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Alunos no Liceu Nacional Salvador Correia, 1969 |
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12. Liceu Paulo Dias de Novais
Em
Setembro de 1961, mudámos outra vez de casa, desta vez para a Rua 28 de
Maio, nº.9, (actual Rua Karipande) no Bairro da Maianga, onde
haveríamos de viver até 1969, pois eu tinha sido matriculado no Liceu Paulo Dias de Novais,
situado na Rua da Misericórdia (hoje Rua 17 de Setembro) na Cidade Alta
ao lado do antigo Quartel General da Região Militar de Angola (hoje Ministério da Defesa), em
frente ao jardim que tinha a estátua de Mouzinho de Albuquerque, por sua
vez em frente à escola primária José Anchieta.
A memória sempre-presente e ao mesmo tempo a saudade mais profunda que tenho do Liceu Paulo Dias de Novais não era de facto o liceu, mas das muitas e belas acácias em flor que havia no largo em frente ao Quartel General (antigo Largo Mouzinho de Albuquerque) com as suas micro-folhas verdes e o encarnado vivo das flores que enchiam o jardim. Eu digo isto aqui não porque é um tópico comum no tema de saudade de Angola, mas sim porque o sinto mesmo profundamente. De facto, eu sinto que eu faço parte da acácia rubra, e a acácia rubra faz parte de mim.
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Acácias Rubras em flor, foto obtida do blogue de "O Viajante", sobre Benguela
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O
liceu tinha nessa altura sido convertido de liceu feminino em liceu
masculino para acomodar o número crescente de alunos vindos das áreas
afectadas pela guerra cujas famílias haviam decidido não retornar às
áreas afectadas pela guerra e permacer em Luanda, já que o novo
edifício do Liceu Feminino D. Guiomar de Lencastre se tinha acabado de
construir.
Apesar de ter gostado imenso do liceu (ou talvez por isso mesmo...),
reprovei no primeiro ano, o que não agradou nada aos meus pais. Nos anos seguintes fui crescendo e passando de ano para ano no liceu, e a
começar a tomar gradualmente consciência da realidade colonial em que
vivíamos.
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Hora de saída das aulas no Liceu Paulo Dias de Novais, 1968 |
A configuração do Liceu Paulo Dias de Novais era na forma de um
rectângulo com a frente para a antiga Rua da Misericórdia, em frente à entrada sul do Parque Herois de Chaves, e com as
traseiras para a antiga Rua Henrique de Carvalho, que ligava o largo do Hospital ao Bairro do Saneamento e edifício da Imprensa Nacional, logo antes da Igreja de Jesus. No lado este do rectângulo (junto ao quartel General) estava a secretaria e o
ginásio, com os balneários atrás, e as salas de aula ao longo do lado
de trás (antiga Rua Henrique de Carvalho) e Travessa da Misericórdia. Como disse, o edifício e terreno do Liceu Paulo Dias de Novais eram já antigos e eram uma adaptação da função anterior de liceu feminino. Assim, no terceiro ano, o edifício central onde funcionava a reitoria e outros serviços, foi demolido para dar lugar a um grande espaço aberto onde se podia jogar à bola. Dessa antiga estrutura só se salvou o chamado "pombal", que era uma sala sózinha no segundo andar, que servia como sala de aulas para canto coral, cuja escada de acesso era muito longa e íngreme. No rés-do-chão do mesmo edifício eram situadas as casas de banho e a cantina. Nota - Em 1971, o Liceu Paulo Dias de Novais mudou-se para modernas instalações perto do Colégio dos Maristas, na Estrada de Catete, passando a funcionar aí como um liceu misto de rapazes e raparigas.
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Um dos miradouros do Parque Heróis de Chaves, Luanda, 1960s
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No Liceu Paulo Dias de Novais tive
excelentes professores que despertaram em mim o gosto em aprender, ao
mesmo tempo que com os amigos de Bairro ou de Liceu fazíamos as maiores
tropelias, das quais ainda me lembro em especial do pobre Palhinhas
(que vivia só (mas com 23 gatos!) numa casa abandonada mesmo ao lado do Cinema
Restauração, na Avenida Álvaro Ferreira - do Hospital (hoje Avenida do
1º Congresso), onde mais tarde foi construída a nova sala de cinema
"Studio" anexa ao mesmo cinema), e da Joana Maluca, uma demente muito popular que andava pelas nas ruas de Luanda desse tempo.
Há acontecimentos na vida que pela sua relevância ficam connosco para sempre. Assim é o caso do assassinato do Presidente Kennedy, que foi assassinado a 22 de Novembro de 1963. Eu tinha nessa altura 13 anos, e apesar de não ligar ainda à política, lembro-me que foi uma notícia de choque para mim. Eu estava a brincar com alguns colegas do Liceu Paulo Dias no jardim que tinha a estátua de Mouzinho de Albuquerque, situado à frente ao Quartel General quando um colega veio a correr e disse que o presidente da América tinha acabado de ser morto no Texas. Ainda hoje me lembro o sentido de choque que a notícia me deu e o sentimento de não compreender porque tais acontecimentos têm lugar.
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Igreja de Nossa Senhora do Cabo, na Ilha de Luanda, pintura de Garcia Marques, 1940 |
O
Liceu Paulo Dias de Novais oferecia as disciplinas do antigo 1º ao 5º
Ano, em dois ciclos - o primeiro ciclo (1º e 2º anos) com cinco
disciplinas - Português, Francês, História de Portugal, Matemática, Ciências Naturais, Desenho e Trabalhos Manuais, e Educação Física, e o segundo ciclo (3º, 4º, e 5º anos) com
nove disciplinas - Português (Literatura Portuguesa), Francês, Inglês, História (História de Portugal no 3º ano, e História Universal nos 4º e 5º anos), Geografia (Geografia física no 3º ano, Geografia mundial no 4º ano, e Geografia de Portugal e Ultramar no 5º ano),
Matemática, Ciências Naturais (Corpo Humano no 3º ano, Zoologia no 4º ano, Mineralogia e um pouco de geologia no 4º ano, e Botânica no 5º ano), Ciências Físico-Químicas (Física no 3º e 4º anos, e Química no 4º e 5º anos), Desenho,
Canto Coral, Religião Moral e Cívica, e Educação Física. Para maximizar o uso das salas
de aula para o maior número possivel de alunos, as aulas eram dadas em
dois turnos - de manhã (das sete e meia ao meio-dia e meia), e da tarde
(da uma e meia às seis e meia), de segunda-feira até ao sábado. As aulas
eram de cinquenta minutos cada uma, seguidas de um intervalo de dez
minutos para recreio.
O
ano lectivo era dividido em três períodos - as aulas começavam por
volta do dia 23 de Setembro e iam até três semanas antes do Natal,
altura em que tinhamos três semanas de férias de Natal. O segundo
período começava na primeira semana de Janeiro e ia até à primeira semana
de Março, após as quais tínhamos um mês de férias. Finalmente, o
terceiro período começava na primeira semana de Abril e ia até à segunda
semana de Junho, após as quais tínhamos as "Férias Grandes", até ao fim da terceira semana de Setembro. Assim, durante os meses mais quentes do ano -
de Dezembro a Março - nós tínhamos dois períodos de férias (para um
total de sete semanas), mas as férias grandes (treze semanas) eram
durante a estação do cacimbo (estação mais fria e seca), para condizer
com o ano académico em Portugal. O último dia de aulas do ano era
celebrado com grande fanfarra por toda a cidade pelos alunos dos liceus e
escolas comercial e industrial. Por outro lado, o primeiro dia de aulas
era ocasião para praxes académicas que incluiam o fazer uma carequinha
nos "caloiros" (alunos que entravam pela primeira vez para os liceus e
escoloas comercial e industrial), os quais tinham que "baixar a careca"
perante os estudantes mais velhos e receber destes um toque na cabeça
(carecada).
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Cubatas Axiluanda na Ilha do Cabo, Luanda, 1956 |
O
Liceu Paulo Dias de Novais situava-se numa das zonas mais antigas da cidade,
abrangendo os antigos bairros da Cidade Alta, Saneamento, Bairro dos Ferreiras, Maianga, Samba, Praia do
Bispo, Hospital, Coqueiros, e Baixa. Mesmo perto do Liceu, situava-se o
Parque Heróis de Chaves, com uma área verde muito grande delimitada pela
Rua da Misericórdia a oeste, rua e beco do Casuno a norte, e Avenida do
Hospital a leste e sudeste. O Parque Heróis de Chaves (hoje Parque da
Liberdade) era uma das zonas verdes mais extensas de Luanda, com jardins muito
cuidados e bonitos, com muitas árvores frondosas e muita sombra, muitos passeios e com uma estufa
fria muito linda. Mesmo junto ao parque havia dois campos de futebol, um
junto à Escola José Anchieta de terra batida, e o outro, de pavimento
asfaltado ao fundo do Beco do Casuno, onde os grandes encontros de
futebol do "Paulo Dias" tinham lugar a qualquer hora. Já perto do jardim
onde se encontrava a estátua de Mouzinho de Albuquerque (em frente ao
Quartel General da Região Militar de Angola), havia um campo de basquetebol, todo cercado de rede metálica, onde o Sporting Clube
da Maianga treinava as suas equipas de juvenis. Naturalmente, o parque era muito usado pelos alunos do Liceu Paulo Dias nas horas de folga e
nas horas de "fuga" às aulas.
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O antigo Liceu Central de Luanda (1919), mais tarde Liceu Salvador Correia (até 1942)
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Cabe aqui referir que havia na vizinhança do Jardim Mouzinho de Albuquerque e da Avenida do Hospital dois edifícios antigos importantes na Luanda de duas gerações antes: o do Liceu Central de Luanda, primeiro liceu em Angola e percursor do Liceu Nacional Salvador Correia, que se situava na esquina, onde se situavam algumas repartições dos Serviços de Instrução, e o edifício da sede da Mocidade Portugesa em Angola (na Avenida do Hospital). Por volta de 1969/70, ambos os edifícios ficaram vazios com a transferência das todas as repartições dos Serviços de Educação, incluindo a Mocidade Portuguesa, para o novo complexo de edifícios do estado que se construiu a leste do Hospital Militar e da Maternidade de Luanda, à entrada da estrada de Catete. No seu lugar construiu-se um novo prédio muito grande com cerca de dez ou doze andares. Por trás desses edifícios encontrava-se a Escola José Anchieta (Nº 12) que tinha um grande espaço em frente, com os ditos campos de futebol e de basquetebol.
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O antigo edifício da Mocidade Portuguesa, na antiga Avenida do Hospital
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O antigo Parque Heróis de Chaves (hoje Parque
da Liberdade) foi para muitos rapazes e raparigas da minha geração o lugar onde fumaram o
primeiro cigarro, onde leram o primeiro livro em absoluto descanço, o
lugar do primeiro beijo longo, e o lugar de onde têm as melhores
memórias de namoro com as suas "miúdas e namorados".
Na rua traseira do Liceu Paulo Dias de Novais (então Rua Henrique de Carvalho que ia dar à Imprensa Nacional e ao Bairro do Saneamento, hoje Rua 17 de Setembro), mesmo junto ao complexo da antiga Messe dos Oficiais do Exército Português, havia uma barroca muito funda, longa e íngreme, que era um dos lugares predilectos para onde os alunos do Liceu Paulo Dias iam fumar quando tínham borla de aulas ou quando fugavam às aulas. Como não podia deixar de ser, eu gostava de explorar essas barrocas, que iam até à estrada que ligava o Bairro da Samba à Praia do Bispo, onde hoje se situa o monumento ao Presidente Agostinho Neto. Um dia, no meu quarto ano, estando eu mesmo em cima da berma da barroca, perdi o equilíbrio e caí aos trambulhões até chegar ao fundo da barroca. Foi uma queda longa e horrível que me deixou bem ferido depois de bater em muitas pedras ao longo da queda, pois tiveram que me levar para o Banco de Urgência do Hospital Central (que era bem perto), onde me tiveram que consertar com mais de trinta e oito agrafos na cabeça e muitos cortes no corpo todo.
O acontecimento mais triste que me lembro do Liceu Paulo Dias de Novais foi a morte do nosso colega Licas (Eusébio)
depois de contraír o virus da raiva de um cão raivoso que o mordeu duas
semanas antes. O Licas, que morava no Bungo, era muito popular, pois para muitos ele era o
melhor jogador de futebol do liceu (se bem que outros davam esse título
ao Dédé). Para tornar esse acontecimento ainda mais trágico, o
pai do Licas teve um ataque cardíaco e morreu ao tomar conhecimento da
morte do seu filho. A morte de ambos foi muito sentida no liceu.
Quando
ainda vivíamos na Damba eu também fui mordido por um cão raivoso,
quando estava a brincar no quintal com o meu irmão Rui. Mais uma vez foi
ele quem me salvou pois para me defender do cão, ele atirou-lhe uma
telha de barro bem pesada com tanta força que matou o pobre animal.
Levaram-me a mim e ao cão imediatamente ao hospital e concluiram que o cão estava
raivoso, pelo que tive de tomar injecções de soro anti-rábico na
barriga todas as manhãs durante os próximos trinta dias, com uma seringa
tão grande que parecia mais um copo (bem longo) de beber água, e com
uma agulha ainda mais grossa. Lembro-me que durante esse tratamento a
minha barriga inchou em vários pontos.
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Dois estudantes portugueses em uniforme da Mocidade Portuguesa
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Como estudante do Liceu Paulo Dias de Novais, nós tínhamos de participar uma vez por semana nas actividades da Mocidade Portuguesa (MP) Esta era uma organização estatal de raíz fascista pré-militar para a juventude, que oferecia também outras actividades como campismo, desportos náuticos (remo e vela), aeromodelismo, cursos de portugalidade, e outras. Nessas actividades, nós tínhamos de estar fardados com o uniforme da Mocidade Portuguesa (cação castanho, camisa verde, emblema da MP, e cinto com o "S" de Salazar). Consoante o progresso do aluno ou aluna, haviam postos de hierarquia a saber, membro não graduado (raso), Chefe de Quina, Arvorado em Comandante de Castelo, Comandante de Castelo, Comandante de Bandeira, e Comandante de Falange (o mais alto posto). A Mocidade Portuguesa tinha duas grandes divisões: a masculina (MP) e a feminina (MPF). O parque de campismo na zona da Floresta da Ilha de Luanda era o lugar onde os acampamanentos tinham lugar, onde, com muita frequência, os popualares "gambuzinos" afectavam os mais inocentes. Eu fui a três acampamentos da Mocidade Portuguesa na Floresta da Ilha e na área da praia de Belas, a sul de Luanda. O pavilhão náutico da Mocidade Portuguesa na Ilha de Luanda oferecia o melhor equipamento e programas para desportos náuticos como natação, vela, e remo. A Mocidade Portuguesa operava também as colónias de férias no litoral, que traziam a praia a muitos estudantes do interior de Angola, dos quais se destacava a Colónia de Férias na Ilha de Luanda.
Dos professores que tive no "Paulo Dias", realço o seu primeiro reitor Dr. Álvaro dos Santos Saraiva de Carvalho, homem de grande conhecimento e iniciativa que fez uma grande obra como reitor (que tinha vindo do Liceu Salvador Correia, onde era conhecido pale alcunha de "Carapau"), a Dra. Judite Morais, professora de História, que inspirou em mim o interesse pela História, a Dra. Maria Amélia (Matemática), que dando sempre muito trabalho de casa me ajudou a abraçar a Matemática, a Dra. Paulina Bento Ribeiro (Francês), que tinham sido alunas do Liceu Salvador Correia em Luanda, e em especial o Professor Eduardo Zink (de Desenho), que me ajudou a compreender melhor a criação artística e as diversas escolas de pintura, o Dr. Polidoro de Oliveira (Português) que despertou em mim o gosto pela leitura e criação literária, e do Padre Eduardo André Muaca (Religião
e Moral) pois que com os seus ensinamentos e exemplo exerceram uma
grande influência positiva na minha formação como pessoa e cidadão.
No Quinto Ano, como finalistas do Liceu Paulo Dias de Novais, nós organizámos uma excursão de autocarro ao centro e Sul de Angola, até Moçâmemedes que durou cerca de duas semanas. Nesta viagem, nós visitámos a vila do Dondo, Quibala, Cela, Nova Lisboa, Caconda, Sá da Bandeira, Vila Arriaga, Caraculo, Moçâmedes, Quilengues, Benguela, Lobito, Novo Redondo, Porto Ambím, e Vila Nova do Seles, da qual guardo boas recordações.
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Prédio do Antigo Hotel Angola, na antiga Avenida do Hospital, mais tarde sede da Polícia Judiciária em Luanda |
Em casa e em família, o meu nome era Dézito, mas no bairro e no liceu, eu era mais conhecido por Chinguila. Esta alcunha teve origem num episódio de brincadeira que não esqueço. Em 1963, eu tive um explicador angolano, de nome Eduardo Castelbranco, que era filho (ou neto, não estou certo) do historiador Francisco Castelbranco, que publicou a primeira História de Angola em 1932. Lembro-me que a minha mãe conhecia a sua mãe e tinha grande estima e respeito por eles, pois eram uma das famílias angolanas antigas mais respeitadas e conhecidas de Luanda. Ele morava no rés-do-chão de um prédio na Rua Guilherme Capelo, no Bairro do Café, mesmo perto da antiga Escola Comercial Vicente Ferreira. Ele era tinha à volta de trinta e cinco anos, com um corpo muito grande, era muito inteligente, e ainda mais bonacheirão ao mesmo tempo. Ele era também um angolano nacionalista ferrenho, e por isso andava a ser perseguido pela PIDE. Eu tinha explicações à tarde, e normalmente chegava sempre antes da hora, de forma que brincava com os outros alunos num terreno baldio (vazio) situado mesmo ao lado do prédio até à hora da aula começar. Uma tarde, o Eduardo Castelbranco, perguntou-me qualquer coisa relacionado com o trabalho de casa a que eu não respondi correctamente, pelo que ele me lembrou que seria melhor estudar um pouco mais, do que andar "a subir árvores por aí como um pechinguila". Daí, o termo "Pechinguila" ficou, e todos me passaram a chamar "Pechinguila". Mais tarde, usando uma palavra mais simples, alguns amigos passaram a chamar-me "Chinguila", que por sua vez, se transformou mais tarde em "Xinguila". Assim, a alcunha "Xinguila" não tem qualquer conotação com o homónimo umbundo "Xinguila", e menos ainda com qualquer acção negativa, muito pelo contrário, pois se relaciona comigo antropóide trepando árvores como um pechinguila...
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O emblemático edifício do Banco de Angola, cartão de visita de Luanda, 1960s
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Já que estamos no tópico de explicadores, recordo aqui com muita saudade o engenheiro Sebastião Pessoa,
que foi meu explicador de Inglês, Matemática, e ciências
Físico-Químicas no Quinto Ano. Uma pessoa verdadeiramente extraordinária
que me ajudou a abrir os olhos a ver o mundo menos como um espectador e
mais como um agente. O engenheiro Sebastião Pessoa (sempre de cara
séria, um tanto austero e estóico) teve uma influência extraordinária na minha formação como pessoa,
pois despertou em mim a cusiosidade por aprender e estudar mais a fundo
o mundo à minha volta, ao mesmo tempo que o fazia com disciplina mais
rigorosa. O Engenheiro Sebastião Pessoa era casado com uma senhora
inglesa (que não me consigo lembrar do nome) e tinha uma filha de três
anos (a Michelle) que um dia caíu da varanda do terceiro andar onde
viviam. Contra todas as expectativas, a pequena Michelle sobreviveu. No meio desta
tragédia terrível ela teve sorte pois a velocidade da sua
queda foi amortecida à medida que ela caía sobre os arames de pendurar a
roupa em cada um dos três andares do prédio (e os rebentava à medida
que os passava na sua queda), antes de chegar ao chão, o que amorteceu muito a sua queda.
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Mais uma leva de gente no Ca Posoka para o Mussulo num fim-de-semana |
13. Luanda na Década de 1960
No
dia 20 de Abril de 1963, choveu muito mais do que o normal em Luanda o
que causou muitas enxurradas e desabamentos de terra na Baixa da cidade
e alagou a maioria dos muceques. Houve alguns mortos,
mas a maioria das ruas da Baixa ficaram soterradas pelas terras que se
tinham desprendido ao cimo das ruas Vasco da Gama (actual rua da
Missão) e Nossa Senhora da Muxima (logo abaixo do Museu de Angola. O
cruzamento principal da Baixa entre as ruas Salvador Correia (actual rua
da Raínha Jinga) e Pereira Forjaz (actual rua Amilcar Cabral), onde se
encontravam as lojas e escritórios mais importantes da cidade ficou atolada com
quase dois metros de terra, mas o cruzamento entre a calçada íngreme em
que se situava a Revista Notícia (Calçada Gregório Ferreira, actual Rua
Cirilo da Conceição Silva), e o princípio da Rua Direita (na vizinhança
da firma Robert Hudson, então representante dos carros Ford em Angola) foram os mais
afectadas com mais de três metros de terra. As obras de limpeza e
reabilitação duraram meses a concluir, e um grande paredão foi
construído em cimento armado mesmo a oeste da Rua da Nossa Senhora da
Muxima (actual rua Giorgi Dimitrov) e leste da Rua Direita para evitar
que o mesmo pudesse acontecer no futuro.
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O grande buraco causado pelas enxurradas de Abril de 1963 na Rua de Nossa Senhora da Muxima em Luanda, em frente ao antigo Colégio de São José de Cluny |
Um
dos passatempos preferidos dos nossos tempos de então era completar
colecções de cromos sobre os tópicos mais variados. Assim, como não
podia deixar de ser, eu também abracei essa onda completando várias
colecções, incluindo História de Portugal, Raças Humanas, O Mundo Animal, Maravilhas do Mar, História do Automóvel, Os Dez Mandamentos, Ben Hur,
e outras que agora já não me lembro. Nós comprávamos os cromos em
pacotes de três por meio angolar (50 centavos), e como comprávamos muito
pacotes com cromos repetidos, o mercado de troca de cromos repetidos era muito
activo. Cada colecção tinha sempre alguns cromos que eram muito raros, o que
fazia subir muito o preço desses cromos quando os trocávamos com amigos. Eu referi-me acima a "angolares", mas de facto eles já não existiam pois tinham sido substituídos por "escudos" em 1954, mas o termo "angolar" ficou na gíria popular por mais alguns anos e poucas eram as pessoas que não o usavam.
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Antigo Brazão da Cidade de Luanda
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Em termos de revistas de juventude, os mais populares eram as revistas "O Mundo de Aventuras" (de cowbois e índios), e ainda as revistas das aventuras de Tin-Tin, e a revista "Cavaleiro Andante".
Para raparigas, as novelas e fotonovelas da Agência Portuguesa de Revistas, eram as mais populares. Uns anos mais tarde, à medida que nos tornavamos mais "adultos", lía-se também muito a revista "Plateia", de que eu não era um fan fervoroso.
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Plano da cidade de Luanda em 1816, com vista da Baía e edifícios principais
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Para
muitos de nós o evento mais importante do ano era o famoso Grande
Prémio de Angola (Circuito da Fortaleza) organizado anualmente pelo ATCA
(Automóvel e Touring Clube de Angola). O nosso primeiro ídolo foi
Álvaro Lopes, que ganhou as primeiras corridas, seguido de António
Peixinho e Nicha Cabral, e Silveira Machado. O Grande Prémio de Angola
cresceu de dimensão e importância tornando-se um dos mais importantes
provas de competição de carros em África, atraindo muitos automobilistas
de renome como Lucien Bianchi e David Piper e marcas Fórmula 1 como a
Porsche, Ferrari, e Lotus, e outras. Eu lembro-me que o bilhete de
entrada para as corridas era caro, mas nós arranjámos sempre maneira de
assistir às corridas de borla (sem pagar).
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O Grande Prémio de Angola - Circuito da Fortaleza em Luanda, 1967 (o Sobrado a que me referi no começo deste blogue, pode ver-se claramente à esquerda nesta fotografia) |
Os
desportos mais populares nesse tempo era o futebol, basquetebol, hóquei
em patins, futebol salão, andebol, voleibol, natação, vela, remo, e
ténis. Para além do Sporting Clube da Maianga, os principais clubes de
Luanda eram o Sporting Clube de Luanda, o Sport Luanda e Benfica, o
Clube Atlético de Luanda, o Futebol Clube de Luanda, o Clube Ferroviário
de Luanda, o Futebol Clube Vila Clotilde, o Centro Desportivo
Universitário de Angola (CDUA), e o Atlético Sport Aviação (ASA). Em
geral, o Sporting e o Benfica dominavam a maioria das modalidades de
desporto, mas o Vila Clotilde tinha boas equipas de basquetebol, e o ASA
tinha uma boa equipa de futebol. Angola foi durante alguns anos campeã
nacional de hóquei em patins graças às excelentes equipas em Moçâmedes
(Atlético e Sporting) e Lobito (Lobito Sports Clube). O Sporting Clube de Luanda tinha um programa de ginástica muito bom. Em termos de
desportos aquáticos, nós tínhamos em Luanda (no Clube Desportivo Nun'Álvares e Clube Naval de Luanda) excelentes nadadores e velejadores.
Devido à qualidade (e popularidade) do desporto da vela, ralizou-se em
Luanda em 1969 o Campeonato Mundial de Snipes, em que os angolanos Paulo Santos e Fernando Silva conquistaram a medalha de bronze qualificando-se em terceiro lugar. O Clube de Ténis de Luanda (no
bairro dos Coqueiros) também tinha tenistas de renome, mas era um clube
manifestamente elitista. O Clube de Caçadores de Angola era mais um clube
social do que desportivo, mas que oferecia bons torneios de tiro aos
pratos e aos pombos, e organizava a festa de passagem de ano mais
desejada em Luanda - o reveillon do Clube dos Caçadores.
Lembrando o Clube Desportivo Nun´Álvares, não esqueço que um dia megulhei de chapa a toda a velocidade e às cegas na piscina não sabendo que havia apenas cerca de trinta centímetros de água. Maluquices que nunca esquecemos... Felizmente "aterrei" bem de "chapa perfeita" e nada de mal aconteceu.
Por falta de instalações próprias, as equipas do Sporting Clube da Maianga treinavam em locais diferentes (futebol no campo do ASA (Atlético Sports Aviação, situado para além do Aeroporto), basquetebol nas antigas instalações do Sport Luanda e Benfica (entre o Rádio Clube e o Cinema Tropical, que mais tarde mudou para nova sede e campos no Eixo Viário), e hóquei em patins no estádio da Ilha, junto ao Clube Nun'Álvares. Contudo, já em 1972 o Sporting Clube da Maianga construiu instalações desportivas próprias na zona do Rio Seco, mesmo atrás de onde se situava a nossa casa. Para o Maianga esta importante iniciativa foi a realização de um sonho de há muito anos para os seus sócios e atletas.
Se bem que não tão popular como o cinema, o teatro ainda tinha um número de fans em Luanda, sendo o Cine-Teatro Nacional, mesmo abaixo do Largo Afonso Henriques (também conhecido como largo da Obras Públicas, pois era onde se situava a sede desse departamento do governo)
Nos
nossos anos de juventude em Luanda ainda não
havia televisão, pelo que a rádio era a fonte de informação preferida e o cinema era a forma de entertenimento mais popular em
Luanda. Havia quatro emissoras de rádio (o Rádio Clube de Angola, a
Emissora Oficial de Angola e a Voz de Angola (ambas operadas pelo governo), e a Rádio
Eclésia (Emissora Católica de Angola), operada pela Igreja Católica.
O cinema era a forma de entertenimento mais popular em Angola desse tempo. Havia dois tipos de cinemas em Luanda: as salas de cinema propriamente ditas e as
esplanadas de cinema. A melhor sala de cinema era o Cinema Restauração,
construído em 1953 na Avenida do Hospital.O cinema Cine Bar Dancing
Tropical na Avenida Brito Godins (actual avenida Lenine) era um
cine-dancing, onde as pessoas se sentavam como se estivessem num bar,
podendo mandar vir comida e bebidas, ao mesmo tempo que viam o filme. O
cinema Tropical podia facilmente reconfigurar-se num grande salão de
dança, onde se organizavam grandes bailes e casamentos. O Cine-Teatro
Nacional, situado junto ao Largo Dom Afonso Henriques, era o
cinema mais antigo de Luanda e onde as peças de teatro tinham lugar. O
Cine Colonial, no Bairro de São Paulo era o cinema para as massas mais
pobres da cidade, onde os espectadores avisavam os artistas de cowboys no ecran
da presença de bandidos (ou Índios) prontos a os matar. Em termos de
cine-esplanadas, o Cine-Esplanada Miramar era o mais belo de todos, muito bem ajardinado e com
vistas magníficas da baixa da cidade, da avenida Marginal, e da Ilha de Luanda. O Cine-Esplanada Aviz, no Bairro
de Alvalade era também muito bom, mas não tinham vistas espantosas que o Miramar oferecia. O Cine-Esplanada Tivoli, situado no Bairro Azul (Samba) também muito bonito, mas mais pequeno que o Miramar e o Aviz, servia os bairros sul de Luanda. O
último grande cine esplanada a ser construído em Luanda foi o Cine-Esplanada Império,
à entrada do Bairro da Vila Alice, perto da Escola Industrial de Luanda. O Cinema Império era muito bonito e muito grande com
dois paineis muito grandes pintados em cada lado do ecran pelo nosso
professor de desenho no Liceu Paulo Dias de Novais, professor Eduardo
Zink. Já na década de 1970, mais salas de cinema e cine-esplanadas foram
construídoss como o Studio (junto ao cinema Restauração), o Cine São
Paulo, o Cine Kipaka no Bungo, a esplanada Ngola Cine, e outros, que eram mais pequenos e mais cinemas
de bairro e clubes recreativos. Haviam nesse tempo duas firmas distribuidoras de filmes em Angola: a Angola Filmes Limitada, que eram os proprietários dos cinemas Restauração, Império, Tropical, Nacional, e Colonial, e a Cine Angola Limitada que era proprietária dos cinemas Miramar e Avis. Os filmes eram apresentados geralmente à noite (soirée) durante os dias de semana, mas ao fim de semana também ofereciam sessões à tarde (matinée). A sala de cinema Stúdio, adjacente ao Cinema Restauração, oferecia também segundas sessões à Sexta e ao Sábado, que começavam perto da meia-noite. Ao sábado, o Cinema Restauração oferecia o popular evento de variedades "Chá das Seis" onde vinham actuar os artistas mais populares de Luanda, e se realizavam concursos que ofereciam aos espectadores bons prémios e bom dinheiro.
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O Cinema "Restauração" em Luanda, 1970s. Anexo, ao lado esquerdo, estava o novo cinema "Studio" |
Dito tudo isto, o cinema onde eu ia com mais regularidade e frequência era a
cine-esplanada do
Sporting Clube da Maianga, onde fui atleta, situado na Rua João Seca
mesmo à frente da nossa casa, que oferecia filmes quatro vezes por
semana (terça-feira, quinta-feira, sábado, e domingo), e como eu era
atleta do clube, eu tinha entrada gratuita para os filmes. A esplanada
de cinema do Sporting Clube da Maianga oferecia somente filmes que já
tinham sido apresentados anteriormente noutros cinemas em Luanda, pois por norma comercial os filmes novos só se estreavam nos grandes cinemas da cidade. Ao domingo à tarde, o Sporting Clube da Maianga oferecia um matinée dançante, que era muito concorridapelos jovens do bairro e não só.
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O popular actor mexicano de cinema Cantinflas (Mário Moreno), muito popular nos cinemas de Luanda na década de 1960s (1963) |
Em termos de teatro, o Cine-Teatro Nacional (o mais antigo cinema de Luanda) foi durante muito tempo o único teatro em Luanda, se bem que fosse mais um cinema do que um teatro. Contudo, o antigo Nacional era onde as revistas de teatro portuguesas eram apresentadas quandi vinham a Luanda, e era onde o Grupo de Teatro Infantil Cremilda Torres oferecia peças de teatro infantil ao domingo à tarde. Já nos fins da década de 1960s, o Teatro Avenida foi construído ao fundo da Avenida dos
Restauradores de Angola (actual avenida Raínha Jinga), passando a ser a única casa de espectáculos exclusivamente dedicada ao teatro em Luanda. A vida noturna era relativamente activa com muitas boates (night-clubs) muito concorridos por jovens, e alguns que atendiam a uma clientela mais adulta.
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O antigo Teatro de Luanda, substituído em 1969 pelo Teatro Avenida
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Em
termos de influência cultural, a sociedade angolana desse tempo estava
sujeita a duas fontes de influência primordiais que se degladiavam
abertamente no quotidiano, e de duas fontes secundárias. As duas fontes
principais eram a luta pela sobrevivência da cultura ancestral e
tradicional dos povos de Angola e da expansão da cultura crioula por um
lado (uma vertente um tanto nativista, dita "angolense"), e por outro do
esforço de "portugalização" através do esforço português de dominação
colonial. As duas fontes secundárias incluiam a influência cultural
brasileira e latina de um lado, e da importação de padrões culturais de
pop-culture internacional.
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Raúl Indipo e Milo MacMahon em Luanda (o famoso Duo Ouro Negro)
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O que passava no quadro da música é um
exemplo bom deste conjunto de influências: em Angola ouvia-se nas
estações de rádio muita música angolana sendo o Duo Ouro Negro e Ngola Ritmos os mais populares, e cantores de renome como a Lilly Tchiumba, Sara Chaves, Dinah Jardim, Conchita Mascarenhas, Fernanda Ferreirinha, Eleutério Sanches, Eduardo Nascimento, e outros.
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O popular conjunto musical "Os Jovens", Mário Bento Catela à frente, 1966
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Os conjuntos de musica pop mais populares eram "Os Rocks", "Os Jovens", e "Os Windies". A música crioula de Cabo Verde (Morna e Coladera) era també muito popular, sendo o conjunto "A Voz de Cabo Verde" e o seu vocalista Bana os que mais destaque tinham, se bem que se ouvissem muito na rádio músicas baseadas na poesia de Eugénio Tavares (quem esqueçe Ó Mar Eterno?) Havia também muita música portuguesa (fado, música popular, e música folclórica, Amália Rodrigues, Alfredo Marceneiro, Max, Teresa Tarouca, Tony de Matos, Lucilia do Carmo, Maria Teresa de Noronha, Carlos do Carmo, Teresa Silva Carvalho e outros), uma boa
quantidade de música popular brasileira e latina (Samba, Bossa
Nova, e Tango, Ângela Maria, Roberto Carlos, Carlos Gardel, Los Índios Tabajara, Los Machucambos, Los Panchos, e outros), e música internacional
(pop-music (americana, francesa e italiana), Elvis Presley, Charles Aznavour, Adamo, Gianni Morandi, Beatles e outros), orquestras (Mantovani, Ray Conniff, James Last, e outras) e música clássica, todos contribuindo
para o todo cultural angolano mais expandido e em contínuo desenvolvimento.
Podemos dizer que o universo das belas artes (arquitectura, escultura, pintura, música, literatura, dança, e cinema) em Luanda era muito activo e estava sempre muito presente na vida da cidade. É certo que não havia um estilo arquitectónico angolano, mas haviam muitos edifícios que se destacavam pela sua beleza artística, e ainda embora não tivéssemos ainda um cinema e uma escultura angolana, mas quanto ás restantes formas de arte havia em cada uma um estilo angolano que se revelava facilmente. Tínhamos um estilo de música angolana, um estílo de pintura angolano, uma literatura angolana.
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O famoso conjunto N'Gola Ritmos - Liceu Vieira Dias, Nino Ndongo, Bélita Palma, Amadeu Amorim, Lourdes VanDunen, e Zé Maria
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Desde os muito cedo que se ouvia muito música em nossa casa, pois a nossa Mãe adorava música, especialmente música clássica, e ela incutiu em nós o gosto pela música. Como resultado disso, o meu irmão Rui tocava gitarra muito bem e era membro de um conjunto musical, e a minha irmã Ema completou o curso de piano do Conservatório de Música de Lisboa. A minha irmã Dilar tinha uma colecção muito extensa de discos LP. Eu gostava muito de ouvir música clássica no Programa 2 da Emissora Official de Angola sempre que podia. Para mim, as obras mais preferidas eram "O Casamento de Fígaro", de W. A. Mozart (1756-1791), a "Quinta Sinfonia" de L. Bethoven (1770-1827), a ópera "Aida" de G. Verdi (1813-1901), a "Cavalgada das Valquírias" de R. Wagner (1813-1883), a "Abertura de 1812" de P. Tchaikovsky (1840-1893), a "Sinfonia do Novo Mundo" de A. Dvorjak (1841-1904), "Madame Butterfly" de G. Puccini (1858-1924). As obras preferidas da minha Mãe era a música ligeira de A. Ketelby (1875-1959), em especial "Num Mercado Persa", e as canções do grande tenor Mário Lanza (1921-1959), em especial "Be My Love" e "Oh Paradiso", que eu ainda hoje continuo a ouvir sem me cansar nunca.
É curioso, mas eu nunca pensei na influência que a música clássica havia de ter para o resto da minha vida, mas o certo é que um dos maiores prazeres que tenho na vida até hoje é ouvir calmamente peças de música clássica, o que tento realizar todos os dias, não importando quantas vezes ouço a mesma peça. Eu penso que a música, não só clássica mas também a popular, me ajudou a transbordar o horizonte da minha mente para uma dimensão mais universal, do todo fechado e controlado que era Angola.
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O edifício do antigo Museu de Angola
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O Museu de Angola, fundado em 1956 e situado na antiga Rua Nossa Senhora da Muxima, mesmo em frente ao Colégio de São José de Cluny (edifício construído em 1948 e hoje usado pela Universidade Católica de Angola) e logo abaixo do Mercado de Quinaxixe, era a melhor institutuição a visitar para quem quizesse aprender um pouco mais acerca de Angola, com uma secção de cinegética (animais selvagens embalsamados) muito boa, com uma amostra muito impressionante dos animais selvagens mais típicos de Angola. De igual modo, mas não tanto impressionante, havia uma secção etnográfica onde havia uma amostra razoável de arte e utensílios dos diversos grupos étnicos de Angola, e uma secção de obras de pintura e escultura de artistas angolanos. O Museu de Angola tinha também uma sala de conferências onde se realizavam colóquios importantes. O Museu de Angola publicou ainda alguns livros importantes sobre a história dos portugueses em Angola.
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Antigo monumento aos Mortos da Grande Guerra, Largo dos Lusíadas (Quinaxixe, Maria da Fonte), em Luanda, 1940s
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Mais na temática de história de Angola, a Fortaleza de São Miguel, se bem que não aberta ao público como um museu pois era um forte militar, tinha uma colecção de azulejos muito única mostrando os momentos mais importantes da história dos portugueses em Angola. No campo das artes plásticas, o centro de exposições do CITA, na baixa de Luanda, oferecia numa base regular exposições de artistas locais e estrangeiros. O Instituto de Angola, na calçada de Santo António, situado em frente às instalações da antiga Rádio Eclésia, era também uma instituição cultural muito apreciada em Luanda.
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Bilhete de avião da DTA, 1970
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Entre
Dezembro e Março, nós íamos sempre à praia. Quando o meu pai estava em
Luanda, íamos (toda a família) com ele de carro, de outra forma íamos
(eu e o meu irmão Rui e mais amigos do Bairro da Maianga) de autocarro de casa até à para a Mutamba (linha
3), a pé até ao largo Dom Fernando (entre os CTT e o prédio do snack-bar Polo
Norte) e daqui para a Ilha (linha 9). Devido ao trânsito e as duas
linhas de maximbombo que tínhamos de usar, nós tinhamos de ir muito cedo
e voltávamos já bem à tarde. Nós normalmente ficávamos a princípio da
Ilha, pois a viagem de carro ou de autocarro podia demorar horas com o
trânsito muito vagaroso, pois milhares famílias faziam o mesmo que nós. Lembro-me que o
meu Pai tinha dois lugares predilectos para almoçar na Ilha de Luanda, o s
restaurantes Restinga, Mar e Sol e Tamariz, mesmo à entrada da rotunda da Ilha, onde serviam
pratos de marisco muito bons. O restaurante Mar e Sol era uma esplanada
aberta de dois andares muito bonita, rodeada de palmeiras e outras
plantas que o separavam do burburinho da rua.
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Antiga Avenida dos Combatentes - à direita encontrava-se a estação dos correios onde íamos buscar o correio e na esquina estava a Cervejaria Mónaco
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Lembro-me
que a minha Mãe nos relembrava que tínhamos de poupar dinheiro durante a
semana para ter dinheiro para pagar o bilhete de maximbombo para a Ilha
(linha 9). De facto, como nós ainda tínhamos a caixa postal na estação dos correios da Avenida dos Combatentes, junto à antiga Cervejaria Mónaco, a minha Mãe dáva-nos dois escudos (um escudo para mim e um escudo para o meu irmão Rui), para irmos a pé (da Maianga à Avenida dos Combatentes) todas as semanas buscar o correio à estação dos Combatentes.
Com o meu Pai íamos sempre de carro também à praia da Ilha da Chicala (antiga
Ilha da Cabeleira, situada em frente ao bairro da Praia do Bispo, uma língua de areia formada a partir do açoreamento das areias trazidas pelo Rio Cuanza), à
praia da Corimba, à praia das Palmeirinhas, à Ilha do Mussulo, e à Praia
de Cabo Ledo. Durante as férias de Março íamos com frequência à praia
da floresta da Ilha, e à praia do São Jorge, e à praia da Ponta da Ilha,
mais tarde designada como a praia da Barracuda.
Já que estamos a falar de transportes, lembro-me que o meu pai ao longo
do tempo teve vários carros: uma carrinha Ford F-35 de cor azul clara,
na Damba, e em Luanda teve primeiro um Saab 96 (modelo 1958), um
Plymouth Fury (modelo 1959), um Renault Gordini (1962), e um Peugeot 203
(1962). Quando mudámos para Cabinda, ele tinha um Holden (1967, carro
fabricado pela General Motors na Austrália, com o volante à direita, um Jeep Willys amarelo (do tempo da Segunda Guerra Mundial, mas muito bem estimado), e um jeep Land Rover mais moderno de caixa
curta.
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O Peugeot 203, modelo 1958, igual ao do meu Pai
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Já
que mencionámos linhas de maximbombos (autocarros) havia quatro bases
principais: Mutamba, Largo Kinaxixe, Largo Dom Fernando, e Largo
Bressane Leite. Lembro-me que a linha 1 ia da Mutamba ao Palácio, a
linha 2 para a Casa Branca, linha 3 para a Maianga (bairro onde nós
morávamos), linha 4 São Paulo, linha 5 para os bairros da Vila Clotilde e
CAOP, linha 7 do Largo de Dom Fernando para o Hospital Maria Pia e
Samba, e Praia do Bispo, linha 8 da mutamba para a Vila Alice, Linha 9
do Largo de Dom Fernando para a Ilha, a linha 10 atravessava a cidade
ligando a Alameda Principe Real (rua António Enes e Bairro Miramar) e o
Palácio, linha 11 ligava o Largo Bressane ao porto de Luanda (através da
marginal), linha 12 a Mutamba aos bairros perto do Cemitério Novo (de Santana, na
estrada de Catete), linha 13 ligava o Largo Bressane Leite ao Hospital,
Samba, e Praia do Bispo, linha 14 ligava o Palácio ao Bairro do
Cruzeiro, linha 15 não me lembro, linha 16 ligava a Mutamba à Avenida
Brasil e Terra Nova, linha 17 ligava a Mutamba ao Bairro da Cuca, linha
18 ligava a Maianga ao Largo dos Lusíadas (Kinaxixe), linha 19 não me
lembro, linha 20 ligava a Mutamba ao Bairro dos Quarteis (acima do
Bairro de Alvalade), e linha 21 ligava o Largo Bressane Leite à Ilha do
Cabo.
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Largo da Mutamba em Luanda, 1964
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Em 1975, estimava-se que a população de Luanda era superior a meio milhão de pessoas (cerca de duzentos mil brancos e mestiços e cerca de trezentos mil africanos). Luanda, como capital de colónia era uma cidade dualista: a cidade do colono e a cidade do africano. Em termos gerais, pode dizer-se que o branco viviam em bairros com ruas de asfalto e com todos os serviços municipais, e o preto vivia no muceque, sem quaisquer serviços.
Loanda (dos tempos do antigamente, ainda escrita com "o") foi durante a maior parte da sua história, uma povoação relativamente pequena, se bem que foi sempre o maior porto negreiro na costa ocidental de África. Da pequena povoação que começou na Ilha, Luanda foi evoluindo aos poucos ao longo dos séculos. A povoação de Luanda começou de facto na Ilha das Cabras (mais tarde chamada Ilha de Luanda), onde os habitantes originais (os Axiluanda) viviam há muitas gerações. Era na Ilha das Cabras que o Rei do Congo obtinha o zimbo, que era um búzio único à Ilha de Luanda que era usado como a moeda corrente no Reino do Congo. Quando os Os primeiros residentes portugueses se estabeleceram na Ilha de Luanda na década de 1530, já lá residiam cerca de três mil Axiluanda.
Os portugueses foram atraídos à Ilha das Cabras pelo tráfico de escravos para os engenhos de açúcar nas ilhas de São Tomé e Príncipe. Em 1575, quando o seu fundador o donatário Capitão General das Terras de Sebaste Paulo Dias de Novais chegou à região, já cerca de quarenta portugueses lá viviam.
Paulo Dias de Novais mudou a povoação da Ilha para terra firme em Fevereiro de 1576. Em breve a pequena povoação começou a crescer a partir de dois polos principais: a Baixa e a Cidade Alta. A Baixa era onde os comerciantes, artesãos, e soldados viviam (povoação comercial), e a Cidade Alta onde o governador e os seus funcionários, o bispo e o clero, e as altas patentes militares viviam (instituições de governo). Nesse mesmo ano começou a construção da Fortaleza de São Miguel (com um forte em madeira) e da Igreja de Nossa Senhora do Cabo, na Ilha de Luanda. Em 1605, durante o primeiro governo de Manuel Cerveira Pereira, foi concedida à povoação a carta de foral de cidade que oficialmente se passou a chamar Cidade de São Paulo da Assunção de Luanda, sendo assim empossado pouco depois o primeiro senado da câmara. Em 1623, no tempo do governador João Correia de Sousa, foi fundado na Cidade Alta o Colégio dos Jesuítas, o único na costa ocidental de África. No mesmo ano, são completadas as remodelações do edifício da Câmara, açougue e cadeia para o novo Palácio do Governador. A Fortaleza de São Miguel foi reconstruída em 1634, mas os holandeses atacaram e conquistaram Luanda com uma grande esquadra em 1641. Para fugir ao ataque holandês e preservar a soberania portuguesa na bacia do rio Cuanza, a sede de governo português é transferida provisoriamente para a Vila de Massangano (na confluência dos rios Cuanza e Lucala), até a soberania portuguesa ser restaurada por Salvador Correia de Sá e Benevides em 1648.
Em 1684 a sede do Bispado do Congo foi transferida definitivamente para Luanda. Luanda recebeu um grande impulso durante o tempo do governador Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, nomeado pelo Marquês de Pombal. Em 1766 foi construído o Forte de São Francisco do Penedo e em 1769 é estabelecida a Aula de Geometria e Fortificação. Terreiro Público 1765, Alfândega em 1770, e o Trem em 1771).
Em 1834 a administração municipal passou do Senado da Câmara para a Câmara Municipal.
Em 1889 foi inaugurada a ligação de água corrente a Luanda.
Novos ventos sopraram em Luanda com a abolição da escravatura em 1836 e com a abertura do porto ao tráfico marítimo estrangeiro em 1844. Gradualmente, Luanda passa a ser sede de governo de uma colónia de exploração de produtos coloniais, à medida que o tráfico de escravos continuava ilegalmente até 1888 sob patrulha de navios britânicos ao longo da costa de Angola. Em 1865 o Banco Nacional Ultramarino abriu a sua agência em Luanda, e em 1889 o Caminho de Ferro o Ambaca estabeleceu ligações regulares com o hinterland do Ambaca e Malange. Em 1857 é fundado o antigo Observatório João Capelo, e em 1883 começa a operar o Hospital Maria Pia (hoje Josina Machel).
Manuel da Costa Lobo, na sua preciosa obra "Subsidios Para a História de Luanda", edição do autor, Lisboa, 1967, descreve brevemente os bairros de Luanda Antiga, que pela sua importância, passo a transcrever (de direcção norte para sul) com adaptações para reflectir locais actuais:
Bairro das Quipacas - onde está situada a estação (ferroviária) da Cidade Baixa
Nazaré - Onde está a Ermida (de Nossa Senhora) da Nazaré
Bungo - Desde Nazaré até à Kaponta (onde se encontra o actual edifício do Banco Nacional de Angola)
Kaponta - onde estava situado o antigo mercado municipal
Katomba - onde foi a antigo Largo de António de Oliveira Cadornega (que ainda não sei onde era)
Mutamba - Actual Largo da Mutamba
Mazuika - nas trazeiras da Igreja do Carmo
Kafako - área em frente à Universidade Católica (antigo Colégio de das Irmãs de São José de Cluny), incluindo os terrenos adjacentes ao antigo Museu de Angola e da Missão Metodista até à Rua Luis de Camões, abaixo do antigo Mercado do Kinaxixe.
Maculusso - Situado no actual bairro do mesmo nome. Maculusso é um termo kimbundo que significa cruzes. Era o lugar onde antigamente se enterravam os indígenas e se punham cruzes sepulcrais.
Ingombotas - Localizado no bairro do mesmo nome
Sangandombe - Onde é hoje o Bairro dos Ferreiras - por detrás do edificio das Obras Públicas (em frente ao antigo Cinema Restauração) e onde, antigamente viviam os indígenas oleiros que fabricavam bilhas de barro preto.
Quibando - Local onde está agora o antigo Cine-Teatro Nacional
Katari - Onde é actualmente o Largo do Pelourinho. Em quimbundo Katari quer dizer lugar de suplício.
Remédios - nas imediações da actual Igeja de NOssa Senhora dos Remédios
Quitanda - Local onde se situava a antiga Quitanda-Grande, defronte do actual Largo Luis Lopes de Sequeira, junto à actual Avenida Nzinga Mbande
Coqueiros - Localizado no actual bairro do mesmo nome
Terreiro - Onde oje fica o Largo Infante Dom Henrique
S. Miguel - nas proximidades da Fortaleza de S. Miguel
Misericórdia - nas imediações da antiga Igreja de Nossa Senhora da Conceição
Maianga - Localizado no bairro do mesmo nome, atrás do Hospital
Os bairros mais antigos de Luanda eram a Baixa, a Cidade Alta, Ingombotas, Maculusso, e Maianga. Com o tempo e com a expansão gradual de Luanda ao longo dos séculos, e tendo em conta a geografia e a economia da cidade, antigos bairros e muceques desapareceram para dar lugar a novos bairros, numa renovação permanente. Já na década de 1970 Luanda era muito maior e tinha muitos
bairros, a saber e listando os mais antigos primeiro: Ilha, Baixa,
Coqueiros, Cidade Alta, Casuno, Praia do Bispo, Ingombotas, Maculusso,
Maianga, Boavista, Bungo, Bairro Operário, São Paulo, Bairro do
Cruzeiro, Samba, Bairro Azul, Bairro dos Ferreiras, Bairro do Café, Vila
Clotilde, Vila Alice, Bairro do Saneamento, Miramar, Bairro da CAOP,
Bairro Madam Berman, Bairro do Prenda, Bairro de Alvalade, Corimba,
Belas, Bairro da Cuca, Bairro da Precol, Samba Grande, Bairro Sarmento
Rodrigues, Terra Nova, Bairro Popular #1 e #2, Bairro Indígena, Bairro
da Mabor, Bairro Salazar, e Bairro Rebocho Vaz.
O desafio das obras em transgressão - Bairros da Corimba, Salazar e Prenda
Os muceques situavam-se por norma na periferia, e todos os bairros de Luanda se construiram "empurrando" os muceques sempre para a pariferia. Como exemplo, durante alguns séculos os terrenos que vieram dar origem aos bairros das Ingombotas e Maculusso, eram de facto muceques, onde se encontravam os quintais dos escravos durante os trezentos e cinquenta anos de escravatura.
Da mesma forma, Luanda tinha muitos muceques em 1975, a saber: Nossa Senhora do Cabo, Cazenga, Lixeira, Catambor, Mota, Rangel, Marçal, Sambizanga, Cemitério Novo, Bananeira, Zangado, Palanca, Golfe, Calemba, Chicala, Cidadela, Caputo, e Adriano Moreira.
Entre 1961 e 1974 Luanda cresceu muito como cidade. Não só prédios novos apareceram em todo o lado, como muitos bairros novos construídos, cada vez mais longe do centro da cidade. Contudo, é de de notar, que de uma forma geral, as moradias individuais da década de Cinquenta deram lugar a prédios de apartamentos nas décadas de Sessenta e Setenta, podendo dizer-se que Luanda estava a crescer mais "para cima" do que espalhar-se para os lados. Muitos dos prédios residenciais foram construídos por duas cooperativas de habitação - "O Nosso Abrigo" e "O Lar do Namibe".
14. Bairro da Maianga
Nos anos da década de Sessenta, o
Bairro da Maianga era um bairro de famílias europeis e africanas relativamente pobres e
remediadas mas de grandes pergaminhos em Luanda. Tinha à sua volta um
número de bairros em que as famílias tinham muito mais posses - Bairro
do Café, Bairro de Alvalade, Cidade Alta, Samba,) e menos posses (Catambor e Prenda), mas nenhum deles tinham as tradições da Maianga. Lembro-me que nós (os
miúdos) éramos muito engenhosos pois fazíamos os nossos próprios briquedos como arcos de aduela de barril,
trotinetas e carros de rolamentos de madeira, enquanto que nos bairros à
nossa volta os rapazes e raparigas com mais posses já tinham bicicletas. Atrás de onde
vivíamos havia uma Zona Verde muito grande e muito arborizada ao longo
do Rio Seco, que funcionava como um pulmão verde entre os bairros do
Café (ruas Guilherme Capelo, actual Rua Kwame Nkrumah) e Rua Cabral Moncada
(actual Rua Eduardo Mondlane), Maianga (Rua 28 de Maio) e perímetro abaixo do Bairro de Alvalade.
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O antigo Hospital Maria Pia em Luanda, onde Henrique de Carvalho serviu como capataz de obras (1865-1883) no local do antigo Convento de São José, ao cimo da Samba
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Era na encosta da Maianga, que separava a área baixa de Luanda do plateau acima dos bairro de Alvalade e Prenda (o plateau onde se situa o Aeroporto de Luanda) que se situavam em tempos passados duas das três famosas e históricas cacimbas (poço/fonte de água), a saber, a Maianga do Rei, a Maianga do Povo, e a Lagoa do Kinaxixe. De facto, o
termo "Maianga" tem origem no termo Kimbundo "Muazanga / Mayanga", o que
significa lagoa (lençol de água / lagoa / charco criado pela água da chuva.
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A antiga Maianga do Rei
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A mais antiga cacimba pública (maianga) de Luanda foi a Maianga do Rei, que foi estabelecida pelo Governador Manuel Cerveira Pereira, quando governou Angola entre 1603-07 na encosta do Prenda (a oeste da antiga Avenida Lisboa) para fornecer água aos moradores portugueses da Cidade Alta de Luanda, e para servir o antigo Convento de São José, onde mais
tarde se veio a construir o Hospital Maria Pia (actual Hospital Josefina Machel),
no alto da Samba.
A segunda cacimba, a Maianga do Povo, foi criada pelo Governador Salvador Correia de Sá e Benevides, quando ele governou Angola entre 1648 e 1651, situada no Bairro do Catambor já perto da Samba, mais acima
na antiga Avenida António Barroso (acima do Supermerado Martal (Martins
& Almeida de antigamente).
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A antiga Maianga do Povo
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O excesso de água das duas maiangas (do Rei e do Povo) corria para a Lagoa dos Elefantes, já situada na Samba ao longo do percurso do que viria a ser mais tarde a parte mais baixa do Rio Seco.
Infelizmente, quando nós lá vivemos
nos anos Sessenta, as cacimbas da Maianga já não funcionavam, pois tinham sido desactivadas em 1948 e designadas como património histórico em 1949, como resultado do fervor à volta das celebrações do Tricentenário da Restauração de Luanda em 1948. Mais tarde, já depois da Independência, ambos os monumentos foram esquecidos e foram eventualmente absorvidos pela expansão urbana e parcialmente destruídos, dos quais infelizmente restam
apenas alguns vestígios, conforme a figura abaixo.
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Vestígios da Maianga do Povo, agora absorvida pela expansão urbana e não defendida como património histórico de Luanda
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A terceira cacimba foi a Lagoa do Kinaxixe, estabelecida pelos padres
Carmelitas Descalços em 1670, acima dado Convento e Igreja do Carmo, que fornecia
água aos residentes das Ingombotas e Maculusso de então. Foi no bairro das Ingombotas que se estabeleceram os primeiros muceques de Luanda e os grandes quintais onde se guardavam os escravos. Mais acima, já no plateau, encontrava-se o grande cemitério de escravos do Maculusso (das Cruzes - Ma Culusses).
Já que nestamos no tópico de abastecimento de água a Luanda de outros tempos, cabe referir que a maior parte da água usada pelos residentes da Baixa de Luanda vinha do Rio Bengo, a cerca de vinte quilómetros norte, que era trazida até à cidade em barris e puxada a bois ou por escravos.
Quando
eu morei no bairro da Maianga, havia um outro poço privado de água (não para consumo público da população, pois em tempos idos se vendia água ao barril), que se situava logo
abaixo do Largo da Maianga, no princípio da antiga
Avenida António Barroso, não muito longe de onde era a antiga estação
dos Correios, no local da antiga Horta do Raposo (também já
inexistente), onde eu um dia encontrei um lagarto morto muito grande (com mais de um metro de comprimento),
mais do tamanho de um iguana.
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Bairro da Maianga, a Rua 28 de Maio (actual Karipande) é à esquerda (arborizada) |
Nós morávamos numa casa à entrada da Rua 28 de Maio. O nome da rua era em evocação à revolta liderada pelo general Sidónio Pais que estabeleceu o regime de Oliveira Salazar (o Estado Novo), que teve lugar em Lisboa ea 28 de Maio de 1926. Muito embora mais de sessenta e cinco anos se tenham passado, vou tentar descrever em pormenor o universo dos nossos vizinhos e amigos (quem vivia e aonde nessa altura em que lá vivemos), ciente de que me possa estar a esquecer de alguém, pelo que peço desde já desculpa pela omissão não intencionada e agradeço também desde já a correcção. A casa era geminada e alugada e o senhorio era o Sr. Alípio Pires, então já
reformado depois de ter trabalhado muitos anos para o Tribunal da
Relação de Luanda. Ele tinha duas filhas mestiças talvez dez anos (ou
mais) mais velhas do que nós. Nunca soube o nome delas. A nossa casa tinha um pequeno quintal à frente e outro atrás (ambos acimentados), este
também pequeno e com uma goiabeira plantada no centro. Atrás do quintal
havia um anexo que estava arrendado a uma família (pai, mãe e filha) em
que o pai trabalhava na construção civil. Infelizmente, já não me lembro do nome deles.
À entrada da rua junto à bifurcação com a Rua 5 de Outubro, do lado esquerdo de quem entra do lado da rua da nossa casa) viviam os o Carlos Russo e irmã Laura e o Jorge Pinho que era hospedado e que a família vivia um pouco a sul da Ilha do Mussulo. O Carlos Russo e a Laura eram alunos da Escola Comercial, e o Jorge Pinho era um aluno muito bom do Instituto Industrial de Luanda. O nome da rua 5 de Outubro era em evocação à revolta de 5 de Outubro de 1910, que acabou com a monarquia e estabeleceu o sistema republicano em Portugal.
O Afonso (de alcunha "Fininho" porque era muito magro e alto) e a sua irmã (que não me lembro do nome mas que era muito bonita e reservada) moravam no rés-do-chã da próxima casa que era geminada. Não me lembro das famílias que moravam nas duas moradias no primeiro andar. A próxima casa era a nossa, que era geminada. O Joca Oliveira morava no nº. 7 e nós morávamos no nº.9. O pai do Joca, o Sr. Hernani Oliveira tinha uma oficina de reparação de automóveis (bate-chapa), e a Mãe do Joca era a Dona Carolina, que era muito nossa amiga e muito nos ajudou.
Na casa imediatamente a seguir à nossa viveu em 1961 e parte de 1962 o Morgado, que depois a família se mudou para a Avenida Lisboa, nuns anexos, perto do Largo da Maianga e mesmo opostos à Cervejeria Mexicana. Esses anexos foram demolidos mais tarde para dar lugar a um prédio grande em arco a acompanhar o Largo da Maianga. A mãe do Morgado era enfermeira e o pai era escultor, natural da Ilha da Madeira.
Nuns anexos atrás da casa do Sr. Alípio Pires vivia o Dimas e a sua familia. O pai era sargento do exército e ele tinha um irmão mais novo de quem não me lembro do nome. Na casa (muito bonita) a seguir vivia uma família de bem que não tinha crianças; vivia lá uma senhora de idade que era parente dos donos da Casa Popular na Baixa de Luanda. Logo a seguir vivia a Isabel (da nossa idade) que era filha única e que não brincava muito com as crianças da vizinhança. Na ca sa a seguir vivia o Américo e a irmã que eram mais velhos que nós uns seis ou oito anos. A seguir era a Carpintaria e Serralharia Padinha que empregava muita gente.
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Estátua de Salvador Correia de Sá e Benevides, antigo Largo do Palácio, 1960s
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Logo a seguir era a casa do Alfredo (Frédito) Figueiredo (da nossa idade) e da irmã Filomena, que era uns quatro a cinco anos mais velha do que nós. O pai do Alfredo era o Sr. Figueiredo, já nos seus sessenta e tal anos. O Sr. Figueiredo, que era mestiço, andava sempre de fato, chapéu e bengala, sempre muito formal, e comandava o respeito de todos nós. A família Freitas (irmãos Vítor e Fernando) viviam na próxima casa. O Sr. Freitas, pai do Miúdo Vítor, era muito magrinho, fumava muito, e tinha um quiosque no Largo da Maianga, onde vendia jornais, revistas, e tabacos. O Vítor era da nossa idade, mas o Fernando era mais velho uns quatro ou cinco anos.
A próxima casa era da família Brito (José, Xico, e Milú). A casa situava-se num grande quintal, pois o alinhamento antigo da Rua 28 de Maio não era direito, mas virava um pouco para a esquerda. Em 1966 ou 67, a família Brito mudou-se para a Samba Pequena. Logo a seguir era a casa do José Luís Bernardino e irmã Lídia (ambos da nossa idade). O pai, o Sr. Bernardino era alentejano de Almodôvar e trabalhava para a Câmara Municipal de Luanda.
Duas casa depois e antes de se virar para o primeiro beco da Rua 28 de Maio, viviam duas irmãs (que nós chamávamos Misses da Maianga) que eram tias do nosso saudoso amigo Orlando Malhão Maio, que vivia na Praia do Bispo, mas que vinha com muita frequência à Maianga. O Orlando foi um colega chegado meu, pois ele andava no mesmos anos que eu no Liceu Paulo Dias de Novais e passávamos muito tempo juntos. O Orlando mais tarde arranjou uma mota antiga de marca "Ìndia" de cor preta, que captava a atenção de todos nós. Anos mais tarde, ele e a Manuela Moreira de Melo casaram e foram viver para Portugal depois de 1975. Lamentavelmente, soube que ele tinha falecido recentemente.
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Residências de funcionários públicos no Bairro da Praia do Bispo, Luanda, 1960s
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No beco nº 1 da Rua 28 de Maio viviam várias famílias com filhos da nossa idade. Quem subia e à esquerda havia uma prédio de dois andares em que no rés-do-chão vivia uma família com duas filhas e um filho mais ou menos da nossa idade (dos quais infelizmente não me consigo lembrar dos nomes), e no primeiro andar vivia a Manuela (muito bonita), que o pai tinha um negócio de construção de traineiras e outros barcos. Na próxima casa vivia a família Lopes (Paulette, talvez dois ou três anos mais velha do que nós), o Predocas, e a irmã mais nova, que era também muito reservada e bonita, mas de que não me consigo lembrar agora do seu nome). O Pedrocas era um bom compincha para qualquer brincadeira. Duarante o período do Governo de Transição e logo a seguir à Independência, a Paulette tornou-se uma pessoa muito destacada no aparelho político do MPLA.
Ainda no beco nº 1 da rua 28 de Maio vivia uma senhora, a Dona Ana, que fornecia ternos (comida) e que nós usámos quando a minha Mãe trabalhou para a Companhia Comercial Oriental na Avenida Marginal (perto da Igreja da Nazaré). Mais abaixo, vivia a a família da Nela (que nós chamávamos "Nela Fininha", pois era muito magra e alta).
Já de volta à Rua 28 de Maio, duas casas depois vivia a família Lacerda, que tinham dois filhos (um filho e uma filha) só um pouco mais novos do que nós. O Sr. Lacerda tinha uma oficina de reparação de carros e motorizadas, e foi durante alguns anos presidente da direcção do Sporting Clube da Maianga.
No segundo beco da Rua 28 de Maio (também chamado o Beco do Braga) vivia o Tomané, um amigo meu muito chegado que muitos bons tempos passámos juntos. O Tomané tinha uma personalidade muito jovial e estava sempre pronto para qualquer brincadeira. Ainda no mesmo beco vivia a família do Boléo, que era talvez dois anos mais novo do que nós. Ele tinha uma irmã mais nova que não me lembro do nome. E assim chegámos ao fim do lado esquerdo da Rua 28 de Maio. Para além do fim da rua ficava a zona verde do Rio Seco.
No lado oposto da rua à nossa casa, ou melhor dizendo, ainda na rua 5 de Outubro viviam os irmãos Nabais (Rui e Tito, mais velhos que nós uns anos, e exímios nadadores do Clube Nun'Álvares de Luanda), e no próximo quarteirão o Jajão e a Titocas (já falecida), que eram amigos muito chegados do meu irmão Rui. Já propriamente na nossa rua e em frente à nossa casa vivia o Jorge Tavares de Almeida, mais velho uns anos do que nós, mas com quem nunca estabelecemos amizade. Na esquina do próximo quarteirão vivia a família do Rui Humberto Cabral (Russo), que mais tarde (em 1965, não estou bem certo) se mudou para o Bairro da Cuca.
No quintal da casa do Rui Cabral nós fizémos uma experiência muito especial. Baseado na invenção dos irmãos Lumiere (inventores do projector de filmes), nós fizemos uma máquina de projectar cinema, baseada numa caixa de cartão com uma câmara escura, um projector de luz, e uma lente, o que nos permitia projectar imagens de desenhos animados que tinhamos desenhado em folhas de papel. Esta experiência foi muito notável, pois com uma caixa de papelão, uma lente (tirada de uma garrafa de refrigerante), e uma lâmpada, e algumas páginas brancas com desenhos a preto feitos por nós próprios, nós conseguimos fazer os nossos filmes.
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O popular sinaleiro do Largo da Maianga
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Em 1964/65 a família Anapaz Pereira mudou-se para essa casa, depois da família Cabral ter mudado para o Bairro da Cuca. Os Anapaz Pereira tinham um filho, o Carlos, mais conhecido por Curibita, e a irmã, que não me consigo lembrar do nome, ambos da nossa idade, e, se não me engano, um irmão mais novo. Como amigo do bairro, o Curitiba substituiu bem o Rui Cabral, pois tornou-se um amigo popular entre todos. Como eu, ele andava também no Liceu Paulo Dias de Novais, e assim fomos muitas vezes juntos para o liceu. A irmã do Curitiba era reservada e muito bonita. A família Anapaz era uma das grandes famílias africanas antigas de Luanda, e conforme o que a minha mãe então me disse, uma avó do Curibita foi uma professora de música e pianista destacada na Luanda nas décadas de Trinta e Quarenta.
Na próxima casa viviam os irmãos Borralho, que na altura tinham emigrado recentemente de Portugal. Infelizmente, já não me lembro dos seus nomes. Eles eram dois irmão da nossa idade, que trabalhavam já (não iam à escola), e já chegaram um pouco tarde (talvez em 1966/67). Mesmo assim, eles alinhavam muito em algumas brincadeiras, mas não eram parte do grupo central da malta da 28 de Maio. Cumpre-me
dizer aqui que nós (nascidos em Angola, brancos, pretos e mestiços) mostrávamos uma certa relutância a pessoas vindas
recentemente de Portugal, e usávamos até nomes depreciativos para os
designar (como "besugo" ou "patego"), o que não era muito saudável.
Na próxima casa, uma casa de primeiro andar, vivia o Inglês, que era uns anos mais velho do que nós, e que trabalhava com frequência como bilheteiro nas sessões de cinema do Sporting Clube da Maianga.
Numa casa geminada a seguir, moravam os irmãos Soto Maior (Tó e Darío), que eram ligeiramente mais velhos do que nós. O Darío era um amigo chegado do meu irmão Rui, e o Tó era assistente técnico de algumas modalidades de desporto no Sporting Clube da Maianga. Ele trabalhava no CITA (Centro de Informação e Turismo de Angola) e sempre me deu muitos livros e revistas publicados pelo CITA e pela AGU (Agência Geral do Ultramar) sobre Angola em particular, muitos quais guardo hoje como tesouro.
Na casa a seguir aos Soto Maior morava o Nélito, que era ligeiramente mais novo do que nós (dois ou três anos). Ele andava também no Liceu Paulo Dias, pelo que muitas vezes fomos juntos para o Liceu. Talvez pela sua idade, o Nélito alinhava na maioria das brincadeiras, mas não em todas.
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Vista do Palácio do Governador-Geral, Cidade Alta, Luanda, 1960s
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Na próxima casa geminada moravam as pérolas da 28 de Maio - as irmãs Manuela e Olga (Moreira de Melo), que eram o sonho de todos os rapazes da Rua. Elas eram muito simpáticas, de personalidade muito radiante, e extraordinariamente bonitas, e davam-se bem com todos. A família Moreira de Melo veio de Braga (Portugal) para Luanda em 1963/64, e o Pai trabalhava para a Casa da Sorte e a Mãe era modista, ambos muito simpáticos (e pacientes).
Na próxima casa viviam os manos Zeca e Fátinha Silva. O Pai, o Sr. Silva, tinha uma oficina de bate-chapa de carros no quintal atrás ca casa da Manuela e da Olga, e a Mãe, a Dona Cesaltina, era muito nossa amiga, pois passava tempo todos os dias a conversar connosco em frente à entrada da casa deles. O Zeca era da minha idade e andou na Escola Industrial, mas deixou os estudos e começou a trabalhar na oficina do pai ainda muito cedo. A Fatinha andava no Liceu Salvador Correia.
Era em frente à casa do Zeca e debaixo de uma árvore muito frondosa era o local onde nós tinhamos corridas de carrinhos (Dinky Toys e Corgi Toys) e onde tínhamos também os buracos no chão do passeio para jogar à bilha (berlinde). Era ainda à frente das casas do Zeca e da Fátinha e das manas Manuela e Olga que o grupo mais restrito
de amigos da rua 28 de Maio se encontrava todos os dias ao fim da tarde. A Fátinha foi sempre a amiga mais especial para mim e com quem mais tempo passava a conversar. Logo que atingiu a idade necessária, o Zeca comprou um Fiat 124 (station wagon) branco muito bonito. Infelizmente, O Zeca, alguns anos depois de regressar a Portugal em 1974 foi vítima de um acidente que o deixou incapacitado de levar uma vida normal para o resto da sua vida. Há quatro anos atrás recebi a triste notícia do seu falecimento.
Como rapazes, nós procurávamos a aventura e o perigo. Recordo que uma vez decidimos (Eu, o Zeca, o Vítor, e o Bernardino) ir acampar no Morro da Fortaleza, com o objectivo de caçar pássaros, onde na verdura da encosta muitas espécies de pássaros, incluindo periquitos de várias cores. Assim, fizémos os planos e completámos a logística, levámos visgo, fisgas e armas de chumbo, uma tenda, e alimentos para dois dias, e lá fomos. Como não tinha uma arma de chumbo, eu levei a minha fisga, devida mente construída por mim para o efeito. Como bons caçadores, nós não levámos em conta que havia no dito Morro da Fortaleza muitos cactos cheios de picos, cujas flores tinham uns picos muito pequenos ainda muito mais muito penetrantes. Com o entusiamo de chegar o mais próximo possível aos pássaros para pormos visgo (cola) nos ramos das árbores onde eles se encontravam, todos nós ficámos todos picados pelos ditos cactos, ao qual eu no meu caso não paguei muita importância. Três dias depois, eu acordei de manhã todo inchado com uma febre altíssima, não sabendo a causa. A minha Mãe levou-me imediatamente ao banco de urgência do Hospital Central, onde pacientemente os enfermeiros tiraram uma quantidade grande de picos de flor de cacto, quase invisíveis, mas à mostra em todo o corpo. O médico disse no fim que tinha sido uma infecção generalizada causada pelos ditos micro-picos, e que podia ter sido muito mais séria, não tivéssemos nós vindo ao hospital imediatamente.
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A entrada do banco de urgência do Hospital Central, que eu visitei tantas vezes
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Na casa logo a seguir à da família Silva vivia a Emília, filha única de pais mais velhos do que os nossos, sendo ela um ou dois anos mais velha do que nós, e que portanto não alinhava nas nossas brincadeiras. A seguir, já na esquina da rua 28 de Maio e Rua da Maianga, viviam as irmãs Pinto Pereira que não socializavam connosco. O Sr. Pinto Pereira comerciava em exportação de café, e foi graças à sua iniciativa que o cinema do Sporting Clube da Maianga expandiu a sua sala de cinema com um telhado próprio para proteger das chuvas.
No começo do próximo quarteirão vivia o Fernando (mais propriamente na Rua da Maianga) que era um ou dois anos mais novo que nós e andava na Escola Industrial. Já na Rua 28 de Maio num bloco de três casas geminadas vivia o Renato Santos, que era uns cinco ou seis anos mais velhos do que nós. Na casa a seguir vivia a Paula Correia de Oliveira, que era da nossa idade, muito bonita e atraente, e que cuja família tinha mais posses do que a média das famílias na vizinhança. Contudo, ela era muito dada e muito amiga de todos.
Já no próximo prédio vivia a Fernanda Caetano, irmão do Carlos, que também fazia parte do círculo de amigos. A Fernanda veio a casar com o Tonho Figueiredo, que vivia na Rua 5 de Outubro. A Fernanda era um tanto reservada, mas muito simpática. Ela praticou basquetebol na equipa feminina do Sporting Clube da Maianga. O seu irmão Carlos, que era mais velho do que nós, tirou o curso do Instituto Comercial.
Na casa a seguir vivia a nossa amiga Rosário, que era filha única e tinha vindo recentemente de Lisboa, mas que também alinhava com os amigos da vizinhança. Logo a seguir vivia o Edgar Neves, que também era filho único, e que trabalhava na Baixa de Luanda. O Edgar tinha uma motorizada V5 encarnada, que era muito vistosa.
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Estátua de Paulo Dias de Novais, fundador de Luanda em 1576, na Ilha do Cabo, 1960s
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Entre tantos jovens vivendo tão perto e tão intensamente na vizinhança, naturalmente haviam romances e pares de namorados (mais ou menos permanentes) que se
destacavam: o Zeca e a Olga, o Vítor e a Manuela, o Vítor Azevedo e a
Emília, o Tomané e a Paula, e o Edgar e a Rosário. Cabe notar aqui que desses amores de juventude, nenhum acabou em casamento. Apesar de sermos todos vizinhos e amigos, haviam dois polos onde nos encontravamos mais frequência: um em frente à casa das manas Manuela e da Olga (Moreira de Melo) e do Zeca e da Fatinha, e o outro, mais acima na rua, em frente à casa da Paula Correia de Oliveira.
Apesar da Rua 28 de Maio ser o nosso universo mais imediato, nós tinhamos muitos amigos com quem privávamos com muita frequência que viviam no perímetro mais alargado do Bairro da Maianga. Na Rua Comandante Correia da Silva tinhamos também vários amigos, incluindo o Adelino Vieira e irmã Leta, que viviam perto da pequena ponte sobre o Rio Seco, perto de uma grande mlembeira e junto a uma mercearia, o Mário Jorge, que vivia no outro lado do Rio Seco, e a Isabel Morna, mais abixo já na esquina com a Avenida António Barroso e em frente à agência do Banco de Crédito Comercial e Industrial vivia a Milú, que era muito bonita. Já no mesmo quarteirão da Avenida António Barrosos tínhamos os irmãos Mendes e irmãos
Pugliese, e no próximo quarteirão em direcção aos Correios, o Víctor Azevedo e os irmãos Dadinho e Zeca Loures (já falecidos há alguns anos) e primo Dádá (falecido recentemente), que era dirigente e jornalista desportivo de destaque em Luanda. Na Rua João Seca tínhamos o Artur e Mizé Araújo (que veio a casar com o Carlos Abreu, jogador de hóquei), com os irmãos mais velhos Vasco, Virgílio, e irmã (que não me lembro do nome) que casou com o Renato, que ainda eram primos muito afastados de nós através do meu Pai, pois a família era também de Trás-os-Montes. Na Rua 5 de Outubro tinhamos o Tiago (também já falecido), o Carlos Costa e a
Ana Maria Costa, os irmãos Celso e Jorge, o Fernando Rosa Rodrigues, e o José Pedro. Um pouco mais longe, já à entrada do Catambor, tínhamos o o
Francisco Loureiro. O Mário Lourenço dos matraquilhos na Avenida
António Barroso vivia mais abaixo, perto da Padaria Aliança, onde nas noites de cinema no Sporting Clube da Maianga nós íamos comprar pão quente às onze da noite. Os
irmãos Paixão (Jorge e Beto) viviam no prédio da estação de serviço da Texaco à entrada da Rua 5 de Outubro, e os irmãos Jacques Pena - João, Isabel, e Paula (também precocemente
falecida) que viviam mais abaixo da Rua João Seca (próximo da esquina dos Correios com a Avenida António Barroso), o Nascimento que vivia abaixo da Rua da Maianga, a Gina, a Selda, e a Guilhermina que viviam na Travessa João Seca, e tantos
outros. Um pouco mais acima, na Rua José Maria Antunes, paralela à Avenida António Barroso e já junto ao Muceque Catambor, vivia a Nini que jogava basquetebol no Sporting Clube da Maianga, e as duas suas irmãs que já não me lembro dos seus nomes.
Nota - A rua, travessa, e largo João Seca evocavam a memória de João Augusto dos Santos Seca, que foi um destacado condutor de Obras Públicas e chefe da repartição técnica de Luanda na primeira década do Séc. XIX e que esteve ligado a muitos melhoramentos da cidade nesse tempo. A Rua José Oliveira Barbosa evocava a memória de José de Oliveira Barbosa que foi governador de Angola entre 1810 e 1816 que se precocupou com o problema de abastecimento de água a Luanda. A Rua Comandante Correia da Silva evoca a memória do destacado oficial da marinha portuguesa, que foi administrador do concelho de Luanda, governador dos distritos de Benguela e de Moçâmedes, e ministro das colónias em 1925. A Avenida António Barroso evoca a figura do Bispo Dom António Barroso, que se distinguiu em incluir os antigos territórios Bakongo como o distrito do Congo (português) na província de Angola no terceiro quartel do Séc. XIX. A Rua do Padre José Maria Antunes evocava a memória do Padre José Maria Antunes, da Congregação do Espírito Santo, grande evangelizador das terras longínquas do Cunene e primeiro superior da Missão da Huíla.
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A velha Rua dos Mercadores, uma das ruas antigas de Luanda, 1960s
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Ainda como rapazes cheios de banga, nós gostávamos de ir de vez em quando à Cervejaria, Snack-bar e Pastelaria Bracarense
para tomar uns finos (copos de cerveja) com tremoços ou dobrada cozida
com feijão a acompanhar. A bracarense era também um restaurante e uma
pastelaria, famosa pelos pregos no pão (o básico que podíamos pagar...),
e a pastelaria. Em frente à Bracarense, na esquina com a Rua Alexandre
Peres, estava o Colégio Moderno, que era da propriedade da professora Dona Lindalva que era conhecida por ser muito rigorosa e exigente, que a minha irmão Paula frequentou até à quarta classe. A antiga Estação de Caminho de Ferro da Cidade Alta
era na Rua Alexandre Peres, onde havia um grande terreno descampado
adjacente, onde uma ou duas vezes por ano havia uma feira com muitas
diversões como carrossel, cadeirinhas, carrinho eléctricos, poço da
morte, e outros. Outras cervejarias muito concorridas na Maianga eram a Cervejaria Mexicana e o Restaurante Belo Horizonte (muito chic), à entrada do Largo da Maianga, o Snack-Bar Planeta, junto à Chefia dos Serviços de Intendência do Exército Português, e a Cervejaria Chilena, mais abaixo na Avenida Lisboa, um pouco mais abaixo do Hospital de Doenças Mentais, que nós chamávamos Hospital dos Malucos. Quando a minha Mãe trabalhou na Companhia Comercial Oriental na Marginal, nós íamos almoçar e jantar ao restaurante do Snack-bar Planeta durante uns tempos. Por volta de 1968, o Restaurante Belo Horizonte fechou e o edifício foi convertido em Colégio Universal. No topo da Avenida António Barroso havia um clube noturno e dancing, o "Choupal", famoso por outras razões.
Dispersos pelas ruas do bairro da Maianga, haviam muitas árvores de fruto e de sombra, como a mulembeira, pois a maioria das ruas eram arborizadas. Das árvores de fruto, as que mais me lembro era as que davam os saborosos figos da Índia, maçãs da Índia, e tamarindos. Nos quintais das casas era comum ver goiabeiras, bananeiras, abacateiros, mamoeiros, pitangueiras, maracujazeiros, e até cajueiros. No cimo do muceque Catambor havia ainda alguns imbondeiros.
Pela sua curiosidade, lembro aqui o som de gaita dos funileiros e amoladores, que nas suas bicicletas de três rodas corriam o bairro de tempos a tempos para afiar facas e tesouras, ou fazer latas. Do mesmo modo, lembro aqui a tifa, que era a fumegadora dos Serviços de Saúde que todos os anos passava pelas ruas do bairro a fumegar a nuvem espessa de DDT que se dissipava casas dentro, que para o efeito as donas de casa deixavam as janelas e portas abertas para o nevoeiro do insecticida entrar. Como não podia deixar de ser, nós delirávamos correr atrás da tifa, completamente cobertos com o fumo do DDT.
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Carrinha a fumegar DDT (Tifa) nas ruas de Luanda, 1960s
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Hoje sabemos que o DDT deixou de ser produzido há muitos anos por ser muito tóxico e ter sido banido o seu uso na maior parte do mundo. Na mesma linha de pensamento, o uso de folhas de Lusalite, produzido pela companhia Lupral, de Benguela, para paredes e telhados era muito usado em Angola. Da mesma forma, sabemos hoje que as fibras de asbestos são um carcinogéneo muito mortífero para qualquer pessoa que o use ou esteja exposto.
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O antigo complexo do Hospial Maria Pia
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Entre
a Avenida da Samba e a Avenida Lisboa, os Serviços de Saúde e Higiene
de Angola tinham uma área muito grande de terrenos onde se situavam o
Hospital Central, o Hospital Maria Pia (com cinco pavilhões muito
grandes), a Delegacia de Saúde onde se apanhavam as vacinas, a Casa
Mortuária (pequena para as necessidades da cidade), o Teatro Anatómico e salas de aula da Faculdade de Medicina
da Universidade de Luanda, o Pavilhão de Doenças Infecto-Contagiosas, o
Hospital de Doenças Mentais, a Escola de Enfermagem, e o Centro de Reabilitação Física e
Fisioterapia.
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O pavilhão de Doenças Infecto-Contagiosas onde estive internado 10 dias em 1972
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A área era mesmo mito grande pois estendia-se desde as
traseiras das casas na Rua Guilherme Capelo e ia até à baixa da Samba
(antigo lugar da Lagoa dos Elefantes), ao começo da subida da Avenida
Lisboa para o Bairro Prenda.
Como toda a cidade de Luanda, em termos de urbanização, a área da Maianga não era estática, pois muitos prédios novos se construiram entre 1961 e 1975, especialmente à volta do Largo da Maianga e ao longo da Avenida António Barroso, que mudaram muito a personalidade do bairro, especialmente do lado do Alvalade e do Catambor, em que muitas famílias pobres tiveram que mudar do muceque em que viviam há muito tempo para dar lugar a vivendas e prédios para famílias com mais posses. A expansão urbana era também muito evidente no Bairro Prenda, onde se construiram muitos prédios novos. Acima da Avenida dos Quarteis (Avenida Norton de Matos) até se construiu um bairro muito grande e completamente novo de construções ilegais - o Bairro Salazar - que ia até ao Aeroporto. Assim notei que em poucos anos mudámos de uma situação em todos nos conhecíamos na Maianga para uma nova em que éramos todos quase desconhecidos.
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Luanda, 1970s - Cruzamento das ruas Silva Porto e Sá da Bandeira, no Bairro do Café
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Foi na Maianga onde pela primeira vez constatei a existência de dois
mundos que a antiga Avenida António Barroso (hoje Avenida Presidente
Marien Ngouabi) dividia: o da cidade dos brancos (Maianga e Alvalade) e o
dos muceques dos africanos de cor (Catambor e Prenda). O Sporting Clube
da Maianga era o elemento aglutinador desses dois mundos em que
o factor "raça" não tinha grande significado.
Apesar da política oficial
de convivência racial apregoada pelas autoridades portuguesas depois de
1961, ainda subsistia em Luanda evidência clara de segregação racial
dos tempos de colónia mais antiga. Em geral, o "branco" vivia no centro da cidade de
cimento, e o africano (preto e mulato) viviam nos muceques da
periferia; o "branco" era o patrão e o africano (preto e mulato) o
empregado; o "branco" era o dono do negócio ou loja, e o preto (as
quitandeiras) dominavam o comércio informal; o médico era branco e o
enfermeiro era mestiço ou preto; a "branca" era a dona de casa, e a "preta" era a lavadeira; o "branco" era o oficial do exército e o polícia, e o africano era o soldado raso ou cipaio; o "branco" (não a maioria) andava de
carro privado, ao passo que o africano (preto e mestiço) andava a pé ou
de maximbombo (autocarro). Os filhos das famílias brancas "de bem"
estudavam em colégios particulares e mesmo até na metrópole (Portugal), ao passo que todos os outros
(brancos remediados (a grande maioria), pretos e mestiços) estudavam nas escolas e liceus públicos do estado. Em termos de cobertura de serviços municipais, a cidade "branca" (do asfalto) tinha água canalizada, esgotos, ruas asfaltadas, transportes públicos, electricidade, iluminação pública, telefones, e protecção de polícia e bombeiros, ao passo que o muceque não recebia quaisquer desses serviços.
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O
Dr. José Pinheiro da Silva, natural do Maiombe, Cabinda, Secretário
Provincial da Educação e grande dinamizador da educação em Angola na
década de 1960
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Contudo,
como resultado das transformações sociais e políticas trazidas pela
guerra de 1961 a 1975, já nos primeiros anos da década de 1970, a chamada "integração racial" era um facto em construção, pois havia igualdade nas escolas, e a grande maioria dos funcionários públicos já eram africanos mestiços e pretos,
se bem que a inequidade económica continuasse de forma ainda muito
flagrante. O mesmo se observava nas escolas e liceus em que a já haviam muitos estudantes de côr, que crescia a passos largos de ano para ano. Cabe lembrar aqui que o grande obreiro do grande esforço de escolarização em Angola na década de 1960 foi o Dr. José Pinheiro da Silva, natural do Maiombe, Cabinda, que exerceu durante esses anos o cargo de Secretário Provincial da Educação. Apesar deste esforço, havia ainda muito poucos estudantes de cor a frequentar Universidade de Luanda.
Todos
nós temos coisas de que nos arrependemos de ter feito nos nossos anos
de juventude. Para mim, uma delas foi ter participado durante vários
anos no carnaval de fuba da Maianga. Este consistia em atirar fuba
(farinha branca de mandioca ou milho) aos muitos inocentes transeuntes
que passavam a pé na Avenida António Barroso. A maior parte das vítimas
eram pessoas de côr que iam ou vinham do trabalho, bem vestidas, sendo a
última coisa que toleravam eram ser banhados de fuba seca, e de um
momento para o outros ficarem completamente brancas. A maioria das
vítimas reagia (com direito) e muitas vezes o carnaval acabava à
pancada, até a polícia vir e parar com o desacato. Ás vezes alguns de nós acabavamos na esquadra da polícia, que era no Bairro dos Ferreiras (com ruas de pedra), a um quarteirão da Rua Guilherme Capelo.
Da mesma forma, também temos actos bons de amigos que ficam connosco para o resto das nossas vidas. Comigo, sinto que tenho de contar que uma vez numa das matinées de domingo à tarde no Sporting Clube da Maianga houve um concurso de puxar a corda entre dois grupos no palco em frente a uma plateia repleta espectadores, em que após cada puxada, cada grupo perdia um membro até chegarem ao fim com um membro só cada para cada grupo na competição. Foi o caso entre eu e o Júlio, que era muito mais forte que eu, e que ele voluntariamente me deixou ganhar, mesmo a custo de não receber o melhor prémio. Este acto de amizade ficou na minha memória para sempre, e ajudou-me a ser um pouco menos interesseiro em situações em que eu via que eram de maior valor para outros. O Júlio era um de quatro irmãos (Zé, Russo, Júlio, e Gualter) e uma irmã oriundos de Portugal que viviam na rua João Seco logo a seguir à casa do Artur e irmã Mizé Araújo. Infelizmente, ainda em Angola, soube da morte do Júlio num acidente numa viatura militar próximo da cidade de Silva Porto (hoje Kuito), mas ele e o acto que practicou ficaram para sempre na minha memória.
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Estátua de Diogo Cão, primeiro português a chegar à foz do Rio Zaire em 1483, atrás o Palácio de Vidro, onde se encontravam muitas repartições públicas do governo provincial
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Eu era relativamente conhecido e popular no Liceu Paulo Dias de Novais, onde grangeei muitas amizades. Entre os bons amigos que lá tive estava o Fernando Farinha, que era um ano mais velho do que eu, mas andava no mesmo ano que eu. O Farinha, como nós o chamávamos, tinha sido vítima de paralisia infantil quando ainda muito jovem pelo que tinha andar com a ajuda de dois aparelhos de prótese e muletas muito pesados e incómodos (um para cada perna). Contudo, ele estava sempre pronto para alinhar nas brincadeiras, mesmo que tal lhe custasse dor física. Ele morava logo ao princípio da rampa da Fortaleza, depois da ponte sobre a Rua Francisco Soveral, e nós fomos amigos chegados por todo o tempo no Liceu Paulo Dias de Novais e mais tarde no 6º e 7º anos no Liceu Salvador Correia. Talvez porque associasse a sua penosa cruz com a do meu irmão Rui, eu nunca esqueci o Farinha estes anos todos, e gostaria muito de ainda o poder encontrar e estar com ele uns momentos para recordar bons tempos nos velhos Paulo Dias e Salvador Correia. O Farinha tinha uma cadeira de rodas que ele usava raramente, já que a grande maioria dos edifícios e lugares em Luanda desse tempo não eram construídos para permitir o accesso e uso por pessoas com deficiência física acentuada.
Durante o período que vivemos no Bairro da Maianga, o nosso médico de família era o Dr. Mercês de Melo, que dava consultas no Centro Médico da Cruz Vermelha Portuguesa, situado perto do do Cinema Restauração, onde o custo das consultas médicas era mais baixo (quase de graça). O Dr. Mercês de Melo era um médico muito conhecido e respeitado em Luanda, ele era natural de Goa (ex-Índia Portuguesa) e tinha frequentado a famosa Escola Médica de Goa, era muito boa pessoa e tinha duas filhas muito bonitas e simpáticas (Tété e a Guida) que andaram no Liceu Slavador Correia.
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Mural de azulejo, Liceu Salvador Correia, Luanda, mostrando as principais viagens dos Descobrimentos Portugueses através do mundo
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No cinema
do Sporting Clube da Maianga vi um filme que me ficou na memória para o
resto da minha vida. O filme foi “O Livro de San Michele” que foi uma adaptação
ao cinema feita em 1963 do livro com o mesmo título muito popular de Axel
Munthe publicado em 1929, quando já tinha 71 anos de idade. É interessante referir que "O Livro de San Michele" foi o primeiro livro da popular e monumental Colecção Dois Mundos da Edição Livros do Brasil. Mais tarde, como
não podia deixar de ser, li o livro, que me encantou ainda mais. O livro é uma
autobiografia muito pessoal e íntima em que factos vividos de uma vida simples e relativamente pacata se misturam com sonhos
e receios, situações hilariantes, e com filosofia de vida, mas que são todos descritos com grande simplicidade, franqueza, e humanidade infinita. Do filme,
lembro-me em particular da beleza da ilha de Capri, da vila San Michele, e
da cena muito vívida da epidemia de cólera que grassou a cidade de Nápoles em 1884, na qual
Axel Munthe tomou parte como médico ainda jovem.
Axel Munthe
foi um médico sueco que exerceu medicina em Paris e em Roma na ultima década do
século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX, que assistiu doentes de
todas as condições sociais Na sua primeira visita à Ilha de Capri, ao largo da costa
de Itália, quando tinha apenas dezassete anos e ainda estudante de medicina, Axel
Munthe apaixonou-se de imediato com a beleza da ilha de Capri, a vila de
Anacapri, e a vida pacata mas interessante que se vivia na ilha. Em especial,
ele apaixonou-se pelas as ruínas de uma capela muito antiga já em avançado estado
de decomposição, mas mostrando ainda as maravilhosas linhas arquitectónicas de
épocas há muito vividas. A capela tinha em tempos idos sido dedicada ao arcanjo
São Miguel (San Michele), que por sua vez tinha sido construída sobre as
ruínas da vila do Imperador Tibério no tempo do império romano. De imediato ele
abraçou o sonho de comprar a capela em ruínas, restaurá-la para que pudesse
viver lá, e por fim lá residir para o resto da sua vida (mais cinquenta e seis
anos).
Em breve
ele completou os seus estudos em medicina e abriu um consultório em Paris e
mais tarde outro em Roma. Como médico de renome em Paris e em Roma, e em especial,
como médico particular da Raínha da Suécia, em pouco tempo ele ganhou o
suficiente para comprar a propriedade ao Maestro Vincenzo, que morava na
vizinhança.
Como disse
acima, o livro é uma autobiografia de Axel Munthe, mas é também muito mais do
que isso. É uma alegoria à vida, a valores humanos, e ao sentido profundo de humanidade. Lembro-me
do afecto que Axel Munthe tinha por animais, em especial pelo seu cão Jack e a
sua burra Violetta. Para mim, o Livro de San Michele, ensinou-me a importância
que o sonho tem na nossa vida, e quanto importantes são os valores humanos que nos
guiam por esta viagem terrena, e como tal, ajudou-me muito como timoneiro nas
escolhas que tive que fazer ao longo da vida.
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A Macuta - a primeira moeda cunhada em Portugal para uso em Angola em 1762
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Em 1965 ou 66 foi descoberto no local da construção de um prédio novo perto do largo onde se situava o Clube Atlético de Luanda (onde havia uma estátua de Luis Lopes de Sequeira), uma quantidade muito grande de macutas (moedas antigas), das quais consegui arranjar uma lata de flocos de aveia Quaker Oats cheia das ditas moedas, comprando algumas e outras trocando cromos e outros valores. Eu lembr-me que o achado destas moedas antigas (do séc. XVIII) era um importante achado arqueológico, que me levou a compreender melhor quanto importante era a arqueologia como ciência auxiliar da história. Da mesma forma, esta insólita colecção de moedas antigas fez-me também pensar na história económica de Angola, que então completamente desconhecia. Infelizmente, nas coisas que deixei em Luanda estava a dita lata de flocos de aveia cheia de macutas...
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O paraíso que era a Ilha do Mussulo nos Anos Sessenta
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Em
1966 ou 67, eu e um grupo de amigos da Maianga (o Edgar Neves, o Vítor
Freitas, o Mário Jorge, o Júlio, e o Bernardino) decidimos ir acampar
por uma semana para a Ilha do Mussulo. Fomos de autocarro até à Barra da
Corimba onde era o cais do "Ka-Posoka" e do "Kitoko" que nos levou até
à paradisíaca Ilha do Mussulo. Uma vez na Ilha, procurámos o melhor
lugar onde assentar as tendas de campanha, onde ficámos por uma semana.
Lembro-me que a base principal de alimentação nessa semana foram
caranguejos cozidos numa panela grande de água quente só com sal, que
colhíamos durante o dia. Explorámos apé a Ilha do Mussulo toda, e eu
consegui o donativo de muita fruta (bananas e mangas) da missão católica
que havia na Ilha da Cazanga (também conhecida como Ilha dos Padres) em troca de explicações de história e
geografia que dei aos aos alunos da missão.
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A nossa viagem à Ilha do Mussulo, em 1967 - Edgar, Mário Jorge, Júlio, Eu (Helder), e Vítor
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No Sporting Clube da Maianga, uma verdadeira escola para todos nós, comecei por jogar basquetebol (juvenis) por dois anos sob a orientação do famoso Ùnico (Francisco André) e mais tarde do Nanico
mas que por não ser alto e ter pouca (quase nenhuma...) habilidade para
tal, mudei para hoquei em patins em júniores, em que a habilidade não
era melhor. Como atletas do Clube, podíamos ir ao cinema sem pagar, o
que resultou em ter ido ao cinema pelo menos duas ou três vezes por
semana durante cinco ou seis anos, e o que me ajudou imenso a melhor
perceber o mundo à minha volta. O bar do clube abria todos os dias, e à
tarde e à noite (nos dias em que não tínhamos treino) nós íamos para lá
jogar às damas, xadrez, e aos dados. Eu era um bom jogador de damas, mas
nada que se chegasse à sapiência do Mestre Sr. Martins (que era oficial de diligências no Tribunal da Relação de Luanda) com as suas
jogadas "piro-magneto-trápicas". Eu jogava xadrez mais ou menos bem, e competia muito
com parceiros mais velhos do que eu. Lembro ainda aqui que os filmes do
Cantinflas era sempre muito populares. O Sporting Clube da Maianga tinha equipas que competiam nos campeonatos e torneios distritais masculinos em futebol, basquetebol, e hóquei em patins, em três níveis - juvenis (14 a 16 anos), juniores (16 a 18 anos), e séniores (mais de 18 anos). O Sporting Clube da Maianga tinha também equipas feminina em basquetebol (juvenis e juniores).
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A equipa de séniores do Sporting Clube da Maianga - atrás - Fernando Costa Pereira, Silvestre, Joaquim, Carlos Abreu, frente - Russo, Artur Araújo, e Víctor Azevedo
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As equipas de hóquei em patins do Sporting Clube da Maianga, tanto em séniores como em juniores, eram muito boas, levando sempre aos jogos um grande número de maianguistas. As equipas de futebol e de basquetebol não eram tão famosas. Para o transporte de atletas para treinos e jogos, o clube tinha uma carrinha fechada (van) de marca Commer com capacidade de transportar doze pessoas, das cores do clube (branco e encarnado). Lembro-me bem dos motoristas, o Sr. Guerra (pai da Fernanda Guerra), e o Sr. Araújo (já mais velhote mas muito castiço, natural de Murça, Trás-os-Montes, Portugal.
Foi ainda nas matinées dançantes de domingo à tarde no Sporting da Maianga que a minha paixão pela Odete Lopes Silva
me deu a coragem para lhe pedir namoro. A Odete era muito bonita e
reservada. Ela era um ano mais nova que eu e jogava basquetebol no
clube. Confesso aqui que não posso esquecer nunca os nossos passeios de namoro com a Odete acima e abaixo da Avenida António Barroso (quase sempre com a companhia da Lurdes!) e o seu vestido azul com bolas brancas e lapelas brancas que lhe ficava tão bem. O seu pai era o Senhor Orlando Lopes da Silva que era vice-presidente (muito activo) da
direcção do Sporting Clube da Maianga. A sua irmã Lurdes e a sua mãe, de
quem lamentavelmente já não me lembro do nome, eram também muito simpáticas. O Sr. Orlando tinha um carro Austin A40 preto, modelo de 1950, que ele próprio tinha restaurado. A família Lopes da Silva vivia primeiro na Avenida António Barroso, mais ou menos em frente aos armazéns Martins & Almeida (Martal), mas mudaram-se mais tarde para o Bairro Popular.
Falando da equipa feminina de
basquetebol do Maianga, ainda me lembro de algumas atletas: a Odete, a
Fernanda Caetano, a Nini, a Fernanda Guerra, a minha irmã Dilar, a Isabel Morna, a Mizé
Araújo, a irmã do Genaro Pugliese, a irmã dos irmãos Mendes, a nossa
vizinha Isabel, a Ana Maria Costa, a Carmo (irmã da NIni), e as irmãs Fançony.
Já que mencionei os Armazéns Martal, lembro-me que uma das famílias (Martins, ou Almeida, já não posso precisar,) ganhou a dez mil contos na lotaria da Santa Casa da Misericórdia, com o que construiram um prédio de apartamentos novo de dez andares na primeira rotunda da Avenida António Barroso, na esquina da rua José Oliveira Barbosa, e rua do Dr. José Maria Antunes.
15. O Gosto Pela Leitura e por Aprender
Eu li nessa altura um livro sobre a famosa viagem de exploração e pesquisa científica de Charles Darwin à volta do mundo entre 1831 e 1836 no navio H.M.S. Beagle,
sob o comando do Capitão Robert Fitzroy. Foi nessa viagem que Darwin
colectou a evidência necessária que deu corpo à sua teoria de evolução
natural tão bem explicada no seu livro "A Origem das Espécies" publicado anos mais tarde em 1859. Para
além da maravilhoasa descrição da região da Patagónia, da costa oeste da
América do Sul (Brasil, Argentina, Chile, Perú e Equador), e das Ilhas Galápagos, este livro
abriu-me a mente à teoria da evolução natural, que estava em
contraste frontal com as explicações sem fundamento científico contidas
na Bíblia propagadas pela Igreja. Aprendi assim com a viagem de Darwin a
discernir a diferença entre ciência (método científico) e fé (religião). Lembro-me ainda dos estudos que Darwin fez nas Ilhas de Cabo Verde e no Rio de Janeiro quando lá parou na sua viagem de ida.
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Charles Darwin no Rio de Janeiro, 1832 |
Já
que mencionei algo sobre ciência, Luanda tinha uma "pérola científica":
o Observatório Espacial da Mulemba, situado na estrada do Cacuaco, com
telescópios e equipamento capaz de monitorizar as naves espaciais
americanas e soviéticas que nessa altura tentavam chegar à Lua, aos
planetas vizinhos, e ao espaço sideral. O Observatório da Mulemba foi
fruto do trabalho de uma pessoa extraordinária; o Sr. Carlos Bettencourt
Faria, um autodidata astrónomo amador que com muito trabalho, inteligência e empenho
construiu um observatório espacial em Luanda reconhecido mundialmente. Eu visitei o
Observatório da Mulemba três vezes e lembro-me que fiquei muito
admirado com o que vi e lá aprendi. Infelizmente, o Sr. Bettencourt
Faria foi barbaramente assassinado em Julho de 1976, vítima do fervor anti-ocidental que reinou no MPLA no periodo
imediatamente após a independência. Luanda tinha outro observatório, o observatório oficial do governo, mas mais orientado para o clima e previsão do tempo - o Observatório João Capelo - operado pelos Serviços Metereológicos de Angola, que se situava no Beco do Balão, perto do consulado Britânico, e residência do Administrador do Banco de Angola, abaixo do Palácio do Governador-Geral, junto à antiga Rua Diogo Cão.
O meu encanto por África cresceu com a leitura ainda cedo da biografia de Albert Schweitzer e a sua obra no hospital de Lambarené, no Gabão, e de dois livros muito interessantes de Fernando Laidley "Roteiro Africano" e "Missão em África"
que relataram a primeira viagem incrível de automóvel à volta do continente
africano num Volkswagen "Carochinha", e dois anos mais tarde a única viagem de automóvel
ligando as províncias portuguesas no continente africano (Guiné, Angola, e Moçambique) num carro de marca Ford
Taunus, de fabrico alemão. Os livros de Fernando Laidley eram faceis de ler e tinham muitas fotografias dos muitos lugares exóticos que visitou.
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Desenterrar o VW no deserto do Kalahari Uma gravura da viagem de Fernando Laidley à volta de África no seu livro "Roteiro Africano", 1958
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Através
dessas obras aprendi que a África era na verdade um continente muito
grande e muito diverso com regiões e povos muito diferentes.
Por outro lado, o meu interesse pela História de Angola começou com a
leitura dos muitos livros de Elaine Sanceau sobre a expansão portuguesa no mundo, dos quais se destacavam, "O Infante Dom Henrique", "Os Descobrimentos Portugueses", "Os Portugueses no Brasil", "Capitães do Brasil", "Afonso de Albuquerque", "Dom João Castro", e "Os Portuguese na Etiópia", e do livro Gastão Sousa Dias "E Julgareis qual Será o Mais Excelente..." que tínhamos em casa.
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A grande difusora do conhecimento sobre os Descobrimentos Portugueses Elaine Sanceau (1896-1978)
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Eu gostava muito de ler a narrativa simples mas épica de Elaine Sanceau,
pelo que aos poucos, e à medida que as poupanças me permitiam,
comprei todos os livros da séria completa (a minha primeira colecção
completa!) publicada pela Livraria Civilização, dessa grande mestra em
história da expansão portuguesa no mundo que foi Elaine Sanceau. Foi ela quem abriu para mim as portas ao interesse sobre a expansão portuguesa no mundo e do contacto entre europeus e povos nativos através do mundo.
Gastão Sousa Dias (nome completo Gastão Adalberto Antunes de Sousa Dias, nascido na cidade de Chaves em Portugal, em 1887) foi um dos mais importantes historiadores sobre a história dos portugueses em Angola no século XX. Ele foi capitão do Exército Português e viveu em Sá da Bandeira (Lubango) durante muitos anos desde 1918 até à sua morte em 1955, onde foi professor de Português, História, Matemática, e Desenho, no Liceu Diogo Cão (segundo liceu em Angola). Ele nasceu e morreu precisamente nos mesmos anos em que o meu avô Júlio Pinto Correia nasceu e morreu. A sua obra extensa sobre história de Angola, ou melhor, sobre a história dos Portugueses em Angola, inclui muitos estudos importantes, como "Julgareis Qual Será o Mais Excelente...", "A Batalha de Ambuíla", "Os Portugueses em Angola", "Relações de Angola", "Pioneiros de Angola", "A Cidade de Sá da Bandeira", "Povoamento de Angola", "Os Auxiliares na Ocupação do Sul de Angola", e "O Destino da Grei". Ele escreveu também ensaios biográficos muito bons sobre muitas personalidades importantes na história de Angola, como Silva Porto, Artur de Paiva, Manuel Cerveira Pereira, Dom António Barroso, Padre Charles Duparquet, Padre Ernesto Lecomte, Monsenhor Keiling, e José de Anchieta.
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O historiador Gastão Sousa Dias (1887-1955)
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Foi nessa ltura também que li a biografia de Fernão de Magalhães, o famoso navegador português primeiro a dar a volta ao mundo, escrita por Stefan Zweig a partir dos diários de António Pigafetta. O feito de Fernão de Magalhães é de facto um dos maiores feitos (senão o maior) de exploração na história da humanidade. Contra tudo e contra todos, Fernão de Magalhães continuou fiel ao que pensava e acreditava. Embora uma personalidade um tanto reservada, ele foi um líder extraordinário que grangeou o respeito e a admiração de todos, e é hoje o português mais reconhecido no mundo (talvez com a excepção de CR7 Ronaldo...) .
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A rotada incrível viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães (1519-21)
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Após ler a história da sua vida e a descrição da sua incrível viagem de circum-navegação, Fernão de Magalhães
ficou a ser uma das personagens históricas que mais admirei na vida; de facto, ele passou a ser o meu herói para o resto da minha vida, e de ter orgulho em ser português. Deste livro recordo em especial o parágrafo da oração fúnebre de Pigafetta após a morte de Fernão de Magalhães na Ilha de Mactan, nas Ilhas Filipinas, em que retrata o amor, a admiração, e o respeito que toda a tripulação tinha por ele.
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O escritor Stefan Zweig (1881-1942)
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Stefan Zweig foi um escritor austríaco de origem judaica que escreveu muitos livros de grande popularidade nos anos Trinta, Quarenta e Cinquenta do século passado, dos quais acabei por ler toda a sua obra, e que destaco as biografias de Maria Antonieta, Raínha Maria da Escócia, e Américo Vespúcio, e as suas obras "O Mundo de Ontem", "Os Grandes Momentos da Humanidade", e "A Marcha do Tempo", que foram best-sellers no seu tempo. Infelizmente, descoroçoado com a expansão do nazismo no munddo, Stephen Zweig e sua esposa fugiram da Áustria e Alemanha e refugiaram-se na Inglaterra, mudando mais tarde para o Brasil, onde, desiludidos com o mundo, acabaram por se suicidar ambos na cidade de Petropólis, no estado do Rio de Janeiro, em 1942.
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Morte de Fernão de Magalhães, na Ilha de Mactan, Filipinas, 1521 |
Já mais perto da minha vivência quotidiana em Luanda, li o livro "Luanda, Ilha Crioula" de Mário António
(Mário António Fernandes de Oliveira), que foi uma figura erudita na década de Sessenta em Angola, que
me ajudou a compreender melhor o mosaico cultural diverso que era Luanda
desse tempo, e me revelou a "ilha" crioula que Luanda era no contacto e
cruzamento de culturas. Talvez encorajado pela leitura desta importante
obra de Mário António, li quase toda a obra do grande sociólogo Óscar Ribas, com ênfase em Missosso (três volumes), Izomba, Uanga, Sunguilando, e Quilanduquilo, que hoje guardo como grande tesouro. Através da pena de Óscar Ribas eu aprendi quanto viva e rica era a cultura tradicional luandense.
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O grande sociólogo de Luanda colonial Óscar Ribas (1909-2004) |
Foi através dos escritos de Mário António
sobre o fenómeno social da cultura crioula luandense que eu acordei à evidência
de que foi a exploração marítima dos Portugueses que levou ao contacto
entre muitos povos espalhados pelo mundo. Mário António Fernandes de Oliveira, meu conterrâneo de Maquela do Zombo, foi um investigador muito importante de história de Angola. Além do seu livro mais original "Luanda Ilha Crioula", ele coordenou a publicação da série monumental "Angolana - Documentação Sobre Angola" em três volume, publicados pelo Instituto de Investigação Científica de Angola (IICA) e o Centro de Estudos Históricos Ultramarinos (CEHU) que revelou ao público muitos documentos históricos inéditos entre os anos de 1783 e 1887.
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Mário António Fernandes de Oliveira (1934-1989) Ensaista, poeta, historiador, e sociólogo
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Cabe-me referir aqui que em 1969 o Tó Soto Maior deu-me um livro precioso sobre a História de Amgola - Nótulas Históricas, da autoria de Alberto de Lemos, e edição do CITA, que por várias razões acho importante. Foi o primeiro livro que li sobre História de Angola que foi escrito por um angolano (designado como angolense nesse tempo), se bem que ainda sob o tema da história dos portugueses em Angola, mas que descrevia de uma maneira muito clara e cativante o que era a vida quotidiana das famílias mais destacadas de Luanda nas últimas décadas do Séc. XIX e primeiras do Séc. XX. Ele foi o fundador dos Serviços de Estatística de Angola, e chefiou os trabalhos do primeiro Censo Populacional de 1940. Ele (com o Monsenhor Alves da Cunha) desempenhou também um papel essencial na colecção e publicação dos "Arquivos de Angola", e na fundação do Museu de Angola. Alberto Jorge Júdice Ferreira de Lemos, de nome completo, contribuiu com muitos artigos sobre história de Angola para a imprensa luandense do seu tempo (o jornal A Província de Angola), e escreveu também alguns contos sobre Loanda Antiga, dos quais destaco "Marinela, a Mulher da Moda" que foi uma descrição da derrocada da famosa família Lencastre de Luanda antiga. Os textos de Alberto de Lemos são claros na sua angolanidade genuína (e até de desdém sobre os novos colonos portugueses), especialmente se tivermos em conta que foram escritos como grito de resistência no auge da opressão do novo regime colonial e já policial do Estado Novo.
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O historiador angolense Alberto Ferreira de Lemos (1893-1977)
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Voltando ao fenómeno colonial numa perspectiva mundial, é certo que este contacto dos povos nativos com colonos/emigrantes europeus levou
à exploração económica desenfreada desses povos nativos pelas
nações europeias (imperialismo), o que invariavelmente levou a conflitos graves entre
esses povos e a hegemonia europeia/ocidental (guerras coloniais e
mundiais), que ainda hoje se travam no mundo. É a esta espiral histórica
do colonialismo (exploração marítima - contacto - exploração económica -
conflito) que eu chamo de furacão colonial. Comecei assim a compreender
que o sistema colonial é na sua essência baseado na extinção da cultura nativa, no roubo da terra e das riquezas naturais, do trabalho indígena, na opressão - o colonizado não é cidadão (é força de trabalho) - e na
violência (ocupação militar e castigos duros para faltas leves).
O cinema, como forma de arte e comunicação social, desenrolou um papel fundamental na formação da juventude luandense da década de 1960. Como atleta do Sporting Clube da Maianga, eu tinha entrada grátis nos filmes lá apresentados, pelo que vi muitos filmes durante esse tempo (em média dos a três por semana), ao que devo adicionar os filmes que via noutras casas de cinema em Luanda. Como forma de arte que combina simbioticamente a história, a imagem, e o som, o cinema na Luanda do meu tempo era a forma de arte e entertenimento preferida por todos. Dos muitos filmes que vi, alguns que eram tão bons que deixaram em mim um impacto memorável até aos dias de hoje.
Assim, não esqueço o impacto que o filme West Side Story teve na juventude de Luanda do meu tempo. O filme estreou-se em Luanda em 1962 com grande êxito, pois tocava num ponto fundamental da sociedade angolana - o contacto, ou melhor, a colisão de culturas, que nós interiorizámos como se fosse a nossa situação. A história é um tanto como uma tragédia de Shaskespeare adaptada para Nova York durante os anos de 1950s, pois foca num desafio de juventude (o gangue dos "Jets" (brancos) contra os "Sharks" (Portoriquenhos) e a paixão proibida entre Tony (Richard Beymer) e Maria (Natalie Wood), e o magnífico papel de Rita Moreno, a cinematografia, a música (o filme é de facto um musical), e a qualidade de actores fizeram deste filme um dos mais memoráveis para mim.
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Cena do filme West Side Story, da canção "Tonight" sobre o amor proibido entre Tony e Maria
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Mais perto do caso pessoal da nossa família, lembro-me que vi e re-vi o filme "E Tudo o Vento Levou"
- uma história pungente de romance escrito por Margaret Mitchell e passado na Guerra Civil Americana
(entre 1865 e 1871), no fim do regime de escravatura nos Estados
Confederados do Sul, que a minha Mãe se referia com frequência.
A estória é sobre a derrocada do sistema de escravatura de plantação (a Fazenda Tara, na Geórgia, um dos Estados Confederados do Sul) e as transformações radicais que trouxe as quem as viveu, não muito diferente da queda do sistema colonial em Angola que veio a acontecer um século depois.
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O pôr-do-sol (fim) da fazenda de plantação Tara no filme "E Tudo o Vento Levou"
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Este filme impressionou-me sobremaneira, não só pela mestria dos actores (Vivian Leigh como Scarlett O'Hara, Clark Gable como Rett Butler, Leslie Howard como Ashley Wilkes, e Olivia De Havilland como Melanie Hamilton), e Hattie McDaniel (como a criada escrava Mammy, desempenho pelo qual ela ganhou o óscar para melhor actora em papel de suporte, e a primeira actora americana de ascendência africana a ganhar um óscar) e qualidade da cinematografia (uma obra magistral do realizador David Selznick).
Na verdade, "E Tudo o Vento Levou" ajudou-me a compreender
melhor a razão porquê e aceitar o facto de que a nossa família não havia
de voltar jamais à Damba e à nossa Roça Novo Fratel, lugares que
tanto amava. A Roça Novo Fratel tinha sido estabelecida pelo meu Avô em
1935 e situava-se nas fraldas da Serra do Cusso, a sudeste da Serra da
Canda, já entre o Quibocolo uma pequena povoação perto de Maquela do
Zombo, minha terra natal, e São Salvador (hoje Mbanza Kongo), no coração
do Antigo Reino do Congo.
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Poster do filme "O Doutor Jivago"
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Mais tarde, quando já andava na Universidade de Luanda, eu vi o filme "Doutor Jivago" estreado em 1965, e baseado no livro do grande escritor russo Boris Pasternak publicado em 1957, laureado com o prémio Nobel da literatura, que simplesmente adorei. A estória de "O Doutor Jivago" é baseada no romance entre Dr. Yuri Zhivago (interpretado por Omar Sharif) e a enfermeira Lara Antipova (interpretada por Julie Christie) no seu refúgio na vila mítica de Yuriatin, perto dos Montes Urais, na Rússia, durante os tempos imediatamente após da Revolução de Outubro de 1917, e como as elites russas reagiram à revolução bolchevique. Neste filme, as interpretações de Geraldine Chaplin (como Tonya Gromiko), Rod Steiger (como Viktor Komarovsky), Alec Guiness (como General Yevgraf Zhivago), e Tom Courtenay (como Pasha Antipov / Strelnikov) foram também extraordinárias.
Estes dois filmes (E Tudo o Vento Levou e Doutor Zhivago) mostram de uma forma magistral o mesmo momento histórico em dois lugares e tempos diferentes (a derrota dos estados do Sul dos Estados Unidos da América, e o caír da aristocracia russa (que viria a ser derrubada pela Revolução Bolchevique de Outubro de 1917), e que para o nosso caso seria a queda do regime colonial em Angola. Mal sabia eu, que pouco tempo mais tarde, eu haveria de estar numa
situação semelhante, de ver o mundo a caír à minha volta, e de
ter que considerar deixar Angola, e viver o resto da minha vida numa pequena cidade como
Yuriatin, escondida nas frígidas Montanhas Rochosas do Oeste Canadiano.
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Poster do filme "Revolta na Bounty"
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Lembro aqui que adorei ver o filme "Revolta na Bounty", uma estória maravilhosa baseado em factos reais passada nas paradisácas Ilhas do Pacífico (Tahiti) no Séc. XVIII, em que os marinheiros da corveta HMS Bounty comandados pelo tenente Fletcher Christian (Marlon Brando), encantados com a beleza das ilhas e das mulheres do Tahiti, se revoltam contra os excessos do capitão do navio William Blight (Trevor Howard), e decidem ficar com as suas novas esposas, em vez de voltar ao mundo europeu de então. Se o filme "A Revolta na Bounty" foi a minha introdução ao sonho das Ilhas dos Mares do Sul (Sul do Pacífico), o filme musical "South Pacific"foi o que me conquistou para sempre.
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"South Pacific" - a subtil história de amor entre Nellie e Emile
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Desde então sonhei sempre em visitar (e mesmo viver) nas paradisíacas ilhas dos Mares do Sul. O filme é baseado no romance do escritor James Michener "Estórias do Sul do Pacífico" publicado em 1946, passado durante a Segunda Guerra Mundial, em que o romance entre a enfermeira americana Nellie (Mitzi Gaynor) e as crianças que ela tomava conta e o piloto francês Emile (Rossano Brazzi) era o tema principal, coadjuvado por um arranjo excepcional de canções e arranjos musicais de Richard Rogers e Oscar Hammerstein, adaptados para peça de teatro. De todos os filmes musicais que vi, "South Pacific" foi aquele que mais gostei, e que ainda hoje, mais de cinquenta anos passados, me deixa a sonhar outra vez. Embora com um pouco de tristeza, eu nunca tive a oportunidade de visitar as verdadeiras Ilhas dos Mares do Sul, excepto as Ilhas do Hawaii, que visitámos quatro vezes, que são uma versão comercializada para turistmo de massas que nos faz lembrar ainda que longinquamente o sonho das Ilhas dos Mares do Sul.
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Poster do filme "Hawaii"
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Ainda sob o tema das Ilhas dos Mares do Sul (sul do Pacífico) e escritos de James Michener, eu gostei muito de ver nessa altura o filme "Hawaii", que é uma obra épica de James Michener sobre a colisão de culturas (Havaiana e cristã) na evangelização do povo Havaiano no princípio do século XIX, em que os missionários cristãos em vez de trazerem Deus e a Bíblia aos povos das Ilhas Hawaii, trouxeram apenas doença, destruição, e o acabar de do seu mundo. O filme oferecia muitas cenas maravilhosas que mostrava a cultura Havaiana antes do contacto com os europeus, especialmente música, dança, vestuário, padrões morais, religião, costumes e tradições, relações de parentesco, aristocracia, e organização política e social. O filme despertou em mim o interesse pela antropologia e pela dinâmica do contacto entre culturas muito diferentes. Eu tenho ainda que confesar aqui que eu gosto muito das Ilhas Hawaii e do seu povo, pois nós já lá fomos quatro vezes, e se eu tivesse mais posses era onde eu haveria de passar o pôr-do-sol da minha vida.
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Simone Signoret e Oskar Werner numa cena do filme "A Nave dos Loucos", 1965, baseado no aclamado livro de Katherine Anne Porter do mesmo título, publicado em 1962.
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Eu vi outro filme em Luanda que me fez pensar um pouco sobre a natureza humana e o direito natural da pessoa. O título é "A Nave dos Loucos", baseado no livro best-seller da escritora americana Katherine Anne Porter (1890-1980) que passou vinte anos a escrevê-lo e finalmente o publicou em livro em 1962 e apareceu como filme a preto e branco em 1965. Eu penso que apesar do enredo magnífico e da qualidade dos actores (Vivian Leigh, Simone Signoret, Lee Marvin, José Ferrer, Oskar Werner, e Elizabeth Ashley) para além de ter sido dirigido pelo realizador Stanley Kramer), o filme recebeu pouco reconhecimento público, pois para mim foi um dos melhores filmes que vi.
O enredo do filme foi baseado nas notas que a autora tirou de uma viagem de cruzeiro que fez em 1931 do porto de Vera Cruz, no México, à cidade de Bremerhaven, na Alemanha, em que muitas pessoas diferentes viveram um universo um tanto surreal durante os 27 dias da viagem transatlântica. O livro é um estudo de personalidade de pessoas muito diferentes e de situações específicas em que as mesmas se encontravam durante os anos de fermentação do nazismo na Alemanha, numa Europa já então em decadência.
O que eu aprendi do filme é que cada um de nós como pessoa tem os seus sonhos, capacidades, e limitações, e é esta diversidade de vectores que nos fazem essencialmente iguais. Todos nós temos qualidades e defeitos, pois não há grandes figuras na humanidade sem pelo menos um grande defeito, da mesma forma que há não há pessoas fracas sem uma grande qualidade. E assim neste plano somos todos iguais, e como tal temos o direito e o dever de sermos tratados com igualdade. É verdade que condições específicas (condição social, riqueza/pobreza, herança cultural, matriz psicológica, matrix biológica, idade, género, época em que vivemos, etc.) nos podem ajudar a fazerem-nos diferentes e até únicos, mas todas estas qualidades em conjunto são o que nos ajudam a definir o que é pessoa (e humanidade). Assim, aprendi que "branco" e "preto" estão intrinsecamente relacionados entre si (um ajuda a definir o outro), pois em última análise são apenas tonalidades de cinzento.
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Claustros do Liceu Salvador Correia |
Desde
muito cedo os meus pais cultivaram em mim o interesse pela história e
pelo negócio (eu era um bom jogador de Monopólio...), o que talvez
subconscientemente me levou a seguir a Alínea "G" no Sexto e Sétimo anos
(Ciências Económicas e Financeiras), quando mudei para o Liceu Salvador Correia.
Os meus três anos no "Salvador Correia" (só fiz os exames de Matemática e Inglês um ano mais tarde) foram críticos para a minha formação como cidadão. Relembro
ainda que era sagrada para mim a leitura da Revista Notícia (na calçada
Gregório Ferreira)todas as semanas, em especial os escritos de João Charulla de Azevedo (cujo lema era "Projecto o melhor, espero o pior, e aceito de ânimo igual o que Deus quiser", palavras que me iriam guiar para o resto da minha vida), e a crónica semanal "A Chuva e o Bom Tempo" de João Fernandes. Da imprensa diária em Luanda lia com frequência os jornais matutinos "A Província de Angola" (de maior circulação em Angola, e que líamos diariamente), e "O Comércio" (ambos com sede na rua Salvadorr Correia), e os jornais da tarde "Diário de Luanda"(sob directa influência do governo), com sede na Avenida Lisboa em frente à Delegacia de Saúde, e não muito longe da mossa casa, e o jornal "ABC"(que achava o mais independente), também com sede na Rua Salvador Correia. Havia ainda o semanário "O Apostolado", publicado pela Igreja Católica, que era o órgão de imprensa religiosa de maior difusão em Angola.
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Uma imagem antiga do Palácio de Ferro, na antiga Rua Direita em Luanda
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Cabe lembrar aqui que a imprensa em Angola desse tempo não era livre (longe disso!). Nós não vivíamos num sistema politicamente livre e democrático, mas sim num sistema autocrático colonial e em guerra. De facto, não só a imprensa, mas qualquer actividade de natureza cultural como a publicação de uma obra literária estava sujeita à censura prévia. Mais ainda, qualquer actividade política era cuidadosamente seguida pela PIDE (a polícia política - Polícia Internacional de Defesa do Estado). Dependendo da extensão do "desvio político", para alguns a falta acarretava a perda de liberdade de expressaõ, intimidação e opressão policial, e até perda de emprego. Estas formas de repressão fazia-os viver sempre num mundo de medo de quando a PIDE havia de os ir buscar a sua casa para interrogatório, tortura, residência fixa longe de Angola, prisão, ou até morte. As prisões para presos políticos angolanos mais conhecidas era a prisão de São Nicolau, situado na foz do rio Bentiaba (uma região muito remota e de acesso muito difícil) no distrito de Moçâmedes, e o Campo do Tarrafal, em Cabo Verde. Em face dessas consequência , muitos angolanos preferiam "bazar" (fugir do país", e ir juntarem-sa aos movimentos de libertação que tinham as suas bases nos países vizinhos. Mesmo assim, a qualidade de certos (poucos) meios de comunicação social era muito boa, pois as suas crónicas (como o João Fernandes na Revista Notícia, e Acácio Barradas no Jornal ABC) e reportagens e comentários (como Sebastião Coelho no programa noturno Café da Noite, na Emissora Católica de Angola) conseguiam passar sob o pente fino da Comissão de Censura e dizer ao público o que era preciso saber. Devo ainda dizer ao mesmo tempo que haviam muitos jornais e programas radiofónicos cuja qualidade era baixa e cuja função primordial era bajular o sistema colonial.
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Capa da revista Notícia, Luanda, 30 de Janeiro de 1971 |
16. Liceu Nacional Salvador Correia
Findo o 5º Ano no Liceu Paulo Dias de Novais, eu entrei para o Liceu Salvador Correia em 1967. Entre os mundos das humanidades e das ciências no Liceu Nacional Salvador Correia,
os alunos da Alínea "G" tinham certas disciplinas com os cursos de
línguas (românicas e germânicas - Inglês), ciências
histórico-filosóficas e direito (História), e outras com os alunos de
ciências e arquitectura (Geografia e Matemática), sendo as disciplinas
de Filosofia e OPAN (Organização Política e Administrativa da Nação)
comuns a todas as alíneas do terceiro ciclo, o que me permitiu fazer
muitas amizades de um universo mais alargado de colegas. Recordo aqui que havia uma certa concorrência entre os alunos de Direito e Economia, pois tínhamos três disciplinas comuns (História, Filosofia, e OPAN), mas como sempre, os alunos de economia eram melhores (não esqueço aqui o que o provébio "Presunção e água benta, cada qual toma a que quer...). Os melhores alunos da nossa turma de Ciências Económicas e Financeiras (Alínea G) eram a Margarida Chagas Lopes e o José Luís Seara de Morais.
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Vista do Liceu Nacional Salvador Correia em ca. 1950, note-se atrás o Bairro do Café com muitos terrenos ainda vazios à volta
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Lembro aqui as professoras Dra. Teresa Velhino (de Inglês), a Dra. Piedade
(de alcunha Periquita, de Filosofia), a Dra. Graça Prata (de História), e Dr. Catarino, o notável professor de filosofia e OPAN no 7º ano. Adorei todas as disciplinas
(História, Geografia, OPAN, Matemática, Inglês, e Filosofia), em
especial História, Geografia e OPAN (Organização Política e
Administrativa da Nação) em que eu era um dos bons alunos na turma.
A nossa professora de Geografia era a Dra. Ondina Amarelo Cruz, que penso que era natural de Cabo Verde (não estou completamente certo), que nos fez gostar ainda mais de cosmografia, e geografia física, económica, e humana. O tópico de cosmografia, que eu adorei, era um dos ramos dentro da astronomia, não era de fácil compreensão mas dava azo a uma ginástica mental muito mais ampla.
No Sexto Ano fui escolhido para fazer parte da turma experimental de Matemática Moderna
no Liceu Salvador Correia - havia outra turma mista no Liceu D. Guiomar
de Lencastre lecionado pela Dra. Maria Estefânia Marques - que muito me ajudou a aprender a trabalhar melhor com os
meus neurónios. Lembro aqui com muita saudade a figura do Dr. José Cândido Vinhas Novais, que como professor da turma de Matemática Moderna despertou em nós o interesse pela matemática não convencional.
Foi um privilégio muito grande para mim ter sido escolhido para a turma especial de Matemática Moderna no 6º e 7º anos. Para além do currículo conventional de matemática para o 3º Ciclo, nós aprendemos um campo de matemática muito mais amplo, incluindo lógica matemática, teoria de conjuntos, teoria de grupos, aneis e isomorfismos, números complexos, álgebra de Boole, topologia, teoria dos números, análise combinatória, introdução à estatística e teoria das probabilidades, teoria dedutiva dos números naturais, cálculo vectorial, transformações e isometrias, matrizes, e álgebra linear, e cálculo infinitesimal (derivação, diferenciação, e equações diferenciais). O programa de matemática moderna ajudou-me muito mais tarde na Faculdade de Economia da Universidade de Luanda e durante a vida fora, pois além de poder manipular facilmente símbolos e números, com ele aprendi a compreender melhor a matemática como uma ciência e uma forma de linguagem, e a trabalhar melhor com conceitos muito mais complexos de modelos no tratamento matemático da economia.
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A minha Certidão de Habilitações Literárias confirmando eu ter completado o 3ª Ciclo dos Liceus (7º Ano) no Liceu Nacional de Salvador Correia, em 1970
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Escrevi nesse ano o meu primeiro artigo (uma resenha biográfica) sobre o
Barão Pierre de Cubertin e os jogos olímpicos modernos que foi publicado no nosso saudoso
jornal "O Estudante", orgão dos alunos do Liceu Nacional Salvador Correia
,
que despertou em mim o gosto (mais tarde paixão) por escrever. Já que menciono aqui o jornal "O Estudante", tomo a liberdade de referir o artigo que escrevi em 2003 "
Cidadão do Mundo", sobre a questão da minha "nacionalidade" universal, que sugiro a sua leitura.
Nesse ano ainda, comecei a ajudar em matérias administrativas no
conselho técnico do Sporting Clube da Maianga, sob a direcção do meu
grande amigo e mentor Sr. Carlos Morais, funcionário dos Caminhos
de Ferro de Angola e membro da direcção do clube (Secretário). Tornei-me assim o
dirigente desportivo mais jovem acreditado nas associações provinciais
de futebol, basquetebol, e hóqei em patins. Eu devo muito ao Sr. Morais,
pois foi ele quem me orientou e ajudou como fazer o meu trabalho, e foi um mentor para mim uma idade de grandes riscos. O Sr.
Morais era casado com a Dona Dina e não tinham filhos. Ambos eram um casal de referência de participação social e um modelo para nós todos seguirmos.
O Sr. Renato dos Santos, que era funcionário dos CTT (Correios,
Telégrafos e Telefones) também me ajudou muito no desempenho desta
responsibilidade. O Sr. Renato tinha perdido um braço num acidente ainda
cedo na vida, mas mesmo assim e já não jovem, ele atravessava a Baía de
Luanda a nado, só com um braço; a quem muito devo a ambos como
aprendiz, o que me permitiu lidar com atletas de todas as categorias
sociais, e de me aperceber de mais perto da diferença entre os dois
mundos em que se dividia as sociedades luandense e portuguesa de então.
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Alunos na Biblioteca do Liceu Nacional Salvador Correia, 1969 |
Ainda
no Sexto Ano do liceu estive em casa doente cerca de dois meses com
febre tifóide o que me deu a oportunidade de ler muitos livros dos meus
pais, dos quais destaco "As Vinhas da Ira" de John Steinbeck,
uma obra de um realismo social intenso que me marcou sobremaneira,
baseada na experiência da Grande Depressão Económica na América nos anos
Trinta, em como uma família (a família Joad) de trabalhadores agrícolas (os Oakies),
vítimas de uma exploração atroz nos campos de algodão do Olklahoma, tinha perdido todos os seus parcos
haveres devido à crise económica de 1929-32 e exploração desenfreada dos donos da terra, banqueiros, e elites económicas,
e decidira emigrar para a terra prometida das plantações de frutas no Vale de Salinas na Califórnia, mas que nessa
jornada ia sendo destruída aos bocados, e com heróica dificuldade
sobreviveu a pobreza e exploração implacável do estado, dos bancos e dos
grandes proprietários da terra na Califórnia de então. O livro acaba com um quadro dramático de horror e ao mesmo tempo de esperança, quando a filha mais velha da família Joad, acaba de dar à luz um bebé nado-morto, e amamenta com o seu leite um homem que estava agonizando de fome.
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Poster do filme "As Vinhas da Ira" baseado no livro de John Steinbeck
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Li ainda todas
as Selecções do Reader’s Digest desde que tinham começado a serem
publicadas em língua portuguesa no Brasil (que os meus pais assinavam há alguns anos),
li anos e anos de edições do Almanaque Bertrand que tínhamos em casa, e li e reli muitas vezes quase todos os artigos do volumoso e velho "Dicionário Universal Lello" que tínhamos herdado do nosso avô.
Não esqueço ainda as muitas páginas de publicidade nas Selecções do
Reader´'s Digest dedicadas ao esforço de desenvolvimento económico e
social do Nordeste do Brasil entre 1962 e 1964, liderados pela SUDENE
(Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, liderada pelo grande
economista brasileiro Celso Furtado) que despertou em mim o interesse
pela economia política dos países subdesenvolvidos, pela exploração colonial e enriquecimento da
Europa e dos Estados Unidos, pelo subdesenvolvimento, e pelo estudo em
como analizar e superar o estado de pobreza de um país, pela intervenção estatal na economia, e pelo papel que o planeamento económico pode desenvolver em superar o subdesenvolvimento através da industrialização acelerada, o que me levou a escolher o
estudo desses temas economia mais tarde na universidade e durante o
resto da minha vida. Com Fernão de Magalhães, Charles Darwin, e o matemático e pensador português Bento Jesus Caraça, o grande economista brasileiro Celso Furtado juntou-se ao panteão das figuras que mais admirei na vida, não só pelo exemplo das suas vidas, mas também pelos ideais e valores que se bateram e avançaram. Eles são os meus heróis.
Dos artigos que li nas Selecções do Readers' Digest, não esqueço a biografia de Charles Proteus Steinmetz, um génio corcunda alemão, engenheiro electro-técnico de formação, que fez grandes descobertas e invenções no campo da electricidade (das quais a currente alternada) nos princípios so século XX (trabalhando com Thomas Edison e Nikola Tesla), e que despertou em mim o interesse pela história da inovação e invenção tecnológicas e do progresso da tecnologia.
Com menor impacto na minha vida lia também muitos artigos que eram de facto livros condensados de obras importantes editadas na altura, como "Tora Tora" (a história do ataque japonês a Pearl Harbour, nas Ilhas Hawaii em 1941, a história da batalha de Midway, no Pacífico Norte em 1942, e até a obra de propaganda da ditadura militar brasileira "O País que se Libertou a Si Mesmo" que descreveu o golpe de estado militar brasileiro em 1964, que infelizmente havia de durar até 1988.
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Luanda, trecho da Avenida Marginal, 1965 |
Deste
período de repouso declarou-se oficialmente o meu interesse por livros e
pela leitura, embora já desde muito jovem gastasse em livros o pouco
dinheiro que com dificuldade amealhava, e o meu fascínio pela história
como registo da experiência de sociedades e mundos passados. Recordo
aqui o papel crítico que o Tó Soto Maior desempenhou em
aproximar-me ainda mais dos livros com a dávida de dezenas de livros do CITA (Centro de Informação e Turismo de Angola - onde ele trabalhava) e da Agência Geral do Ultramar
sobre Angola e
sobre a história de Portugal Ultramarino, etnografia e história de
Angola, e incluindo a valiosa revista "O Turismo", que tenho a colecção quase completa. Cabe-me ainda
mencionar aqui que frequentei poucas vezes a Biblioteca Municipal de
Luanda, que estava instalada no edifício da Câmara Municipal de Luanda acima do
largo da Mutamba e perto da Igreja do Carmo. A biblioteca municipal era um lugar muito formal, sem
muita luz, que "cheirava a erudito", e em que não se podia fazer barulho, mas que tinha uma
quantidade impressionante de livros guardados em prateleiras de vidro
que enchiam as paredes altas até quase ao teto.
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Quem adivinha esta rua de Loanda Antiga? Um dos edifícios (qual?), ainda que um pouco modificado, ainda existia em 1975. |
No ano em que repeti o Sétimo ano só tinha duas disciplinas (Matemática e
Inglês) eu trabalhei na Secretaria da Fazenda do 1º Bairro Fiscal de
Luanda, na Mutamba, e eu e o Luís Delgado vivemos na casa da
família Morais (Sr. Alfredo, Dona Lena, e Tommy Morais) que tinham ido
passar licença graciosa a Portugal. Nota - A licença graciosa era um benefício de emprego pelo qual a maioria dos funcionários públicos em Angola tinham direito a ir passar seis meses de férias pagas com a família a Portugal de cinco a cinco anos. A casa da família Morais era um apartamento muito bom e amplo situado no primeiro andar de um prédio pequeno de três andares, com vistas para a Baixa de Luanda, localizado na Rua Pedro Nunes, ao fundo da rampa do Liceu Salvador Correia, do lado esquerdo (para quem vai para baixo), à frente da Cooperativa dos Empregados das Companhias de Petróleo (Coopetrol). Durante esse
período eu ia almoçar e jantar ao Restaurante Tonga, uma esplanada para comensais muito arborizada
que se situava atrás da sede do Instituto do Trabalho e perto da sede do
Sindicato dos Motoristas, junto à esquina das ruas Conselheiro Júlio de
Vilhena e Engenheiro Artur Torres (entre a Avenida do Hospital e o Largo
Serpa Pinto).
Em 1970 eu acabei o Sétimo Ano do liceu e fiz o exame de aptidão às
universidades portuguesas em Portugal Continental,
já que não havia ainda uma faculdade de Economia na Universidade de
Luanda. O exame de aptidão foi só sobre Geografia, pois dispensei a Matemática. Eu lembro-me que estudei muito para este exame, e que acabei
por
dispensar à prova oral (só fiz a prova escrita), e que em mais de 150
examinandos, só três dispensámos à prova oral. Talvez ainda mais do que
eu, o meu Pai ficou muito feliz com o feito e celebrou-o com muita
alegria quando telefonei para Cabinda a dizer os resultados do exame.
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A colónia de Férias da Ilha de Luanda, da Mocidade Portuguesa
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Durante os meus três primeiros anos na Universidade de Luanda, fiz parte da equipa de remo da Mocidade Portuguesa,
da qual era timoneiro, e que me deu a oportunidade de visitar o Lobito e
Moçâmedes várias vezes nos campeonatos provinciais de remo, nos quais
fomos campeões de Angola em alguns. Eu sempre gostei muito da praia e do mar, mas a
prática de um desporto náutico nas tardes de fim-de-semana sob a calema
(brisa) da Baía de Luanda, que eu haveria de conhecer tão bem, foi para
mim uma das actividades das quais guardo as melhores recordações.
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Uma boa tarde de sábado no Pavilhão Náutico da Mocidade Portuguesa na Ilha de Luanda |
Como
mencionei anteriormente, a nossa família era remediada, e qualquer
ajuda para aliviar o orçamento familiar era bem vinda. Assim, desde cedo
trabalhei nas férias grandes, o que não era normal nesse tempo.
Trabalhei durante dois períodos de férias grandes na Proquímica (a maior firma importadora de produtos farmacêuticos em Angola), um ano na firma Rocha Monteiro Lda. (importação
e comercialização de equipamento para fotografia, relógios, e óptica), e
no meu último ano do liceu na trabalhei na Secretaria de Fazenda do 1° Bairro Fiscal (no
rés-do-chão do prédio dos Serviços de Fazenda e Contabilidade, na
Mutamba, hoje Ministério das Finanças), nos últimos três anos da
universidade fui passar as férias grandes (de Junho a Setembro) a
Cabinda com os meus pais e irmãos. Cabe-me ainda dizer que muitos amigos da minha idade que viviam na Maianga deixaram de estudar para trabalhar e ajudar a família muito cedo na vida.
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Largo da Mutamba, coração de Luanda, 1962
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17. Cursos de Vida Apostólica
No
ano em repeti o Sétimo Ano do liceu tive a sorte de ter sido escolhido a
participar num retiro de cristandade para jovens (os Cursos de Vida
Apostólica - CVA), onde de perto me apercebi do papel que a religião e a
ideologia tinham na formação e controle das sociedades luandense e
angolana de então. Aí fiz grandes amizades que se mantêm até hoje, aprendi muito sobre a operação da igreja católica e seus escritos (em especial sobre o Concilio Vaticano II), e aprendi também o dilema da Igreja Católica em Angola durante todo o período colonial em tentar reconciliar a exploração colonial com a vida digna dos povos nativos por quem tanto se pugnava.
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Selo com figura da Igreja de Jesus em Luanda |
Cedo
me entreguei a esse ideal nobre, pois, de facto, os CVA foi um bom
movimento de juventude que fez uma obra notável em Luanda. Talvez pela
minha dedicação ao ideal do humanismo cristão, dentro de pouco tempo fui escolhido para
"responsável" (dirigente); dois anos mais tarde fui escolhido para
substituir interinamente o meu bom amigo Luís Delgado, que por sua vez tinha sucedido ao carismático Toni Barbosa (falecido há anos no Brasil), no cargo de presidente do movimento. Como tal, tinha encontros frequentes com o corpo de dirigentes leigos e religiosos (Padre Francisco Janeiro e Capelão Padre Jorge), em especial com o (então) Bispo Auxiliar de Luanda D. Eduardo André Muaca, que me ajudou a "abrir mais os olhos" à situação de injustiça social que a população não-branca de Angola tinha que enfrentar no seu dia-a-dia.
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Dom Eduardo André Muaca, Arcebispo de Luanda (1924- 2002) |
Natural
da área Missão do Lucula, posto de Tando Zinze, em Cabinda e de raça
negra, o Padre André Muaca, primeiro como professor de Religião e Moral no Liceu Paulo Dias de
Novais, e mais tarde como bispo na Arquidiocese de Luanda, teve uma
influência extraordinária na minha formação, e guardo dele as melhores
memórias como amigo genuíno, e guardo em especial a memória da cerimónia
inesquecível da sua consagração como bispo a 31 de Maio de 1970, na
Igreja de São Paulo em Luanda, já que Dom Eduardo foi o segundo bispo de
raça negra em Angola, desde os tempos do Antigo Reino do Congo. Nota - O primeiro bispo africano foi o príncipe Dom Henrique, príncipe do
Congo, tinha sido ordenado Bispo de titular de Útica pelo Papa Leão X em
1521, sob recomendação do Rei Dom Manuel I de Portugal. Em
reconhecimento por tão alta honra, o seu pai, o rei do Congo Dom Afonso
I, atribuiu-lhe a donataria da província de Pango (Mpangu).
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Interior da Igreja do Carmo em Luanda |
Os
CVA ofereceram-me a oportunidade de conviver com um grupo muito mais
amplo e diverso de amigos, oriundos de todos os quandrantes sociais de Luanda, e
de pensar na melhor maneira de aplicar a minha energia em projectos
concretos de relevância social; assim, envolvi-me em projectos de
assistência ao Abrigo dos Pequeninos (em cooperação com a Associação das
Vicentinas de Luanda (São Vicente de Paulo) na antiga Avenida Lisboa -
Aeroporto, agora Avenida da Revolução de Outubro), e do Beiral dos
Velhinhos (na Terra Nova), em que pude constatar ao vivo as necessidades
reais dos desprotegidos pela sorte e esquecidos pela sociedade. A razão
que me levou a trabalhar com crianças muito novas foi um evento muito
trágico que ficou para sempre na minha memória, que tinha acontecido uns
anos antes em Luanda, quando 37 crianças que viviam num lar para
crianças orfãs no bairro da Terra Nova morreram por intoxicação
alimentar, quando por engano foram servidas comida feita com farinha contaminada por insecticida.
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Prédio do Abrigo dos Pequeninos de São Vicente de Paulo em Luanda
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Ainda
no domínio social, recordo o bom convívio que a reunião semanal (ultreias) às
Quartas-Feiras, a missa semanal às Terças-Feiras (incialmente na Igreja
do Carmo, e mais tarde na Igreja da Sagrada Família), e a missa no
Domingo à noitinha na Igreja de Jesus, nos ofereciam.
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Igreja da Sagrada Família em Luanda
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Talvez como mais-valia do trabalho social em que nos empenhámos, ainda nos CVA aprendi a diferença entre fé cristã e humanismo cristão de D. Helder da Câmara,
Bispo do Recife, abraçando gradualmente o humanismo cristão já que à
medida que mais aprendia e trabalhava no terreno, a minha fé em Deus (e
talvez nos homens) se desvanecia gradualmente. Provavelmente
influenciado pela realidade social angolana e pelo que lia e aprendia à minha volta, eu comecei a
acreditar em que o que era ser bom era ser humano, e o mal provinha do
que era ser perverso. Eu aprendi assim (também gradualmente) que ambos o
paraíso e o inferno que a fé em Deus nos oferecia não era senão os
tempos felizes e maus que a vida nos dava cá na Terra, e que tudo terminava
quando morríamos, não tendo qualquer relevância o pós-vida, senão as
obras e memórias boas e más que haveríamos de deixar.
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Igreja da Sé (Nossa Senhora dos Remédios), na Rua Salvador Correia em Luanda
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Já que eu considerava os CVA como um movimento de juventude muito bom em Luanda, eu convenci o meu irmão Rui, e amigos Victor Azevedo e Zeca Silva (da Maianga) para tomarem parte num curso e aderir à obra importante que os CVA desempenhava entre a juventude de Luanda.
Eu
tenho muito boas memória de muitos amigos (irmãos) dos CVA, incluindo o
Toni Barbosa (já falecido), Luis Delgado, Aníbal Russo, Tommy Morais
(também já falecido), Victor Melo, João Marinho (Zinho), Fernando
Figueiredo, irmãos Rui e Chico Travassos, Eva
Bizarro (Mitinha), Abilio e Fati Nunes, Chino, Adriano
Baptista, Manos Zé e Luisa Guilherme (também já falecidos), Fernanda
Dias, Paula Serra Coelho (também já falecida), irmãs Lacerda (Teresa e
Fernanda), Dita, Célia Brito (Lilla), Carlos e Mizé Abreu, Hilário
Oliveira, Seara de Morais, Cecilia Alves (Cila), Carlos Godinho, Manas Tita e Fernanda Ramos, José Ataíde, Padre Janeiro, Padre Jorge, e muitos outros.
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Participantes no Sétimo CVA masculino, Luanda, 1969 |
Um dos amigos mais chegados que tive nos CVA foi o António (Tó) Guerra,
que residiu antes de 1961 na vila do Quitexe (no Uíge) e que também foi
vítima dos ataques da UPA. O Tó Guerra gostava muito de aviões e de
tudo quanto era voar. Ele tirou o brevet no Aero Clube de Luanda. Com
ele tive a oportunidade de visitar Porto Amboím (antiga
Benguela-a-Velha) e Novo Redondo (hoje Sumbe). Fomos noutra viagem até
Cabinda com a intenção de comparmos aparelhagens de som (que eram
duty-free em Cabinda) ao longo da costa norte de Angola, passando pela
Barra do Dande, Caxito, Ambriz, Ambrizete (Nzeto), Santo António do
Zaire (Soyo), Boma, e a baía de Cabinda. Lembro-me que na viagem de regresso carregámos
peso demais na avioneta , o que nos fez a ter que deixar metade das
coisas em Ambrizete e ter que voar lá no dia seguinte para trazer o
resto. Ainda em Luanda, o Tó Guerra casou com a Fernanda, que também era
membra dos CVA. Depois de deixarem Angola, eles viveram muitos anos em
Coimbra. Fui também amigo chegado da Tita (Fátima Ramos), que era irmã
da Fernanda. Lamentavelmente, o Tó Guerra veio a falecer precocemente em
Coimbra há já uns anos.
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Ermida da Nazaré em Luanda, aguarela de Zélia Reis Ferreira |
Decidi
então, com grande dificuldade pelas grandes amizades que tinha e ainda com certa incerteza quanto à fé (ou falta dela), deixar os CVA e abraçar o novo mundo que
então na Universidade de Luanda se abria para mim. Contudo, apesar deste
afastamento gradual da fé cristã, guardo dos CVA e dos amigos que lá
encontrei as melhores recordações.
Depois de mais de cinquenta anos passados é particularmente confortante
saber que o pessoal dos CVA continua ainda muito unido e tem um ou dois encontros anuais em
Portugal, graças à iniciativa do nosso amigo Aníbal Russo e de outros que teimam em lembrar-mos que a verdadeira amizade existe muito para além do tempo e da crença.
1 Comments:
HELDER
Parabéns pelo teu blogue. Ainda não tinha lido este capítulo.
Para além da beleza das tuas descrições e do carinho pelas pessoas que conheceste e queres lembrar, tens um registo precioso da Luanda dos anos ´60 e ´70.
Reparei que retiveste o nome antigo e mais actual de cada rua (algumas já mudaram de nome duas vezes) o que é uma informação difícil de encontrar agora.
Felicidades para ti e para a tua família. Eu e a minha continuamos em Angola.
Não pares de escrever.
Um abraço.
Lena Victória Pereira
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