termos de economia internacional, nós seguimos o livro clássico Economia Internacional do Prof. Charles Kindleberger (do MIT). No tópico de teoria e política monetária, seguimos o texto Moneda Y Credito do Prof. James Duesenberry, da Universidade de Harvard. A cadeira de Economia II foi lecionada pelo Dr. João Manuel Serrão, da Inspecção Geral de Créditos e Seguros.,
 
No terceiro ano o foco de Economia III era na teoria e processo de desenvolvimento económico, lecionado outra vez pelo Dr. Vicente Arraia, recorrendo a um maior número de obras fundamentais, das quais destaco os livros do Prof. Celso Furtado (economista brasileiro de renome internacional, um dos meus heróis), Teoria e Política do Desenvolvimento Económico, do Padre J. M. Albertini, Les Mécanismes du Sous-Dévelopment, dos profs. Gerald Meier e Robert Baldwin, Desenvolvimento Económico, Teoria, História, e Política, a obra clássica do Prof. Arthur Lewis (prémio Nobel da Economia), A Teoria do Desenvolvimento Económico,  a obra do Prof. W. Rostow, Etapas do Desenvolvimento Económico, a a obra do Prof. Everett Hagen, Economia do Desenvolvimento, a obra do Prof. Simon Kuznets (mais tarde prémio Nobel da Economia), Aspectos Quantitativos do Desenvolvimento Económico, e a obra fundamental do prof. Joseph Schumpeter Teoria do Desenvolvimento Económico. A juntar a estes livros todos, nós prestámos muita atenção ás teorias e políticas de desenvolvimento económico no resto de África,  e na América Latina de cariz marxista e não-marxista, com especial atenção dada à teoria de dependência, formulada na década de cinquenta na América Latina por Ruy Mauro Marini, Raul Prebish, Celso Furtado, Caio Prado Junior, Joan Robinson, Frantz Fanon, Andre Gunder Frank, Samir Amin, Paul Sweezy, Paul Baran, Maurice Dobbs, Charles Bettelheim, Arghiri Emamanuel, Walter Rodney, Christian Palloix, e Emmanuel Wallerstein. Esta foi a cadeira que mais gostei de todo o curso.
 

O grande economista brasileiro Celso Furtado (1920 - 2004)


Ainda no terceiro ano tínhamos a cadeira de Finanças Públicas lecionada pelo Dr. Alberto Ramalheira, director do Instituto de Crédito de Angola. Os livros para este curso eram Public Finance in Theory and Practice, dos profs. Richard Musgrave (da Universidade de Harvard) e sua esposa prof. Peggy Musgrave (da Universidade da Califórnia - Santa Cruz), e Governmet Finance - Economics of the Public Sector, do Prof. John F. Due (da Universidade de Illinois) e Prof. Ann Friedlander (do Massachsetts Institute of Technology). O Dr. Alberto Ramalheira era uma pessoa extraordinária pois tinha o dom de poder transmitir ideias e conceitos difíceis numa forma fácil e de atraír (e manter) o interesse do estudante ao tópico em causa, e encorajar o estudante a aprender mais. Eu gostei muito deste curso. Nos anos seguintes, a cadeira de Finanças Públicas foi lecionada pelo Dr. António Teixeira (Teixeirinha), que também grangeou o interesse e aplauso dos alunos.
 
No quarto ano o foco de Economia IV era o estudo do subdesenvolvimento económico, baseado na obra fundamental dos profs. A. N. Agarwala e S. P. Singh, A Economia do Subdesenvolvimento. Este foi um curso mais aplicado, se bem que tivessemos coberto os contextos históricos e teóricos do subdesenvolvimento, economias externas e desenvolvimento equilibrado, e em especial os diversos modelos de desenvolvimento económico. Este curso foi também lecionado pelo Dr. Vicente Arraia.

No quinto ano, o foco foi em planeamento e desenvolvimento económico, lecionado pelo Dr. Manuel Serrão e pelo Dr. Zenha Rela, falecido recentemente. O Dr. Zenha Rela, que trabalhava para os Serviços de Planeamento e Integração Económica, e lecionava no Instituto Pio XII (para a formação de assistentes sociais) apesar de não ser economista por formação, era talvez a pessoa que melhor conhecia a economia angolana, e foi um privilégio para mim ser seu aluno. Este foi o único curso que tivémos sobre a economia angolana. As obras principais incluiam o livro do Prof. Arthur Lewis (da Universidade de Princeton, e prémio Nobel da Economia), Política Económica - A Programação do Desenvolvimento, e a obra do Prof. Louis Walinsky, Planejamento e Execução do Desenvolvimento Económico, e a obra do Dr. Walter Marques, Problemas do Desenvolvimento Económico de Angola. Este curso focou também nos documentos e stratégias principais do III e IV planos de fomento de Angola. Ao nivel da economia regional, o Plano Calabube (sobre o distrito de Cabinda) foi analizado em detalhe.

O ramo de gestão de empresas começava com dois cursos semestrais de introdução à prática comercial (cálculo comercial e fundamentos de contabilidade), chamados Propedêutica Comercial I e II, seguidos de um curso anual em contabilidade geral no segundo ano, e contabilidade analítica (de custos) no terceiro ano, por sua vez seguidos de cursos semestrais específicos à administração de empresas, como marketing, gestão de pessoal, gestão financeira, investimentos e análise financeira de projectos. O Dr. Francisco Manuel Reis, gestor do Banco de Fomento Nacioanal, foi quem lecionou a maioria dos cursos de contabilidade, sendo os outros cursos lecionados por licenciados com experiência na matéria em estudo, normalmente recrutados nas maiores empresas locais. O curso de economia de empresa foi dirigido pelo Dr. Henrique Constantino, e o curso de Economia IV foi lecionado pelo Dr. Victor Correia. O curso sobre Política Económica foi dirigido pelo Dr. Jorge Braga de Macedo, uma mente brilhante que trouxe uma pespectiva muito mais aberta sobre os diversas opções de desenvolvimento económico.
 
Os ramos subsidiários (disciplinas em matemática, ciências sociais e direito), incluíam principalmente conceitos fundamentais no primeiro e segundo anos, pois estes eram necessários para uma compreensão mais completa dos ramos de economia e gestão de empresas, e tópicos mais específicos. À medida que os estudos avançavam, tínhamos alguns cursos em profundidade nos anos mais avançados, como era o caso em direito, onde tínhamos um conjunto de cursos que visava o estudo individual de vários códigos legais, e em matemática, onde tínhamos uma cadeira de estatística no terceiro ano e outra de  Econometria no quarto ano.
 
Assim, o curso de introdução às ciências socias era somente oferecido no primeiro ano, sendo lecionado pelo Prof. Dr. Lima de Carvalho, que trouxe à universidade de Luanda o melhor em conhecimento em ciências sociais ensinado nas melhores universidades. Este curso não tinha um livro específico pois assentava em fotocópias de capítulos essenciais de um grande número de obras fundamentais (em várias línguas) dos melhores professores e pensadores, incluindo Émile Durkheim, Franz Boas, Max Weber, Marcel Mauss, Talcott Parsons, C. Right Mills, Florestan Fernandes, Misha Titiev, Claude Levi-Strauss, Bronislaw Malinowski, A. R. Radcliffe-Brown, Pitirim Sorokin, Melville Herskovits, e Marshall Sahlins. 
 
Tornou-se evidente muito cedo que apenas um curso introdutório às ciências sociais no curriculum do Curso Superior de Economia não era suficiente para os alunos terem uma compreensão completa da realidade social e económica de Angola, e que cursos em sociologia e antrpologia eram necessários no curriculum do curso, falta que o Prof. Dr. Lima de Carvalho tentou colmatar trazendo à Faculdade de Economia especialistas de renome como o Dr. José Redinha, o Dr. Mesquitela Lima, o Dr. Ramiro Ladeiro Monteiro, o Dr. Zenha Rela, o Dr. Carlos Ervedosa, o Prof. Dr. Henrique de Barros, e o Prof. Dr. Alfredo de Sousa, que compartilharam o seu saber connosco em forma de cursos breves de dois a três dias nos tópicos da sua especialidade. De grande utilidade foi ainda um curso lecionado pelo Prof. Dr. Enes sobre Metodologia de Pesquisa e como Preparar e Apresentar uma Monografia, que era de grande utilidade para todos nós.

 
O grande estudioso dos povos e culturas de Angola, etnógrafo José Redinha, 1960s

 
No ramo de matemática, o programa começava com um curso em análise numérica (funções, séries, e algebra linear) no primeiro ano, seguido de um curso sobre cálculo diferencial e integral no segundo ano, ambos lecionados pelo Dr. Gerberto Dias, após o qual tínhamos um curso em estatística, e no quarto ano tinhamos outro em econometria. No segundo ano tinhamos um curso prático de programação de computadores (linguagens COBOL e FORTRAN). Este curso era oferecido pela Faculdade de Ciências, e nós tínhamos accesso ao laboratório do computador a certas horas do dia (e da noite), onde preparávamos os cartões perfurados com as instruções para o computador IBM UNIVAC processar.O curso de Econometria foi lecionado pelo Prof. José Marques Henriques. No terceiro ano tínhamos um curso anual de Estatística que foi dirigido pelo Prof. Manuel Murta. 
 
Eu reparei que no campo da matemática, nós tivemos bons professores que eram licenciados em matemática mas com pouco conhecimento e experiência em economia, o que criava um certo desfazamento entre o que tínhamos realmente de saber em economia matemática e o que o professor em matemática achava que tínhamos de aprender. Para acentuar mais este desfazamento, as matérias explicadas não eram apresentadas num contexto de economia (sem exemplos concretos relacionas com economia ou finanças), como foi o caso específico do curso de estatística lecionada pelo Prof. Manuel Murta, (talvez a disciplina mais difícil do curso), que foi organizado e explicado num formato estrito de matemática teórica clássica, cheio de teoremas exotéricos e complicados, mas pouco relacionados com estatística aplicada à economia, demografia, ou gestão de empresas.
 
No ramo de direito, o programa começava com um curso geral de introdução ao direito e às leis, lecionado pelo Prof. Dr. Augusto Penha Gonçalves, juiz desembargador do Tribunal da Relação de Luanda, seguido de um curso sobre direito das obrigações (no segundo ano), seguido por sua vez por um curso sobre o Código Civil e outro sobre o Código do Process Civil, todos lecionados pelo Prof. Dr. Penha Gonçalves. No quarto e quinto anos, os tópicos de direito incidiam sobre direito comercial, lecionado pelo Dr. Gândara de Oliveira, e direito fiscal, com particular atenção nos diferentes códigos de imposto em vigor em Angola nesse tempo. A maior parte deste cursos foram lecionados pelo Dr. Fernando Mendes, do Instituto de Crédito de Angola.
 
Eu gostei mais das disciplinas de economia do que das disciplinas de administração e gestão de empresas. De facto, os cursos de economia incorporavam os conhecimentos mais avançados da época dos pensadores mais conceituados no mundo, ao passo que em termos das cadeiras do ramo de gestão de empresas, passados muitos anos e tendo em conta o que aqui estudei e aprendi no Canadá, eu sou forçado a concuir que o ramo de gestão de empresas era muito leve e fraco, pois confesso que aprendi muito mais no primeiro dos cinco anos de aprendizagem no Canadá do que aprendi em todos os cinco anos na Universidade de Luanda. Noto ainda que faltava no programa do curso de economia um curso sobre história económica, um curso sobre métodos quantitativos, um curso sobre comportamento organizacional, um curso em economia regional e sectorial, e também um curso sobre economia do ambiente. A estrutura do Curso Superior de Economia era rígida, pois obrigava todos os alunos a completar uma série de disciplinas prescritas no plano do curso, e não dava a oportunidade aos alunos de escolherem cursos electivos mais em sintonia com o plano de estudos para cada aluno.


Padre Carlos Estermann (1896-1976), grande antropólogo dos Povos do Sudoeste de Angola


Em Maio de 1972, a Faculdade de Economia ofereceu aos seus estudantes e ao público em geral os primeiros colóquios sobre temas sociais, dirigido pelo Dr. José Redinha, notável etnografo angolano de renome internacional, sobre o tema "Introdução ao Estudo das Sociedades Tradicionais de Angola". No mês seguinte, Junho de 1972, fizémos a primeira visita de estudo à Missão de Extensão Rural no Andulo e Bailundo (no Bié, coração de Angola), que era dirigida pelo Engenheiro Herman Possinger. A Missão de Extensão Rural de Angola representava na altura a tentativa mais sistematizada sobre o trabalho de mobilização social das populações rurais no continente africano. Ainda no mesmo ano, 1972, o Prof. Franz-Wilhelm Heimer, da Universidade de Friburgo, Alemanha, dirigiu um curso breve sobre "Teoria e Métodos de Investigação Social".
 
Em 1973 realizámos outra visita de estudo, viajando num avião NordAtlas (Barriga de Ginguba) da Força Aérea Portuguesa, desta vez à capital do distrito do Uíge, principal região produtora de café em Angola. Além da visita a uma roça de café da firma RIMAGA, esta visita de estudo incluiu também uma breve visita à grande fazenda de criação de gado bovino dos Irmãos Costa, na vila do Bungo, não muito longe da Vila da Damba, onde passei a minha meninice. A fazenda de criação de gado dos Irmãos Costa do Bungo era uma das maiores empresas de criação de gado em Angola desse tempo, possivelmente apenas ultrapassada pela Diamang na Lunda. Integrado no âmbito do programa de Economia III (Teoria e Política do Desenvolvimento Económico), o Prof. Lima de Carvalho convidou o Prof. Alfredo de Sousa, Professor catedrático da Universidade Técnica de Lisboa  para dar um breve círculo de lições sobre "Economia e Sociedade em África". O Prof. Alfredo de Sousa  foi um economista português de renome internacional, lembrado por muitos pela sua acção no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e Embpresa, e também profundo conhecedor da realidade económica e social africana. Infelizmente, o Prof. Alfredo de Sousa faleceu precocemente, quando ainda tinha muito mais para partilhar o seu conhecimento.

Ainda em 1973, a Faculdade de Economia ofereceu mais três colóquios/seminários. Desta vez, coube ao Dr. Mesquitela Lima, antrpólogo de craveira internacional muito conhecedor das culturas tradicionais de Angola, a responsabilidade de desenvolver e ministrar um curso especial sobre "Angola: Tradição e Modernismo". Em Junho, o Dr. Ramiro Ladeiro Monteiro liderou um seminário internacionalmente aplaudido sobre "Os Muceques de Luanda - Alguns Aspectos Socioeconómicos" e meses mais tarde, já no ano lectivo seguinte, o Prof. Henrique de Barros, professor catedrático do Instituto Superior de Economia, em Portugal, ministrou um curso breve  sobre "Os Grandes Sistemas de Economia Agrícola" destinada aos alunos do Curso Superior de Economia e nos mesmos moldes (embora mais breve) , aos alunos do Curso Superior de Agronomia e Silvicultura, algumas semanas antes em Nova Lisboa. Todos estes cursos/seminários/colóquios de três ou quatro dias de duração foram muito concorridos, tendo sido abertos ao público em geral, embora mais orientado aos alunos do Curso Superior de Economia.

Em Março de 1974, os alunos do 4º ano fizeram uma visita ao Brasil e à Argentina, passando pela África do Sul, pois nessa altura não haviam vôos directos entre Angola e a América do Sul. Eu não pude ir, pois em Julho tinha de começar a recruta como oficial miliciano na Escola de Aplicação Militar em Nova Lisboa (EAMA). Esta viagem de curso foi memorável pois permitiu aos alunos verem (e sentirem) em primeira mão outros modelos de desenvolvimento económico e social de países mais avançados. A viagem demorou cerca de três semanas, e os alunos estavam de volta a Luanda poucos dias antes da eclosão do golpe de 25 de Abril.



Marisco, cerveja, e Coca-Cola - Restaurante da Restinga, na Ilha de Luanda
da Esquerda para a direita: Ita Delgado, Toninho Delgado, Ema Fernandes, Gutó Monteiro,
Eu (Helder Ponte), Estela Monteiro, Rui Altão, e Gracinha Coelho, Abril de 1973


25. Alargar Horizontes
 
No Segundo ano (1971) mudei de alojamento, do quarto que arrendava na Rua Alves Roçadas (perto da Faarmácia Africana, na Rua Serpa Pinto) para a Residência Universitária nº 2, situada na Rua José Oliveira Barbosa, entre o Bairro da Maianga e o Bairro de Alvalade. Deixei assim o ambiente um tanto solitário em que vivia e vim juntar-me a um grupo diverso de colegas e amigos muito activo. Na residência universitária tinhamos quarto compartilhado com outro estudante, roupa lavada, e pequeno almoço, para o que pagávamos uma mensalidade de $800.00. A residência era gerida pela governanta Dona Conceição Madruga, que era natiural dos Açores, e de quem guardo as mais gratas recordações. Nós tomávamos o almoço e o jantar na cantina da Universidade (na rua Direita de Luanda, perto do edifício da Faculdade de Ciências, junto à ermida da Nazaré), pelo o que pagávamos $10.00 por refeição (de $6.00 quando entrei em 1970). A qualidade da comida na cantina não era má (sopa, escolha de prato do dia, pão, e fruta ou doce), mas também não era o que mais desejássemos na vida.
 
Apesar da heterogeneidade do grupo (ou talvez por isso mesmo), nós dávamos-nos todos muito bem, criando um espírito muito solidário de répública estudantina, em que se pode dizer que o termo "um por todos, todos por um" se aplicava por completo. Os colegas da residência incluiam o Beça Peixoto da Gabela, que estudava medicina, com quem eu partilhava o quarto, o Toninho Delgado do Lobito, de engenharia de minas; e o Víctor Valente do Dundo, de engenharia mecânica; o Vasco Afonso (Vascão) do Lobito, e o Óscar (Ligório da Piedade Alavares Furtado), de Benguela, que estudavam engenharia Civil; e o China, de Nova Lisboa, de engenharia de minas; o Bolacha (Setas Pires) de Nova Lisbo, que estudava engenharia civil; o António Castro e Silva (Xibias) de Nova Sintra, que estudava engenharia de minas; o Peter (José Eduardo Lucas Pedro), da Chipeta (Bié), o Jorge Pestana, de Catete, que também estudava medicina; o Carlos Guerra (Guerrita) de Cabinda, que estudava medicina, o Aires do Espírito Santo de Malange, que estudava medicina; e o José Páscoa, também do Dundo, que estudava engenharia civil. Eu era o único aluno de economia na residência, e era também o único que tinha uma estante de livros razoável, para além dos livros de studo. 
 
Cabe aqui referir que nós bricávamos muito (miúdas - haviam duas residências universitárias femininas não muito longe da nossa - praia, sapateiras/carangueijo de Moçamedes, king (jogo de cartas), rallies e gincanas de carro, desporto, etc.) mas também estudávamos muito. De todos os colegas salientava-se o Xíbias (de Nova Sintra/Catabola), que foi talvez a pessoa mais inteligente que conheci na minha vida, pois enquanto que para os outros tinham de estudar um tópico durante cinco ou seis horas, o Xíbias só tinha que rever a matéria em menos de 15 muinutos, e reter tudo o que aprendeu, não só para um exame, mas para o resto do tempo. Ele tinha também uma capacidade invulgar de explicar conceitos e processos complicados duma forma clara, fácil e acessível. Depois de uma vida notável como engenheiro de minas e professor universitário, o Xíbias foi ministro da Economia e do Mar, do governo socialista de António Costa (2022-24), em Portugal.
 
No Terceiro Ano deixei de ser delegado de curso e dediquei-me a fundo à obra de expandir os serviços de alojamento da Universidade, que em três anos do meu trabalho árduo (e de mais alguns) cresceu em termos de lugares em residências universitárias de seis alunos inicialmente para mais de duzentos três anos mais tarde, o que ainda era ainda um número muito aquém das necessidades dos alunos que vinham do interior para Luanda seguir os seus estudos. Assim, mudei para a Residência Universitária nº 4 (RU4), na Rua Coronel Artur de Paiva, à entrada do Bairro do Maculusso, com a capacidade para 42 alunos. As instalações desta nova residência universitária eram muito melhores do que s as anteriores, pois o prédio tinha sido inicialmente planeado para uma residência para professores visitentes e temporários. A RU4 era gerida (com grande eficácia) pela Dona Ermelinda Ferreira, que para o efeito tinha sido transferida da RU1, no Bairro de Alvalade.
 
Ainda durante esses três anos, e talvez porque era estudante de Economia, fui eleito Presidente do Conselho Fiscal do nosso saudoso CDUA (Centro Desportivo Universitário de Angola). Eu frequentava muito o Círculo Universitário de Cinema que funcionava no primeiro andar do prédio da cantina (refeitório) da Universidade. Havia nesse segundo andar uma varanda muito ampla e comprida que era o nosso lugar predilecto para discutirmos política e onde resolvíamos os problemas mundiais mais graves e prementes, ao mesmo tempo que jogávamos uma partida de ping-pong. A biblioteca e o centro de reprodução bibliográfica estavam também nesse prédio (o antigo prédio da Mampeza) , mas e situavam-se no lado do patio oposto ao centro de convívio/bar. Havia ainda o Orfeão Universitário de Luanda (OUL) que oferecia saraus culturais e de música coral de grande qualidade, e a Secção de Intercâmbio e Turismo Universitário de Angola (SITUA), que embora muito activo em viagens de fim de curso, era menos conhecida.


Residência Universitária Nº 4,
na esquina da antiga Avenida Coronel Artur de Paiva e Rua Tavares de Carvalho, em Luanda


Ainda nesse ano completei o meu primeiro estudo sobre a Indústria Extractiva em Angola, que ganhou o primeiro lugar do prémio institucionado pela Direcção dos Serviços de Economia e destinado aos alunos da Faculdade de Economia da Universidade de Luanda. Este estudo abriu-me os olhos ao peso da Diamang em Angola, que de facto era um estado dentro do estado. Lembro-me que o prémio de vinte contos ($20.000 escudos) dos Serviços de Economia era relativamente grande (para mim, pelo menos como estudante), o que me levou a comprar uma calculadora científica com um display de 12 dígitos, que me custou bom dinheiro. No segundo ano fui escolhido para colaborar na prestigiosa revista de actividade económica "Prisma" como assistente de pesquisa. Ainda no segundo ano fizemos um projecto de grupo (eu, o João Freitas Basílio, o António  Carranca, o Manuel Ribeiro, e o José Neves, e a Manuela Moura) sobre a População de Angola (entre 1930 e 1970) que despertou em mim a importância (e o interesse) pela demografia e por métodos numéricos e estatística. Infelizmente, não havia ainda recenseamento da população de Angola em 1930 e os dados do Censo de 1970 nunca foram publicados pelos Serviços de Estatística, o que tornou a nossa tarefa um pouco mais difícil de realizar, pois não pudémos comparar um número grande de variáveis, especialmente as de maior detalhe, ao longo do início e fim do período de estudo (1930 - 1970).
 

Eu, o Pensador, num pic-nic na Barra do Dande,
com a Isabel Andrade a "pôr-me os palitos"(1973)
 
 
Já desde os tempos de liceu que eu sentia um interesse especial pela cultura angolana. Posso mesmo dizer que fui um grande subscritor (a nível pessoal) do movimento "Vamos Descobrir Angola" iniciado pela geração de Viriato Cruz. Assim, em termos de literatura eu era um ávido leitor  dos textos de Alberto Lemos, de Luandino Vieira, das crónicas de Ernesto Lara Filho (o Seripipi Angolano) no jornal ABC, da poesia de Tomás Vieira da Cruz, de Alda Lara, de António Jacinto, de Agostinho Neto, e de Alexandre Dáskalos, eu "devorava" tudo quanto que fosse literatura angolana, em especial livros da Editorial Imbondeiro de Sá da Bandeira, que tinham sido proibidas pela censura do governo colonial. 

Autoretrato do Pintor Albano Neves e Sousa (1921 - 1995)


Ainda no campo da cultura, devo mencionar que eu tinha também um interesse muito especial pela pintura angolana pois admirava muito a pintura de Albano Neves e Sousa e de Mário Araújo (que foi um amigo muito chegado do meu pai) e de quem tenho a aguarela grande que sempre mais gostei em toda a minha vida - Casa de Ciganos no Bairro Operário - que é uma cena do quotidiano à noite no Bairro Operário em Luanda. Em termos de música, como posso esquecer as músicas do Duo Ouro Negro, do N'Gola Ritmos, da Lily Tchiumba, de Conchita de Mascarenhas, de Sara Chaves, da Dinah Jardim, Bana e Voz de Cabo Verde e de tantos outros?...Por outro lado, a influência da música de protesto contra a guerra colonial era o centro dos nossos interesses na UL, em especial as belas baladas de José Afonso (entre as quais "Traz um Amigo Também") e de Adriano Correia de Oliveira (entre as quais "Menina dos Olhos Tristes") captavam o sentimento da guerra colonial que se vivia no momento.


O poeta Tomás Vieira da Cruz (1900-1960)


Durante o terceiro ano (1973/74) estive doente a maior parte do ano. Depois de muitos testes para encontrar a doença, os médicos apuraram que tinha sido causada por ter bebido leite que não tinha sido propriamente pasteurizado, e que tinha sido infectado com a bactéria que causa a brucelose nos animais. Entretanto, estive internado durante dez dias no pavilhão de doenças infecto-contagiosas (perto do Teatro Anatómico da UL, da Delegacia de Saúde, do Hospital dos Malucos (De Doenças Mentais, oficialmente), e da Casa Mortuária - que bela companhia...), por ter sido diagnosticado erradamente com hepatite; dez dias que foram decerto os mais escuros da minha vida, pois vi todos os dias doentes (companheiros de infortúnio como eu) a morrerem no maior sofrimento, e em que perguntava diariamente a mim mesmo quando é que era a minha vez... Rectificado o engano, mandaram-me para o Hospital Universitário, onde estive internado por quase dois meses mais.
 


A poetisa Alda Lara (1930-1962)

Ainda no hospital, fiz amizades breves com outros doentes que lá estavam internados, dos quais destaco um homem de idade avançada (de quem não me consigo lembrar do nome e a quem assisti à sua morte na presença da sua esposa e duas filhas), que tinha sido do quadro administrativo superior em várias províncias ultramarinas e que tinha passado muitos anos em Timor, como Intendente de Administração Civil, que pelas estórias que me contava todos os dias à tarde, fiquei encantado com a longínqua e exótica província ultramarina portuguesa. Encontrei ainda um outro velhote, de nome Belchior, que me disse sem grandes problemas que num momento de maldade tinha trincado e arrancado o nariz à esposa, e o guardou durante três dias no bolso..., pelo qual merecidamente passou algum tempo na cadeia.
 
 
O trovador português José Afonso (1929-1987)


Este encontro com a doença fez-me apreciar mais a vida e até encarar a morte com certa resignação. Contudo, foi a batalha pela vida dos doentes que ao meu lado todos os dias via morrer, que me levou a compreender quanto insignificante, breve e efémera a nossa vida é; e ao mesmo tempo quanto universal e cheia é a nossa passagem por este mundo.
 
Em Janeiro de 1974, numa viagem à Praia das Palmeirinhas, na estrada de Belas, a sul de Luanda, e na companhia de colegas de curso com quem íamos fazer um pic-nic, nós tivémos um acidente de carro (um Toyota 1000 conduzido pelo nosso colega Tiago, de Carmona), em que eu estando sentado no banco de trás ao lado do Carlos Gomes fui cuspido pelo vidro de trás, e fui bater de costas na estrada, que entretanto estava coberta de cristais de vidro estilhaçado do carro. De todos os ocupantes, eu é que tinha ferimentos mais graves, pelo que me tiveram que levar ao Banco de Urgência do Hospital Universitáio em Luanda, onde os médicos,durante várias horas, removeram os muitos pedaços de vidros  encrustados nas minhas costas e nos braços. Cabe qui referir que o acidente deu-se por volta das nove horas da manhã, depois de uma noite inteira de farra... 


O trovador português Adriano Correia de Oliveira (1942-1982)

Nas décadas da minha juventude a leitura de livros e revistas eram em Luanda a principal forma informação e educação, já que não tínhamos televisão ou internet, e a rádio era um pouco comercial demais, pois era nos livros e nas discussões que estes provocavam com os nossos amigos e colegas que nós formavamos as nossas opiniões e abraçavamos (ou não) as ideologias que estes apregoavam. O cinema era fundamentalmente uma forma de entertenimento, e as palestras rareavam numa sociedade que era controlada pela polícia política. Assim, desde cedo li sempre muito, incluindo as diversas opiniões contraditórias, teorias, e ideologias sobre as questões fundamentais pelos quais queríamos aprender. Desde cedo aprendi que havia sempre mais do que uma opinião sobre qualquer tópico, e para termos uma opinião abalizada sobre qualquer assunto tínhamos que aprender todas as opiniões principais sobre ele.
 
 
Hospital Universitário da Universidade de Luanda, onde estive internado um mês em 1972

 
Durante a estadia no Hospital Universitário (antigo Hospital de São Paulo) em Luanda eu li uma boa parte das obras de Karl Marx e de Lenin disponível em português, e a quase toda a obra de Frederic Nietzsche (o filósofo da cultura) traduzida em português, e "O Estrangeiro" e "O Mito de Sísifo" de Albert Camus, que me "transformaram" marcadamente, e que me ensinaram que afinal a humanidade não tinha sido uma criação divina; mas, com efeito, a divindade era uma criação humana. Como aluno de economia, eu senti que não sabia o suficiente sobre  hsitória económica mundial e sobre a história das principais escolas de pensamento económico, já que no programa de curso não tínhamos essas disciplinas, assim deliciei-me com a leitura da obra fundamental do prof. Robert Heilbroner, Introdução à História das Ideias Económicas - Grandes Economistas, que é uma magnífica compilação biográfica dos grandes economistas (Adam Smith, Robert Malthus, David Ricardo, Karl Marx, John Stuart Mill, Leon Walras, Alfred Marshall, Thorstein Veblen, John Maynard Keynes, e Joseph Schumpeter), e o impacto das suas ideias no mundo contemporâneo. Li ainda nessa altura a preciosa obra "O Processo Histórico", originalmente publicado em 1938, e da autoria do prof. Juan Clemente Zamora, professor de ciências políticas das universidades de Havana e Miami. Esta obra, se bem que manifestamente antiquada foi talvez uma das obras mais marcantes na minha formação em termos das relações entre a história, a economia política, a religião e a ideologia, e a ciência política, no contexto do quadro geral do desenvolvimento da humanidade. Li ainda nessa altura o livro "1984" de George Orwell, da colecção Biblioteca Universitária Unibolso, cujo espírito crítico muito afincado que me impressionou muito profundamente, em especial a sua referência à história, em que ele afirma que "quem controla o passado controla também o futuro, e quem controla o presente controla também o passado", que me abriu mais os olhos em relação aos usos e abusos da história por regimes políticos vigentes.
 
 
O antigo Palácio de Dona Ana Joaquina, Luanda, 1965

 
Da mesma forma, foi nesta altura que comecei a aprofundar os meus conhecimentos sobre Angola e a sua História , ou melhor dizendo, da história dos Portugueses em Angola. Com efeito, li com grande atenção os três volumes da História de Angola de Ralph Delgado editados pelo Banco de Angola (o quarto foi somente publicado já em 1976 em Lisboa), "Angola - Apontamentos  Sobre a Ocupação e Início do Estabelecimento dos Portugueses no Congo, Angola, e Benguela" de Alfredo de Albuquerque Felner, reli "Qual Será o Mais Excelente..." de Gastão de Sousa Dias, e os livros de Basil Davidson "Mãe Preta" e "Revelando  a Velha África", "As Cidades Perdidas de África", e "O Fardo do Homem Negro". Lia também com muita atenção todos os números da revista "Turismo" onde encontrava sempre artigos muito bons sobre temas históricos e etnográficos escritos pelo etnógrafo José Redinha. Ainda na Universidade de Luanda li (e reli com muita atenção) a História de Angola, em forma de texto policopiado, publicada pelo Centro de Estudos Angolanos (coordenada por Henrique Abranches e Artur Pestana (Pepetela)), sob a égide do MPLA.
 
 
A Welwitchia Mirabilis, o ex-libris de Angola,
pintura de Neves e Sousa
 

Basil Davidson (1914-2010), foi um homem invulgar no seu tempo. Nascido em Bristol, na Inglaterra, ele foi soldado, agente secreto, jornalista, escritor, e editor, mas acima de tudo, ele foi o mais distinto historiador europeu a revelar a história de África entre 1955 e 1985, e quem mais contribuiu para a difusão da genuína história dos povos africanos, com uma obra extensa de mais de 30 livros muito acessíveis e bem escritos, sendo a maioria deles sobre aspectos da história de África. O seu estilo de escrever era simples e um tanto polémico, mas factual e persuasivo, o que captava a atenção do leitor por ler mais e mais até acabar o livro, e a aceitar as suas conclusões.

Basil Davidson abriu o caminho para a divulgação da história da África pré-colonial e a atenção mundial à luta anti-colonialista que se travava em África. Após a descolonização de África entre 1957 e 1964, ele dedicou a sua atenção à luta de libertação nacional que se travava nas colónias portuguesas (Angola, Guiné-Bissau, e Moçambique), antiga Rodésia, e República da África do Sul. Ele visitou as zonas libertadas no leste de Angola, da Guiné-Bissau, e do norte de Moçambique. Apesar de ter uma perspectiva política manifestamente de esquerda e até marxista, ele era um pensador livre e independente que não deixou de desmascarar o pacto da UNITA com o regime do Apartheid a República da África do Sul, e o envolvimento de Cuba na guerra entre a Etiópia e a Somália.

O meu encontro com a obra de Basil Davidson começou com a leitura das suas obras “Revelando a Velha África”, “Mãe-Negra”, e “O Fardo do Homem Negro”, já nos "subterrâneos de liberdade" da Universidade de Luanda, obras que estavam estritamente proibidas pela censura em Angola. Devido à sua importância e claridade, acabei por ler toda a sua obra ao longo de muitos anos, e ele continua a ser para mim uma das fontes mais sérias e originais para o estudo da história dos povos de África.

 

Basil Davidson e Agostinho Neto nas chanas do Leste de Angola, 1968

Posso dizer que se Ralph Delgado despertou em mim o interesse pela história dos portuguese em Angola através da sua “História de Angola”, os muitos livros de Basil Davidson, despertaram em mim o interesse pela história de África como um continente diverso de povos independentes que sempre tiveram a sua própria história, embora não ainda revelada. Esta história começa muito antes (desde a civilização Núbia (as pirâmides na cidade de Meroé), antecedora da civilização egípcia, e dos impérios africanos pré-coloniais) até mesmo depois do colonialismo europeu tomar raízes em África na sua tentativa de apagar a história e liberdade dos povos africanos.

Dos muitos livros de pensadores importantes que li na universidade, cabe-me destacar aqui a figura de Frantz Fanon. Ele era natural da Ilha de Martinica (nas Caraíbas), nascido em 1925 e falecido em 1961, ele foi  psiquiatra de formação e o teórico radical sobre da derrubada do colonialismo pela força (luta armada), e militante activo na luta de libertação argelina do jugo colonial francês. Os seus livros "Peles Negras, Máscaras Brancas" e "Os Condenados da Terra" abriram-me os olhos para a violência do sistema colonial e para o seu impacto na vida e mente dos colonizados. A sua frase "Há um tempo que chega quando o silêncio se torna uma desonestidade" ficou comigo para sempre.
 
 
Frantz Fanon (1925 - 1961)

 
Tenho também que destacar o livro de Fidel Castro "A História me Absolverá" que me impressionou sobremaneira. A essência desta obra é o depoimento que Fidel Castro fez em defesa própria quando foi acusado de insurrecção pelo regime do ditador Fulgêncio Baptista, pelo ataque dos Barbudos ao Quartel Moncada em Santiago de Cuba a 26 de Julho de 1953. Na sua defesa no julgamento, Fidel trocou com eloquência os papeis de cada um, e em vez de arguido, Fidel passou a procurador do povo cubano, e o regime de Baptista passou de procurador passou a arguido. Na verdade e com muita eloquência no seu discurso de cinco horas, Fidel pôs a preto e branco o que o regime de Fulgêncio Baptista estava a infligir ao povo cubano, com o suporte da Mafia e da opressão americana.
 
É difícil descontar os argumentos de Fidel Castro, e até é fácil aceitar a sua tese socialista como solução para Cuba, contudo, passados que foram muitos anos, é com muita dôr que vemos que o socialismo cubano não veio resolver os desafios que afligem o progresso do povo cubano. Não só a economia cubana cedo petrificou em pobreza extrema, como a liberdade individual foi abafada e substituída com um estado policial que não admitia qualquer desvio à linha oficial da ditadura comunista. Com efeito, uma vez assumindo ao poder em Cuba, Fidel Castro tornou-se um ditador cuja prática não era muito diferente do que ele antes acusara Fulgêncio Baptista em A História me Absolverá.  Não posso esquecer aqui que li anos mais tarde numa entrevista com a irmã de Ché Guevara (o "herói" da libertação dos povos oprimidos do terceiro mundo), que ele assinava resmas de ordens de fuzilamento de cidadãos cubanos acusados de resitir à revoluçao cubana, sem sequer ler a forma de uma única vítima. Uma vez a ordem de fuzilamento era assinada por Ché Guevara, depressa as vítimas eram sumariamente assassinadas. Na verdade temos que reconhecer que a solução comunista de Castro não melhorou as condições do povo cubano, e que não há humanismo na solução socialista de Castro, Stalin, Mao Tse Tung, Pol Pot, ou de qualquer outro ditador dito comunista.
 

Excursão dos Alunos da Faculdade de Economia
ao Uíge, 1973


26. Vida na Universidade
 
De volta à Universidade, perto que estava dos centros de decisão, comecei a compreender melhor como o aparelho político colonial funcionava. Ao mesmo tempo, comecei a reconhecer com mais facilidade as diferentes correntes de pensamento e de acção que então actuavam nos "subterrâneos" da nossa universidade. Não demorou muito até que me havia de meter "até às orelhas" numa luta aberta e vigorosa de debate de ideias políticas com outras correntes e grupos, e muito menos tempo em fundarmos a nossa própria associação - a GEFA (Grupo de Estudos para a Futura Associação), da qual eu era um dos líderes principais. Contrariamente, ao que a oposição apregoava nos corredores da Universidade e nas grandes Reuniões Gerais de Alunos (RGAs), a nossa GEFA era completamente genuína e independente, e não tinha qualquer ligação partidária com quaisquer dos três movimentos de libertação (MPLA, FNLA e UNITA), com a facção Chipenda, ou com a Revolta Activa, e menos ainda com a FUA (Frente de Unidade de Angolana), do Engenheiro Fernando Falcão, de Benguela. 

Foi na Universidade de Luanda que eu compreendi na sua extensão total a exploração colonial e o aparelho de repressão que era preciso para manter esse estado de coisas, e desde cedo me apercebi que ainda tinha muito que aprender em separar "o trigo do joio", em chegar à raiz das razões fundamentais de certas decisões do governo colonial. Depois de ler os dois volumes da "Geografia da Fome" de Josué de Castro nesta altura, aprendi também as raízes e a mecânica da tragédia da pobreza e do subdesenvolvimento que assolava quatro quintos da população do planeta.

É certo que a política associativa universitária em breve substituiu os estudos como razão principal para eu estar na universidade(?), mas ela também me proporcionou a oportunidade de ler, escrever e debater muito, muitas vezes contra forças muito maiores que as nossas. 
 
Dos muitos colegas amigos que tive na UL, lembro a Manuela Moura (falecida precocemente há poucos anos), o Carlos Ferreira Gomes, a Graça Koch-Fritz, a Celeste Vilarinho, a Maria José Trancoso, a Ita Delgado e o Peter, a Gracinha Coelho, o Seara de Morais, o João Chabert Ferreira (meu colega desde o primeiro ano do Liceu Paulo Dias de Novais...), o Jorge Pestana (tambem colega e amigo de longa data desde os anos do mesmo liceu, e já falecido), Lares dos Santos, também colega de longa data, Vasco Jardim, a Rosário Penha Gonçalves, o Manso Gigante, o Carlos Moura, Helder (do Lobito), o Octávio, o Cristo Alves, o Madeira, o Fernando Quelhas, o (Manuel Gonçalves Francisco) Xico e a Lena Jorge, o Zé Pedro, e de muitos outros dos quais não me lebro agora dos nomes. 
 
Com o risco de me esquecer algum nome merecedor, lembro (para o que desde já peço desculpa) que a lista dos melhores alunos do curso do nosso ano (o primeiro na UL) incluía a Celeste Vilarinho (Manso Gigante), a Laurinda de Jesus Fernandes (Hoygaard), a Fátima Moura (Roque), o José Luis Seara de Morais, e o Alberto de Almeida. Como disse atrás, os alunos que vinham do Instituto Comercial eram em geral acima da média nas disciplinas de contabilidade.


Excursão de Alunos de Economia ao Distrito do Bié, 1973


De todos os amigos, agora vivendo em terras distantes, o Toninho e a Ema Delgado tornaram-se os mais chegados a nós.Depois de sairem de Angola, eles viverem no Brasil durante uns anos e depois regressaram a Portugal, para viver em Castro Verde (Baixo Alentejo), onde ainda vivem. Eles tiveram duas filhas, nascidas no Brasil (a Mayumi e a Tatiana). Hoje estão ambos reformados, mas o Toninho exerceu a profissão de engenheiro de minas na mina da Somincor en Castro Verde, e a Ema, de professora de biologia, também em Castro Verde, ambos durante muitos anos. O Toninho e a Ema vieram várias vezes ao Canadá visitar-nos, com quem percorremos em detalhe as províncias de Alberta e Colombia Britânica (do lado do Oceano Pacífico). Durante estes anos todos nós viajamos muito com eles através do mundo, pois eles são os nossos amigos preferidos para viajar. Assim fomos a muitas partes do mundo, incluindo o estado da Bahia no Brasil, o oeste dos Estados Unidos (incluindo os estados do Alaska, Utah, Arizona, Nevada, Montana, Idaho, Washington, e Wyoming), Portugal (em detalhe) e norte de Espanha, Alaska, Budapeste, Costa Rica, Panamá, Japão, Hawaii, e mais recentemente, o México. 
 
Não posso, porém, deixar de referir aqui e agora a amizade especial e profunda (mais do que "amizade", reconheci tardiamente...) que nutria pela Lena Vitória Pereira, então já médica estagiária no Hospital Universitário, e da amizade que ao longo desses anos mantive com o Manuel Ribeiro (um irmão mais velho para mim) e a nossa Ventoínha (Manuela Pestana, hoje médica aposentada que trabalhou em Moscavide em Portugal durante muitos anos) que tanto me ajudaram; e do Tónio e Ema Delgado, amigos tão chegados de tantos anos. 
 
Recordo ainda as "noitadas directas" de 24 e mesmo 36 horas seguidas (sem descanso!) a jogar King na Residência Universitária na Rua Oliveira Barbosa com o Tónio Delgado, o Xíbias, o Guerrita, o China, o Bolacha, o Vascão, o Óscar (... Ligório da Piedade Álvares Furtado - que nome tão nobre, nunca hei-de esquecer!), o Peidinhas (Fonseca Santos), e outras "aves raras" que por lá aterravam regularmente.


Eu, já sábio, depois de sair da UL


Li assim quase todos os livros proibidos pela PIDE que corriam nos "subterrâneos da liberdade" da nossa UL. Não posso esquecer as discussões acesas que tínhamos durante noites e noites inteiras com colegas como o Freddie Salles Esteves, Mickey, António Carranca, Rui Lima Lobo, Freitas Basílio, Manuel Ribeiro, Zé (Agostinho) Neves, Lena Robalo, Sá Carneiro, Pena Pires, Carlos Moura, Celeste Vilarinho, Xíbias e Alfredo Franco, e muitos outros dos quais agora não me lembra os seus nomes. 
 
Com a Revolução do 25 de Abril em a desenrolar-se em pleno em Portugual e nas colónias, não tardou que a mesma se reflectisse na vida da Universidade de Luanda. Sem demora, protestos por tudo e por nada mudaram a Universidade - reuniões gerais de alunos, saneamento de professores, mudança no plano do curso, instabilidade governativa, luta fraticida entre os movimentos de libertação, instabilidade e insegurança, e inflação, e fuga de quadros, entre outras preocupações passaram a dominar o dia-a-dia na UL. Em breve o caos suplantou tudo, e a Faculdade de Economia viu-se na situação de ter que suspender todas as actividades em Setembro de 1975, e só vir a reabrir depois da Independência sobre of novo nome de Universidade Agostinho Neto

 
Sede da FNLA na Avenida Brasil, incendiada nos combates de Julho de 1975

 
Contudo, naquele tempo de ebulição na Faculdade de Economia, boas coisas também aconteceram. Um curso semestrais sobre Cooperativismo e Sindicalismo foi adicionado ao curriculum dirigido em conjunto pelo Dr. Luis Nunes e Dr. João Amorim (respectivamente), e um curso anual sobre a Economia de Angola foi também adicionado. Este curso foi dirigido pelo Dr. Zenha Rela (falecido há poucos anos), que era técnico superior dos Serviços de Planeamento e Integração Económica e um dos líderes de muitos dos grupos de trabalho da revisão do 3º Plano de Fomento e do desenvolvimento do 4º Plano de Fomento . Como disse atrás, o Dr.  Zenha Rela era uma das pessoas que mais sabia sobre a realidade económica e social de Angola, especialmento no que respeitava ao mundo rural. Um outro curso especial focando na realidade social e histórica do momento em Angola foi  organizado e dirigido pelo Dr. Gentil Viana, destacado anticolonialista angolano e membro da facção Revolta Activa do MPLA. Este curso foi muito concorrido, pois o Dr. Gentil Viana era um homem de grande saber e uma referência da resistência anticolonialista. Ainda neste contexto a Faculdade de Economia organizou e ofereceu dois seminários de grande utilidade - um sobre Investigação Operacional, leccionado pelo Dr. António Rodrigues da Silva, e outro sobre Análise de Projectos, leccionado pelo Dr. Leonardo Santos.
 
Como resultado dessa experiência, e apesar da insistência dos convites recebidos de todos os quadrantes políticos, decidi não me associar a nenhum movimento de libertação ou partido político, que nessa altura andavam a recrutar alunos para seus membros, pois o que aprendi acerca deles me desencantou um pouco logo desde o princípio; decisão essa que havia de ter peso mais tarde na minha decisão final de deixar Angola antes da independência.
 
Apesar do papel secundário que a Universidade de Luanda teve na luta ao poder em Angola após o golpe militar português de 25 de Abril de 1974, não podemos deixar de reconhecer que ela serviu de campo de treino para muitos estudantes que mais tarde se associaram a cada um dos três movimentos de libertação nacional (o MPLA, a UNITA e a FNLA) e nos quais desenvolveram um papel de relevo.