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Praia de Cabinda, a sul da Missão Católica
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27. Férias em Cabinda
Cabinda encantou-me desde o primeiro minuto que a vi
- a floresta frondosa do Maiombe, as boas praias, o seu povo franco e
aberto, e a presença de muitos estrangeiros a trabalhar nos poços de
petróleo da Cabinda Gulf Oil no Malembo. Naturalmente,
interessei-me pela sua história, pela sua economia, e pela sua situação
especial no quadro social, político e administrativo de Angola. Contudo, o que
mais tenho saudade é dos sons de música congolesa pela noite fora das
rebitas situadas nos "povos" (vizinhanças, sanzalas) à volta da cidade.
Cabinda à noite oferecia uma "paisagem" especial, pois os poços de
petróleo ao largo do mar ardiam permanentemente (para queimar o
sobreproduto do gás natural), o que davam uma cor laranja às noites mais
claras, à custa de uma descarga pesada de anidrido carbónico (CO2 -
dióxido de carbono) para a atmosfera, e contribuindo assim para o
aquecimento global.
O território de Cabinda era um exclave a norte da foz do rio Zaire, portanto desligado do resto do território de Angola. Perto que se situava da linha do equador, o clima de Cabinda era equatorial, com vegetação muito densa a norte (a floresta do Maiombe), e um pouco mais esparsa a sul.
Um Pouco de História de Cabinda
História pré-colonial
Cabinda, a antiga Tchioua, foi durante séculos o povoado principal do antigo reino do Ngoio, que como os antigos reinos de Cacongo (Malembo e Lândana), e Loango era independentes do antigo reino do Congo. Nos tempos da escravatura, o porto de Malembo foi um dos portos principais de exportação de escravos para São Tomé, Brasil, Caraíbas, e Américas. A presença portuguesa em Cabinda foi muito ténue até 1783 quando o forte português foi destruído por um ataque francês.
Escravatura
Capital da antiga província do Congo
Tratados de Similambuco,
Café, madeiras, cacau, e petróleo
MPLA e FLEC
Presença militar portuguesa
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Mulher Fiote (de Cabinda), 1971 |
Como resultado da Conferência de Berlim (partilha de África, em 1884), o
porto de Cabinda ficava situado no que se chamava a Bacia Convencional
do Zaire, e assim a importação de mercadorias era isenta de taxas
aduaneiras.
Uma vez em Cabinda, o meu Pai ofereceu-me nessa altura três livros acerca de Cabinda (No Mundo dos Cabindas, e Filosofia Tradicional dos Cabindas (em dois volumes), ambos da autoria do Padre José Martins Vaz, e Cabindas - História, Crença, Usos e Costumes, da autoria do Padre Joaquim Martins, que me ajudaram a melhor compreender a história e a cultura desse povo tão especial.
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Vista do Largo da Igreja e Camara Municipal de Cabinda
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Com mais tempo em casa dos meus pais durante as férias, li grande parte da obra de Jorge Amado
(o escritor predilecto do meu Pai), que me abriu os olhos à situação de
pobreza crónica do povo do Nordeste Brasileiro, e que me ensinou a
saborear a sua mestria pela palavra escrita, e a sua sabedoria sobre o
universo mágico e tropical da grande mistura que era o Nordeste do
Brasil. Da obra de Jorge Amado, gostei em especial das obras "A Seara Vermelha", "Os Subterrâneos da Liberdade" I (Os Ásperos Tempos) e II (Agonia da Noite), e III (A Luz no Túnel), "ABC de Castro Alves", "São Jorge dos Ilhéus" e "Capitães da Areia".
Através de Jorge Amado aprendi a gostar do Brasil e aprendi a
influência que os escravos de Angola tiveram na formação do Brasil, e
como os seus descendentes continuavam a ser explorados pelas classes
dominantes.
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O escritor brasileiro Jorge Amado (1912-2001) |
Li ainda a obra completa de Soeiro Pereira Gomes, que simplesmente adorei, da qual destaco "Esteiros", escrito "para os filhos dos homens que nunca foram meninos", um grande mestre do realismo social português da década de Quarenta (1940's).
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O escritor português Soeiro Pereira Gomes (1910-1949)
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A
minha irmã Dilar que também vivia em Cabinda nessa altura tinha uma
colecção de discos muito boa, pelo que passei muitas tardes a ouvir a
música clássica e latino-americana que mais gostava. Como posso
esquecer"O Mercado Persa" (a música preferida da minha Mãe), de Albert Ketelby,
a "Sinfonia do Novo Mundo", de Anton Dvorjak, e as obras primas de Wolfgang Amadeus Mozart,
Ludwig van Bethoven (5ª Sinfonia), Robert Wagner (Cavalgada das Valquírias), Pietr Tchaikovsky (Abertura de 1812), e Edvard Grieg (Na Gruta do Rei da Montanha)? E as tardes inteiras que passava a ouvir os
Machucambos?
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Ilha do Mussulo, paraíso às portas de casa, 1950s |
Para
além das terras onde vivi, em férias ou em excursões, competições
desportivas, ou ainda em visita a casa de família de amigos, eu tive a
oportunidade de visitar muitos lugares em Angola, incluindo as
principais povoações e cidades nos distritos de Cabinda, Zaire, Uíge,
Luanda, Cuanza Norte, Cuanza Sul, Malange, Huambo, Bié, Benguela,
Moçamedes e Huila. Visitei lugares históricos, praias maravilhosas,
florestas impressionantes, planícies que se estendiam para além do
horizonte, montanhas que me faziam sentir pequeno, e rios e quedas de
água de uma beleza que não consigo descrever, que tudo em conjunto me
faziam questionar os limites da beleza natural do planeta em que
vivemos. Angola era mesmo uma terra de sonho.
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O pensador português Bento Jesus Caraça (1901-1948)
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Quando fiz 22 anos a minha amiga e colega Manuela Moura deu-me o livro de "Conferências e Outros Escritos" de Bento Jesus Caraça, que li por completo nas férias em Cabinda, e cujos pensamentos me acompanharam para o resto da minha vida. Uma obra excepcional de um pensador ainda mais excepcional. Bento Jesus Caraça (1901-1948), foi um matemático português licenciado pelo Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (Lisboa 1923) e professor catedrático no campo de matemática foi, um defensor e promotor da difusão da ciência e da cultura e talvez o mais informado crítico à ditadura do Estado Novo e mais perseguido por Salazar durante as décadas de 1930 e 40 em Portugal. A sua visão do mundo e o lugar do homem na sociedade ajudaram-me a firmar a minha visão do mundo para o resto da minha vida.
Ainda em Cabinda conheci a minha querida amiga Maria João Gomes,
nessa altura estudante finalista do curso de Serviço Social (do
Instituto de Educação e Serviço Social Pio XII em Luanda), que, com
outras colegas, estava empenhada em preparar um trabalho final de curso
(Seminário sobre Planeamento do Desenvolvimento) orientado pelo Dr. Zenha Rela sobre um esquema de planeamento regional - o Plano Calabube
- para o Distrito de Cabinda. Planeamento regional e desenvolvimento
económico foram para mim na Universidade dos temas que mais me
interessaram (eu era um dos melhores alunos nessas cadeiras), de forma
que com grande prazer a ajudei a minha querida amiga Maria João no muito
pouco que podia, a enquadrar o factor económico na estrutura do
Seminário.
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Baixa de Cabinda, 1968 |
28. O Golpe de 25 de Abril
O golpe militar do 25 de Abril levado a cabo pelo MFA (Movimento das Forças Armadas) foi uma surpresa para todos em Angola; contudo, não era completamente inesperado.
A
guerra colonial que Portugal travava em três frentes em África durou
mais que o dobro da Segunda Guerra Mundial, e fez muitos milhares de
mortos entre portugueses e africanos. Só do lado português sabemos que
8.831 soldados portugueses morream no conflito, aos quais se juntaram
mais de 30.000 feridos, 4.500 mutilados e 14.500 deficientes físicos, e
mais de cem mil soldados diagnosticados com perturbação de
stress pós-traumático. Para uma população de cerca de 10 milhões, estes
números atestam o elevado custo que a guerra colonial custou a Portugal.
Era
do conhecimento geral as dificuldades que o governo português
enfrentava em continuar uma guerra muito cara em três frentes distantes e
sem apoio popular; sendo assim mais uma questão de "quando" em vez de
"se" havia de acontecer, e ainda sob pressão internacional crescente.
Embora numa boa posição militar em Angola, Portugal enfrentava uma
derrota eminente na Guiné, e uma guerra cada mais difícil na forma de
uma derrota possível em Moçambique, o que rendia a presença portuguesa
em África como não sustentável no longo curso.
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O 25 de Abril de 1974 - Revolução dos Cravos Largo do Carmo, Lisboa |
Assim, quando a Revolução dos Cravos
desabrochou, obteve imediatamente o suporte da grande maioria do Povo
Português, apesar de ter sido recebida com certa apreensão nas colónias.
Como sabemos, a Revolução de Abril foi uma revolução genuína, pois
substituiu em Portugal a ditadura fascista do Estado Novo pela
democracia parlamentar multi-partidária.
Em
pouco mais de um ano, Portugal desfez-se do seu dispositivo militar
extenso, de instituições políticas antiquadas, e desfez-se do seu imenso
império ultramarino, voltando-se, pequeno e pobre, para a Europa,
depois de mais de cinco séculos de vocação ultramarina.
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Primeira página do jornal "a província de Angola"
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anunciando o golpe de estado de 25 de Abril de 1974
No
que respeita a Angola, a Revolução de Abril abriu o caminho para a sua
independência. Angola não estava preparada para assumir a
independência política imediatamente devido às divergências profundas
entre os movimentos de libertação, e o povo angolano acabou por pagar um
preço excessivamente alto pela oportunidade que se lhe tinha sido
oferecido pelo Movimento das Forças Armadas (MFA). A sua posição
estratégica na África central e Atlântico Sul e (mais) as suas riquezas
minerais levaram Angola a transformar-se num peão no xadrez global da
Guerra Fria, e como tal, num gigante teatro de uma guerra fraticida que
havia de durar ainda mais vinte e sete anos, em que viriam a morrer mais de um milhão de
angolanos, e que destruiu toda a sua infra-estrutura económica e social
deixada pelos Portugueses, deixando cicatrizes profundas na sua memória
social.
29. Serviço Militar
Já
com 24 anos, fui chamado a prestar serviço militar obrigatório no
Exército Português, e fiz a minha recruta de oficial miliciano na Escola de Aplicação Militar em Nova Lisboa (EAMA),
de Junho a Setembro de 1974. Entretanto o meu Pai tinha falecido
inesperadamente em Cabinda a 23 de Maio do mesmo ano. Terminei a minha
especialidade em intendência (logística) em Luanda, e em Janeiro de 1975 fui colocado como
aspirante na divisão de abastecimento de combustíveis da Chefia dos Serviços de Intendência em Luanda (em frente ao Palácio do Comércio, hoje prédio do Ministério das Relações Exteriores).
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Eu como recruta do Curso de Oficiais Milicianos, na Escola de Aplicação Militar de Angola (EAMA), em Nova Lisboa, Setembro de 1974 |
Em Abril de 1975 fui graduado em Alferes e destacado para o Comando de Sector de Cabinda para
ajudar o Capitão Luz na substituição do Capitão Júlio Maneta, amigo do
meu Pai, que tinha ido pouco antes para o Brasil.
A minha experiência militar foi mínima, mas em Cabinda (a cidade onde os
meus pais viveram durante alguns anos, e onde o meu irmão Rui ainda
vivia) tive o privilégio de trabalhar no esforço de construir um
exército nacional angolano unificado a partir dos três exércitos dos movimentos de libertação, tarefa impossível, como se pode imaginar.
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Eu quando prestava serviço militar em Cabinda |
Contudo,
lembro-me do afinco com que me dediquei a esta importante tarefa, e
lembro-me também do que aprendi no lidar do dia-a-dia com um número
grande de unidades militares portuguesas e dos movimentos de libertação
então espalhadas pelo distrito.
Saído ainda fresco da universidade, o meu destacamento em Cabinda foi um
embate de choque para mim, pois ter que responder à responsabilidade
de garantir alimentos, medicamentos, tabaco, cerveja e outras bebidas
alcoólicas, caixões e munições a um exército de cerca de sete mil homens
em retirada não foi tarefa fácil.
Eu
não tive outra alternativa senão aprender bem, e aprender depressa.
Como no resto de Angola, os movimentos de libertação estavam em guerra
aberta entre si, e Cabinda não foi excepção. Assim, o papel do Exército
Português em Cabinda entre Julho e Outubro de 1975, resumiu-se a tentar
trazer os movimentos de libertação à mesa de negociações, tentar
construir consenso, tentar evitar conflitos, e recolher corpos de
vítimas espalhados pela cidade e arredores na manhã seguinte a conflitos entre os movimentos na noite anterior.
Não
posso esquecer que numa noite em que sabíamos que iam haver combates
nos arredores da cidade, convocamos os representantes dos três
movimentos de libertação para uma maratona de negociações que durou a
noite inteira e quase esvaziou os ricos stocks de whisky e conhaque da
mansão (tinha 14 quartos de dormir!) de convidados da residência do
Administrador da Companhia de Cabinda, mas que salvou a cidade de mais
combates e mortes, contudo não salvando os dirigentes dos exércitos dos
movimentos dos efeitos nefastos de uma memorável "torcida".
30. Princesa do Huambo
Nos primeiros dias de Setembro de 1975 regressei a Luanda para casar a 16 de Setembro com a minha Princesa do Huambo (Estela Monteiro),
de Nova Lisboa (Huambo), só tendo que voltar a Cabinda por uns dias, e
então regressar definitivamente a Luanda em meados de Outubro. O nosso
casamento foi simples pois a maioria dos nossos familiares e amigos já
não estavam em Luanda, e não havia muito que comprar em termos de
iguarias de festa de casamento. Contudo, a Ivone e o Ilídio, irmã e cunhado da Estela, tudo fizeram para que tivessemos uma festa farta e memorável.
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No dia do nosso casamento - Luanda, 16 de Setembro de 1975
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31. Adeus a Angola
Entretanto,
a minha Mãe e as minhas irmãs Paula e Ema tinham já partido para
Portugal e a minha irmã Dilar e família tinham também já partido para o
Brasil; só o meu irmão Rui teimava em ficar em Cabinda. Os meus sogros
tinham ido também para Portugal, directamente de Nova Lisboa, e os meus
cunhados tinham entretanto ido para o Canadá, pelo que em Angola, só
ficámos eu e o meu cunhado Ilídio em Luanda, e o meu irmão Rui em
Cabinda.
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Retornados de Angola, 1975 |
Desde
os grandes combates de Julho de 1975 entre os movimentos de libertação,
Luanda depressa se transformou numa cidade de caixotes. Era desolador
ver uma cidade maravilhosa a esvaziar-se dos seus habitantes, pois cada
dia que passava havia menos gente nas ruas, menos coisas para comprar
(as prateleiras das casas comerciais estavam vazias, os restaurantes
estavam fechados por falta de alimentos), a inflação cada vez mais
incontrolável, e mais caixotes nas ruas ou nos cais à espera de
embarque.
A
ponte aérea esvaziou Luanda ainda mais depressa. Por fim, em Setembro a
Universidade de Luanda fechou, e em Outubro Luanda parecia já uma
cidade deserta e sem vida.
Entretanto, os combates entre as FAPLA e o ELNA a norte de Luanda
(Caxito e Quifangondo), e entre as forças cubanas e sul-africanas no
centro do país, atingiram uma intensidade nunca vista, o que aumentou a
angústia de muitos que viram na saída do país a sua única solução;
assim, muitos angolanos que não tinham ideias de partir, deram conta de
si como parte da multidão que diariamente deixava Angola com destino a
vida incerta em lugar desconhecido.
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Restos de estátuas coloniais em Luanda, 1976 |
Tal como Axel Munthe e a sua vila San Michele, eu tive o meu sonho em Angola. Em 1974, a minha irmã Ema, dava aulas na escola técnica da Vila Nova (Huamboa), a cerca de uma hora de carro a leste de Nova Lisboa, e eu fui várias vezes visitá-la. Nos arrabaldes da Vila Nova, havia uma antiga casa, já desabitada e em ruínas, com uma nora de água, sobre o leito do rio Cutato que cortava a propriedade, que me encantou desde o primeiro momento que a vi. Assim, sonhei adquirir a pequena propriedade, restaurá-la e tê-la como casa de campo/férias para o resto da minha vida, pois a beleza e o bucolismo do lugar ficaram para sempre comigo. Infelizmente, por força das circumstâncias de ter saído de Angola, não pude nunca concretizar esse maravilhoso sonho, o que não quer dizer que o sonho não havia de ficar comigo para sempre até ao resto dos meus dias...
E assim amigos,
como muitos, deixei Angola para sempre,
a minha querida pátria, sem dizer sequer adeus, na noite escura de 7 de Novembro de 1975 para nunca mais voltar.
Adeus Angola
Vou agora para um mundo que não conheço
Adeus desertos, florestas, e anharas
Adeus praias, pôres-do-sol e palmeiras
Adeus leões, elefantes, e kissonde
Adeus amigos do coração
só em memória nos encontraremos
em breves mas eternos momentos
Não vamos nunca deixar de estar juntos
Adeus futuro que não chegaste
Adeus passado que não partiste
Adeus hoje que não existe
Adeus para sempre!
Adeus, minha Angola Minha
que não nos vamos tornar a ver
Hoje é nunca, é o ultimo dia
Dia em que a saudade começa e nunca acaba
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Uma miragem sublime - Meandros do rio Cunene nos confins do deserto do Namibe, a caminho da sua foz misteriosa
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